Sexo, Escola e Rock And Roll escrita por Fernanda Lima


Capítulo 9
Encontros e desencontros


Notas iniciais do capítulo

* Versão de Isabel Rigardi *



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  - NÃÃÃO! SAI DE CIMA DE MIIIIM! AAAAAAH! SUA PSICOPATA!

  Ruídos agradáveis como esse me despertaram sutilmente na manhã seguinte à nossa jornada épica.

  Ao meu lado, Maria e Allen discutiam fervorosamente pelo último an-pan*. Deviam ser menos de nove horas, mas isso não era problema; eles estavam descansados. Quem liga para a garota que precisa de 15 horas de sono diárias para não desmaiar?

  Abri os olhos numa velocidade que meu lagarto perneta nunca havia visto antes. Na mesma velocidade, me levantei e lancei o maior travesseiro que vi na direção do tumulto. Meu corpo doía abundantemente em cada centímetro quadrado de sua extensão.

  - Ai! - Os dois falaram em uníssono. - Foi mal. Acordamos você?

  - Não, é que eu acho que ouvi o barulho de uma abelhinha envenenada. É um absurdo, elas deveriam ser multadas por tamanha balbúrdia.

  - Desculpe. - Allen disse, dividindo o pão em três pedaços obviamente diferentes. - Pegue um pedaço.

  Peguei a semi-migalha e comi. Assim que engoli, percebi o estado deplorável em que meu estômago se encontrava. Uma energia divina surgiu do nada em meu corpo, me fazendo correr até a cozinha. Ouvi passos vindo atrás de mim.

  - Minha tia saiu. Foi ao cabelereiro, e só deve voltar no fim da tarde. Então... comam o que quiserem.

  Não compreendi a associação.

  - E isso não seria possível se sua tia estivesse aqui?

  - Não. A não ser que seu maior desejo gastronômico seja torta de cevada com figo e alga marinha.

  Agora ficou claro.

  - A gente já comeu. - Allen disse ao meu lado. - Ainda tem alguns biscoitos no armário e umas frutas secas.

  Frutas... secas?

  - Maria, Maria, você tem nozes, hein? Vai, diga o que eu quero ouvir! - Fiz uma cara moe e olhei em seus olhos.

  - Aonde você vai as nozes se acabam, impressionante... Espera, vou pegar.

  Ela entrou na dispensa e voltou, um minuto depois, com uma caixinha de nozes já sem casca.

  - Grazi! - Saí correndo com minhas jóias comestíveis e me joguei no pufe de couro que havia na sala de estar. 

  Maria e Allen me observavam comer as nozes compulsivamente. Cerca de três minutos depois, fui até a cozinha para jogar a caixa fora e voltei com uma lata de suco de lichia.

  - Acho que foi um recorde, não? - Allen dizia para Maria, sério.

  - Não. Da última vez, ela detonou a mesma quantidade em pouco mais de dois minutos. - Ela olhava para o relógio da parede.

  - Eu poderia beber e usar drogas, mas prefiro comer umas nozezinhas cheias de proteína.  - Abri o meu suco e voltei para o quarto. Os dois me seguiram de novo.

  - Mandado de vigilância 24 horas? 

  - Não. Mas é interessante observar seus hábitos matinais. 

  Maria, antes séria, fez uma careta, fungando como um coelho.

  - Olha, eu não ia comentar, mas pelo amor de Deus, tomem um banho!

  Eu e Allen olhamos para ela.

  - Não precisa se incomodar, madame perfume j'adore, nós vamos embora em uma hora. - E ele veio até a cama e se sentou ao meu lado.

  Conversamos até pouco mais de onze horas, quando minha mãe surgiu na porta, ofegante.

  - Crianças... más notícias...

  Oba. 

  - Diga... - Minha voz era cavernosa.

  - O carro quebrou no meio da Rua Maria das Flores, sorte que tinha um mecânico ali perto... se importam de andar até lá? O cara prometeu que terminaria tudo até o meio-dia.

  Nós três nos entreolhamos.

  - Mãe, o que houve? - Puxei-a até o sofá, onde ela se sentou, confortável.

  - O carro já está velhinho... A bateria também não estava lá essas coisas, e aí resolveu pifar.

  - Você andou uns dois quilômetros até aqui, dona Miria. Não está cansada? Melhor tomar alguma coisa antes de voltarem. Podem até almoçar aqui se quiserem. - Maria às vezes conseguia fingir bem que tinha pelo menos um pingo de cortesia. Bom, ela nos deixara dormir em sua cama na noite passada, e me deu 150 gramas de nozes.

  - Tudo bem, querida. Acho que vou querer só um copo d'água, por favor.

  Maria foi até a cozinha, trazendo consigo um copo da Sailor Saturnus com água até a boca.

  Uma meia-hora depois, nos despedimos de Maria e fomos andando até o mecânico. Por sorte, a distância era menor do que pensávamos. Nossos corpos doíam por completo a cada passo, mas depois de tudo, era sorte ter que andar apenas um quilômetro.

  Pegamos o carro, que demorou uns 5 minutos até resolver ligar, e fomos a 90 km/h até em casa, numa rua de paralelepípedos.

  Depois de sermos massacrados, batidos e nocauteados, precisamos de alguns minutos para conseguirmos sair do carro. Mas logo a tontura passou, quando sentimos o cheiro de comida novinha vindo da cozinha.

  - Vocês dois querem bife ou frutos do mar?

  - Frutos do mar! - Eu e Allen respondemos ao mesmo tempo, enquanto fui até meu pai/cozinheiro preferido para abraçá-lo.

  - Mas que novidade. Quer dizer que os dois frajolas deram fim na minha bicicleta?

  Que bom que ele só se preocupava com a bicicleta. E aposto que ele nem sabia o que era um frajola.

  - Eu não vou gastar meu dinheiro até você ver isso na polícia. - Disse, beliscando as batatas fritas.

  - Eu sei, eu sei. Aonde o Allen foi? 

  Olhei em volta. Ele havia sido abduzido. 

  Fui até o meu quarto, onde o achei falando no meu celular. Me escondi atrás da porta, para ouvir o que dizia. Se fosse a cobrar, seriam suas últimas falas, devendo ser guardadas com carinho.

  - Eu pedi pra você falar com ela!

  Falar com quem?

  - Não, criatura miserável, não era sobre isso!

  A única criatura miserável com quem ele poderia estar falando era com Maria.

  - Logo de manhã eu te falei. Disse que conversei com ela. Não estávamos até planejando como seria? Só falta ela aceitar.

  Aquilo não me cheirava nada bem.

  - Mas ela disse que queria aprender bateria. É, ela me contou. Eu aprendo baixo, você toca o teclado, o Jack pode aprender guitarra e a Bel fica com a percurssão.

  Ah, não. Não, não podia ser. Eles estavam planejando aquela ideia maluca de formar uma banda pelas minhas costas!

  - Hum, não sei, acho que depois de tudo que aconteceu... e nem a conhecemos direito. Eu sei que ela é ótima na guitarra, canta pra cacete e tudo o mais, mas sei lá, devíamos falar mais com ela antes.

  Ok. Bastava.

  - Allen, você é um idiota. Eu já disse um milhão de vezes que não vou formar droga de banda nenhuma com vocês, parem de planejar essas coisas absurdas! E vocês nunca trocaram uma palavra com a Sabrina, então parem de meter a garota no meio das suas maluquices!

  - Acho que ela descobriu. Depois nos falamos. - Ele desligou o telefone e deu um sorriso estúpido para mim.

  - Pode começar a explicar.

  Ele respirou fundo e me encarou, sério.

  - Ok, ok. Foi errado de minha parte esconder isso de você. Mas que bom que você descobriu agora, assim sai esse peso da minha consciência.

  Lá vinha bomba.

  - É o seguinte. Bom, primeiro que nós trocamos uma palavra com a Sabrina, sim. Várias, na verdade. Depois do show de talentos, Maria e ela tiveram uma conversa. A Sabrina foi elogiar a Maria, e tals, e as duas começaram a conversar pra valer. Aí a Sabrina revelou que tocava numa banda quando estava na sexta série, mas que as pessoas acabaram mudando de colégio, não se falando mais, além de outros problemas com dinheiro, espaço, essas coisas.

  - Dá pra ir mais rápido?

  - Não, os detalhes são importantes. - Suspirei, impaciente. - E ela acabou dizendo também que queria voltar a ter uma banda, pois era muito melhor para tocar do que sozinha. Maria ficou toda animada com a ideia e sugeriu que o fizessem juntas. Aí ela acabou falando demais e nos envolveu na história. 

  - Típico...

  - Pois é. Mas acabei pensando e gostei da ideia. Eu estava há uns três anos protelando meu curso de baixo, ficava só dedilhando em casa, meu pobre Jacques-Clouseau - Fiz uma careta com o nome. - já estava ficando com as cordas enferrujadas. E não faça essa cara, é um nome lindo. Enfim, por isso perguntei aquele dia. Eu e Maria combinamos de te convencer hoje de manhã, mas a imbecil esqueceu.

  - Peraí, quando vocês combinaram isso? E como fica o Jack nessa história?

  - Ah, eu acordei cedo hoje e nós conversamos. Quanto ao Jack, você sabe que ele topa qualquer coisa.

  - Vocês são zumbis.

  - Você que é, só que no outro sentido.

  Ficamos em silêncio um pouco. Finalmente falei:

  - Então vocês querem mesmo fazem isso, hein? - Encarei-o, com um pequeno sorriso.

  - E eu não entendo porque você não quer.

  Suspirei, aborrecida.

  - Eu já disse o motivo. Gosto de coisas planejadas e que tenham um objetivo claro.

  Ele olhou em meus olhos, cínico.

  - Eu acho que não é por isso.

  Estava começando a ficar irritada.

  - Droga, Allen, por que você tem que complicar as coisas? Simplesmente aceite minha decisão! Não vou, e pronto!

  - Eu paro de te perturbar se você me falar o que é. Não sabe mesmo mentir, hein?

  Fechei os olhos e pensei um pouco. Séria, disse:

  - Promete que não vai rir nem dar palpite?

  - Prometo.

  - É uma história meio longa.

  - A minha também foi, comece.

  - Jura que vai parar de me encher o saco?

  - Começa logo, caramba!

  - Que seja. - Respirei pausadamente antes de começar. Allen estava impaciente à minha frente. Sentei-me no chão. - Você sabe que eu quero aprender a tocar bateria, não é?

  - É, você disse.

  - Bem, desde criancinha eu queria aprender. Eu ficava batucando nas coisas com meus lápis de cor, e achava que estava arrasando com minhas batidas sem sincronia. Minha mãe já estava de saco cheio do meu barulho e resolveu me colocar num curso. Durante dois anos, fiquei super animada. Mas comecei a me deprimir quando vi que, mesmo me esforçando diariamente, meus colegas haviam avançado bem mais do que eu, e sempre precisavam me ajudar. No concerto da escola, ficamos em quinto lugar só porque eu errei. Os outros ficaram com raiva de mim, e fiquei muito triste. Decidi desistir. Minha mãe e meus amigos do colégio diziam que eu tocava muito bem, mas não acreditei. Desde os 8, 9 anos que não toco, porque tenho medo de ser um fardo para os outros.

  Allen me encarou por alguns segundos. Sua boca começou a se retorcer. Então, ele começou a dar gargalhadas altas.

  - Você prometeu que não ia rir, seu idiota. - Chutei seu tornozelo.

  - Desculpe, mas idiota é o que você disse.

  - É o quê? - Eu ficava realmente muito irritada quando alguém achava meus motivos sem importância.

  Ele se levantou e pegou o violão que estava escorado na parede debaixo da janela. Voltou a sentar na cama, e começou a tocar algumas notas separadas. De repente, ele começou a dedilhar alguma coisa que me lembrava Fly me to the Moon.

  - Eu treinei por três anos.

  Não me aguentei e comecei a gargalhar. Foi a vez dele de se irritar.

  - Muito engraçado, huh?

  Arranquei o violão de sua mão e comecei a batucar em suas costas. Continuei Fly me to the Moon de onde ele havia parado, mas o que ouvi foram apenas uns barulhos desritmados. 

  Quando acabei, ele me olhou nos olhos, perplexo.

  - Minha filha, onde diabos você está ouvindo erros aí? 

  Ok, por essa eu não esperava.

  - Eu toquei tudo errado.

  - Não. EU toquei tudo errado. Sua bateria estava quase perfeita. Lembre-se de que a percussão não é o mesmo ritmo da música, é só um marcador. Acho que o quinto lugar não foi por causa de você...

  - Claro que foi, os outros sempre me ajudavam porque eu não sabia!

  - Acho que eles que estavam errados. Ou então tentavam aprender contigo.

  - Isso é ridículo. Você não sabe de nada.

  Me levantei e saí do quarto, irritada.

  Fui até a sala, onde me sentei no sofá e peguei meu Ipod, que estava solto em cima da mesa de centro. Botei os fones de ouvido e liguei o aparelho, selecionando Fly me to the Moon na lista de músicas.

  Ouvi-a  umas quatro vezes. Desliguei o Ipod e tentei batucar o percussão da música na mesa. Depois, tentei fazê-lo acompanhando a música.

  - E agora, sei de alguma coisa?

  Olhei para Allen, encostado na entrada da sala e sorrindo sarcasticamente para mim.

  - Eu não entendo. Por que diziam que estava tudo errado?

  - Me diga, quando foi isso?

  - Bom, eu tinha uns 7 anos...

  - E quando você começou a fazer o curso?

  - Com 7 anos.

  - E quando foi o tal concerto da escola?

  - Quando eu tinha 7 anos.

  - Quando você tinha 8 anos, eles continuaram querendo ensinar as coisas pra você?

  Pensei um pouco. Na verdade, com 8 anos, fui a primeira a apresentar na bateria. Mas ninguém falava comigo. Nesse ano, me lembrei também que comecei a minha fase gótica.

  - Na verdade ninguém nem me olhava na cara. Acho que tinham um pouco de medo de mim, já que eu só usava preto e crucifixos 24 horas por dia.

  - Pois é. Achei a sua falha.

  Ele andou e se jogou ao meu lado no sofá.

  - Você sabia tocar bateria sim. E continua sabendo. Ninguém falava nada porque seus colegas tinham medo que a rainha das trevas os matasse.

  Olhei-o nos olhos.

  - Você não está falando sério. 

  - As outras pessoas te elogiavam, não é?

  - É, mas eram pessoas próximas...

  - Lembra quando sua mãe deu opinião sobre a tua roupa de formatura?

  - Sim, aquilo me ofendeu bastante. O vestido era tão lindo...

  - Pois é, ela foi extremamente sincera. - Ele deu um risinho. Dei um tapa em sua perna. - Com a bateria foi a mesma coisa.

  - Mas ela deve ter dito aquilo só porque sabia que eu estava me esforçando.

  - Você ficou 2 meses trabalhando em um curso de italiano para comprar aquela roupa.

  Eu o odiava. O pior de tudo é que ele havia me convencido.

  - Yosh! - Ele se levantou. - Temos uma banda completa, então.

  Voltei à realidade num instante.

  - O quê? Quem disse? Eu não concordei com nada, imbecil, pare de querer tomar decisões por mim.

  Ele me olhou carinhosamente e bagunçou meus cabelos.

  - Você fica linda quando tenta enganar os outros. - Ele riu alto, me irritando ainda mais.

  - Tentar dar uma de Jack também não vai funcionar.

  - Não preciso.

  Ele sentou ao meu lado, com uma expressão extremamente suspeita. Ficamos em silêncio por cerca de cinco minutos, quando a campainha tocou. Me levantei para atender, mas Allen rapidamente correu até a porta.

  - Eu atendo!

  Nesse momento, ouvi uma voz conhecida vir de fora.

  - Não acredito... - Bati em minha testa e fui até a entrada.

  - Jack, que infernos te fizeram vir aqui a mando deste ser deplorável?

  - Vontade de te ver. Não posso te visitar?

  Meu coração deu tilt nesse momento. Sorri como uma idiota e pulei em cima de meu namorado, beijando-o.

  - É, parece que a banda está formada. - Allen voltou para o sofá.

  - Então, você acha que eu aprendo a tocar guitarra?

  Olhei-o, séria.

  - Talvez em um ou dois anos. Talvez menos, você já sabe violão.

  - Eu sou o único aqui que não toca nada, por acaso? - Ouvi Allen choramingando, indignado.

  Puxei Jack até o sofá, e pus Allen em meu colo.

  - Cara, você não treinava baixo há uns 3 anos ou mais? Como você não sabe tocar?

  Allen começou a chorar ainda mais.

  - Bem onde dói...

  Jack puxou o rosto de Allen para si. 

  - Não se preocupe, eu posso te ensinar algumas coisas.

  Allen corou. Não resisti.

  - Ah, que lindo! Beija!

  Os dois me encararam, sérios.

  - Yaoísta dos infernos... - Eles se irritaram, afastando as cabeças.

  - Desculpem. Meu ponto fraco. - Apertei o peito na região do coração.

  - E as nozes. - Disse Jack.

  - E o Jack. - Allen completou.

  - E o Às de espadas.

  - Pois é, ela roubou os do meu baralho para fazer um mural, acredita?

  - Calem a boca, os dois imbecis.

  - Ela ama a gente.

  Corei.

  - É, amo. - Abracei os dois.

  Dez minutos depois, meu pai gritou:

  - Almoço pronto!

  - Vamos comer logo, estou morrendo aqui. - Allen saiu em disparada até a cozinha.

  Eu e Jack nos entreolhamos e demos alguns beijos. Depois, seguimos a rota do baixinho faminto.


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Notas finais do capítulo

* Tipo de pão muito famoso no Japão, feito de uma massa leve com recheio de doce de feijão azuki.