Magnum escrita por Miss Black_Rose


Capítulo 1
Capítulo 1




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Ada olhou para trás.
Ela jamais olhava para trás, mas naquele instante sentiu-se forçada a fazer isso. Uma grande explosão tomou conta de tudo. Uma onda de labaredas, morte e destruição se esparramou ao redor de um único ponto. Foi como um grito de desespero e alívio. Raccoon City havia ido para os ares e a jovem espiã não queria passar por nada daquilo novamente, embora soubesse que era só o começo.

* * *

Johnathan acordou junto com o dia e quando as primeiras madeixas de luz coraram o horizonte ele pôde ver do prédio mais alto que Hong Kong estaria magnífica. Não sabia se era por uma questão de patriotismo, mas ele amava aquela cidade. Amava observá-la desde as primeiras horas da manhã com uma xícara de chá quente na mão. Da janela de seu luxuoso e desarrumado apartamento podia ver quase tudo, se não fosse pela intervenção de alguns prédios, e, mesmo assim, podia curtir a sensação de que tudo estava sob seu controle. “É brincar de Deus”, pensava consigo e tinha quase certeza de que era mesmo. Sob a mira de seu rifle podia ver todas as ruas, observar a vida de todas as pessoas, de todas as vítimas. Podias selecioná-las a dedo, mirar e atirar. E sem ao menos desconfiarem de si.

Bastava um telefonema, apenas um, e o click estalado do gatilho seria inevitável.

O jovem atirador concordava que não era um método de trabalho muito justo, mas era o menos cruel de todos os que já tivera. Nesse, pelo menos a vítima morria sem dor, ao contrário do que muito acontecera enquanto trabalhara para o serviço secreto. Não que ser franco-atirador não fizesse parte dessa área, mas pelo menos o nível de tensão diminuía bastante, além do mais esse emprego lhe proporcionava segurança, afinal, estava sob as asas do governo chinês, tinha justificativas contra todas as suas ações e atirar em uma pessoa na multidão o entretinha de forma assustadora. Precisava, contudo, ser cauteloso, o resto vinha fácil e de forma tão rápida que mal percebia com quantas vidas liquidava por dia.

Sentia-se no emprego perfeito. Nunca errara um tiro em sua vida, nem nas remotas épocas de treinamento.

O rifle estava armado sobre o parapeito da janela, onde, um grande vitral se erguia, camuflando sua localização em meio à cidade. Um esconderijo escandaloso, contudo minuciosamente planejado de acordo com a mentalidade das pessoas. O tiro, assim que liberto das entranhas metálicas do rifle, poderia vir de qualquer um dos prédios alinhados na rua, mas na imaginação dos pobres transeuntes, já contaminados pela cultura religiosa ocidental, o culpado jamais estaria por detrás da figura celeste estampada na enorme vidraça. Seria inconcebível, até mesmo de forma política e social, que isso ocorresse. Aquele prédio representava um dos patrimônios da cidade e não só era remunerado de dezenas de seguranças como também de centenas de turistas vindos de todas as partes do mundo. Seria uma grande ousadia utilizá-lo para fins tão bizarros, contudo, como John costumava pensar, a imaginação afasta as pessoas da realidade e as crenças em algo abstrato deixam-nas à mercê dos grandes perigos. Partindo daí, o governo chinês dera a ele o importante o cargo de ser mais silencioso de seus predadores e o mais divino de seus assassinos.

Com a ligação de seu contato há pouco menos de cinco minutos, armara o rifle cuidadosamente dentro de uma fenda discreta no vitral. Seguindo um procedimento detalhado que aprendera ainda jovem com seu pai, regulou perfeitamente cada centímetro da arma, enquanto de forma serena, tomou seu último gole de chá. Posicionou o olho direito rente à mira, deixou uma voz pausada ditar ordens em um ponto no seu ouvido. Estava calmo. Nunca perdera o controle em situação alguma em sua vida, mesmo nos períodos turbulentos em que fora espião ativo. Agora era apenas um atirador. Um mero atirador à serviço de seu governo e seu olho lívido observava uma multidão colorida nas esquinas apertadas, esperando serenamente qual daquelas vidas iria arrebatar.

Suave e incessante, a voz no ponto descrevia os pormenores da situação. Aos poucos a vítima tomava forma em sua mente, conforme cada detalhe era revelado:

- seu objetivo é uma mulher, 1,70 m, cabelo curto... Está a quinze minutos da esquina. Assim que cruza-la, deverá acertá-la na cabeça. – dizia a voz. – veste seda verde, tem um xale rosado sobre os braços.

Johnathan estranhara a maneira em que o serviço viera nos últimos dias. Antigamente enviavam-lhe pacotes sigilosos, repletos de fotos das vítimas e até mesmo a roupa que estariam usando no dia seguinte, quando seriam executadas. Contudo, o nível de sigilo parecia aumentar à cada tiro que disparava e agora tinha de se ater às descrições de um contato e torcer para que aniquilasse a pessoa certa.
A voz suave, entornada de um tom ameaçadoramente misterioso, continuava do outro lado da linha:

- ela estará de costas para nós. Está acompanhada por um homem, 1,64m, acima do peso, careca...Veste um terno inglês, saberá reconhecê-lo.

John se concentrou na mira. Sem demora encontrou entre a multidão colorida e os carros polidos um casal que coincidia perfeitamente com a descrição. Ambos de costas para ele, embora de forma suspeita o homem se virasse constantemente para trás. Concentrado, o atirador imaginou quem realmente seria aqueles dois. Se eram mesmo os culpados pelo que quisesse que fosse.

Aquela iniciativa do governo em deixar de enviar-lhe as fotos parecia muito suspeita e aumentava o risco de um tiro errado em 40%. Ele poderia confundi-la com uma pessoa comum facilmente, já que em uma multidão daquele tamanho, eram poucos os que não tinham os mesmo traços, ou que usavam uma cor de roupa parecida. Mesmo com todos os pormenores informados por seu contato, ele se perguntava se era aquela mulher mesmo o seu objetivo. E se fosse a do lado? Ou a mais próxima da esquina. Haviam pelo menos quinze mulheres vestindo seda verde, vinte com cabelo curto e mais uma centenas de 1,72 m de altura. Alem do mais, tinha a cruel impressão de que a mulher sob sua mira lhe era familiar. A maneira como se movia, o vestido de seda verde tão rente ao corpo jovem, a forma com a qual cruzava os braços num movimento abnegado. John tinha a impressão de que a conhecia de algum lugar e imaginou se não estava para matar alguma de suas amigas da noite, embora ela não lhe lembrasse o jeito das prostitutas.

Os dois alvos andavam devagar na calçada contrastando com as outras centenas de pessoas, ansiosas para passarem logo. John os acompanhava submerso ao seu dever. Sempre fora de fácil concentração, desde pequeno quando o pai lhe ensinara pela primeira vez a caçar aves. Depois do treinamento militar, conseguira aperfeiçoar essa capacidade, de modo que se o mundo virasse do avesso ao seu lado, ele manteria sua mira impecável. Mas havia suas desvantagens também. Uma vez submerso em seu objetivo, ignorava qualquer coisa que pudesse acontecer ao seu redor. Tornava seu alvo excepcional e bloqueava tudo à sua volta. Era algo compensatório à dislexia do qual sofria desde o nascimento. Seu mal, eterno de esquecer senhas, números e nomes, que por essas e outras o afastara de grandes missões. Contudo, de certa forma não se importara. Conseguira chegar ao topo e era um dos agentes melhores remunerados de seu governo.

Ver a tal mulher de costas estava começando a deixá-lo intrigado. Quem realmente era? Porque não podia ver seu rosto? Percebeu em como o homem troncudo e mal-intencionado a desejava, em como seus movimentos hesitavam em tocar seu corpo de porcelana, em como suas mãos tentavam se aproximar da curva harmoniosa de sua cintura tão bem feita. E por um momento desfrutou do mesmo prazer que ele, querendo saber se algum dia aquela mulher já fora sua.
A distância entre ela e a esquina diminuía aos poucos e a cada passo que ela dava, John lamentava por sua morte. O contato o alertou assim que alcançaram a distância de três metros. Embora se sentisse inevitavelmente atraído, a sensação de que havia algo diferente naquela mulher persistia em John. Seu movimento lhe trazia recordações remotas. A maneira como juntava os braços segurando o xale, como andava pausadamente não se importando com os outros na rua, seu tédio perante todo aquele caos metropolitano. De onde a conhecia? Se pelo menos se virasse antes do momento fatal, se por alguma casualidade olhasse para trás...

O homem troncudo voltou os olhos para os prédios, como se soubesse que o atirador estava por ali, às espreitas. Procurou ansioso por algo, um sinal qualquer. E Embora estivesse estranhamente agitado, via-se em seus olhos uma malícia corrupta, algo desagradável que revelava todo o seu caráter inescrupuloso, banhado de uma sedução criminosa. Um sorriso estranho partiu de seus lábios enquanto olhava à sua volta. Um sorriso fino e repugnante, que por um momento provocou em Johnathan uma vontade quase avassaladora de matá-lo. Sem desmanchar o sorriso, o homem arrumou os óculos arredondados com o indicador gordo e voltou-se para sua companheira dizendo algo que ela prontamente ignorou.
John imaginou se aquele não era um objetivo tolo. Se por um acaso, aquele homem troncudo e nojento não fazia parte da Sede política e se por algum bizarro capricho desejava se vingar da amante. Não era algo difícil de acontecer, na verdade, acontecia até com muita freqüência, mas o fato era que não fazia parte de sua área. Seu objetivo em geral era matar os grandes inimigos do governo, e não uma mulher resistente aos apelos de um político.

No momento estavam há um metro e meio da esquina. John parou de pensar. Fosse qual fosse a razão não importava. Apenas cumpriria seu dever. Mas imprevisivelmente sua respiração se tornou pesada. Uma espécie de arrepio frio lhe subiu pela coluna. Nunca sentira aquilo antes. A voz do contato se calara deixando-o à vontade para o tiro, e pela primeira vez percebera quão frio e silencioso era a sala em que estava. Incomodou-se singularmente. Tentou voltar ao estado submerso, mas algo o impediu, seu corpo pareceu se rebelar. Uma gota de suor escorreu por sua face, revelando que, pela primeira vez na vida, estava nervoso no momento mais crucial de uma missão. As possibilidades de errar o tiro aumentaram. Um espasmo estranho tomou conta de seus dedos. John viu a mulher a menos de dois passos da esquina, o homem ansioso ao seu lado e mirando em sua cabeça preparou-se para dar o tiro, quando inesperadamente o homem troncudo a segurou pelo braço, parando-a no meio de todos.

Como se o tempo atrasasse e por breves segundos tudo se movesse lentamente, John observou a mulher se virar pouco a pouco para trás, atendendo automaticamente ao chamado do pequeno homem. Os fios lisos de seu cabelo se afastaram vagarosamente, revelando aos poucos um rosto jovem e bonito, que assombrou o atirador. Seus olhos amendoados, de um cinza familiar encontraram-se com os dele, embora estivessem muito distantes para que ela soubesse o que havia naquela direção. Alguns segundos prodigiosos foram suficientes para conturbá-lo. Inevitavelmente, tomado por um terror psicológico, o agente se afastou do rifle e caiu perplexo no chão. A voz do contato bradou no ponto, mandando-o atirar. Johnathan arfou, tomando conta do erro que cometeria, e com uma espécie de ódio misturado com o temor que lhe dominara, lançou o ponto contra a parede. Pôs a mão contra a testa suada e olhou para a imagem estampada no teto. Um anjo o encarava com singelo deboche e em uma das mãos brandia uma lança apontada em sua direção. John espremeu os olhos. Uma dormência fria tomando conta de seu corpo. Algo que jamais havia sentido antes. Ele estava prestes a matar a própria irmã.

Ele estava prestes a matar Ada.


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