Anjo da Noite escrita por MsWritter


Capítulo 71
Capítulo 71. Tempo


Notas iniciais do capítulo

Olá. Faz bastante tempo que não escrevo. E isso não se deve a falta de criatividade ou tempo, mas pura relutância da minha parte. Acontece que durante muito tempo Vlad foi uma parte de mim. Uma parte que me confortava saber que estava onde o deixei no capítulo anterior: eternamente jovem, eternamente contente e com um futuro brilhante pela frente. Mas um momento é apenas o que é e não nasceu para ficar congelado no tempo. Não, essa não é uma história que termina com algo tão vago quanto felizes para sempre. Havia um ar de finalidade no capítulo anterior. Capítulo que foi, de fato, o fim de uma parte da história. Alerta de spoiler: se procuram um fim como aquele, talvez devessem parar naquele capítulo. Para aqueles que chegaram até aqui, muito obrigada. Sei que foi um percurso lento, mas foi muito importante para mim. Para aqueles que vão me acompanhar adiante ainda, nem tenho palavras.

No mais, o primeiro trecho do texto é uma tradução do Kojiki, copiada integralmente do blog da bungaku (http://bungakuuu.blogspot.com.br/2012/03/kojiki-traducao-continua-capitulo-1-2.html). A música é Summertime, de George Gershwin. Sugiro a versão da Janis Joplin.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/92874/chapter/71

Summertime, time, time,
Child, the living's easy.
Fish are jumping out
And the cotton, Lord,
Cotton's high, Lord so high.

Your daddy's rich
And your ma is so good-looking, baby.
She's a-looking good now,
Hush, baby, baby, baby, baby now,
No, no, no, no, no, no, no,
Don't you cry, don't you cry.

 

— ... “Izanami já não via Izanagi da mesma maneira: ela fascinada pela sua beleza, presença e força. Ela pediu-o então em casamento. Ele aceitou sem hesitar. Tudo poderia ter sido perfeito, mas o nascimento do seu primeiro filho trouxe os primeiros problemas. Esse tinha nascido sob a forma de um horrível verme. Os dois abandonaram a abominação numa barca feita de canas de bambu. A segunda criança foi igualmente monstruosa. Decidiram então interrogar os Kamis. Para tal, eles deveriam voltar para o reino implantado na via láctea: Takamanohara. O casal mais antigo explicou-lhe que o seu casamento era a fonte de infelicidade: com efeito, apenas Izanagi podia pedir em casamento a deusa e não o contrario. Os dois subsistiram então no lugar dos Deuses. Porém os dois encontravam-se muito infelizes e já não se falavam. O tempo passou e Izanami recordou a época maravilhosa do início do seu amor. Ela correu então para regressar a sua pequena ilha. Izanagi viu-a e considerou-a tão bela e radiosa que não tardou a segui-la. O pequeno pedaço de terra era agora vestido de um luxuoso manto de verdura. Izanagi sentia-se renascer do seu amor reencontrado e pediu Izanami em casamento. Fez-lhe um grande sorriso e os dois voltaram a casar. A maldição foi levantada. Os seus primeiros filhos foram primeiro ilhas: A primeira Awaji, a segunda Shikoku, Oki, Kyûshû, Tsuhima, Honshû e Hokkaido. Seis novas ilhas nasceram a seguir, seguidas por mais de 3000 pequenas ilhas. Foi assim que nasceu o Japão chamado na altura Wakoku.

Os dois recém-casados não se ficaram por aqui. Deram nascença a todos os Kamis que se encontram agora na Terra: Kami das árvores, das montanhas, das pedras, das plantas e das flores, dos mares, dos lagos e dos rios.

 

O seu primeiro filho foi Owatatsumi o senhor dos oceanos. Depois, Izanami deu nascença a Kamihaya Akitsu Hiko que controla as terras e Haya Akitsu Hime que controla a superfície do mar. Múltiplos Kamis surgiram pouco depois.

 

Izanami deu então nascença ao Kami do fogo, Kagutsuchi no Kami. O parto acaba porém tragicamente: Izanami morre queimada pela incandescência da sua progenitura.

 

Antes de morrer, da sua boca surgem Kanayama biko e Kanayama hime, os deuses do metal, assim como Haniyasu hiko e Haniyasu hime, deuses da terra.

 

Izanami juntou-se ao Reino das Sombras. Assim nasceu, pela primeira vez, a morte e as suas consequências: a decomposição e o luto.”

O homem contando a história parou por alguns segundos a olhar as crianças que o ouviam ávidas. Como se aquelas palavras fossem a primeiras gotas de chuva a serem absorvidas pela areia do deserto. Crianças que nunca ouviram uma história. Crianças que tiveram a infância afogada em mais sangue que lágrimas. Crianças que nunca seriam nada além de órfãs de guerra.

— É um homem cruel, andarilho. Um conto de fadas sem o felizes para sempre?- Perguntou o homem que ouvia à distância, sentado em uma grande pedra que o tempo falhou em transformar em areia.

— E quem disse que este é o fim, general?

O homem apenas ergueu uma sobrancelha.

— Izanagi é um deus, e como tal cabe a ele ir ao mundo dos mortos buscar sua amada. – Continuou o andarilho.

—Ele a traz de volta?

— Não. Porque não importa quão bela seja a matéria, ela está fadada a um fim. Mas a vida é contrária à morte e do que parece um fim surge um novo começo.

— Sua fé é ridícula. – Vlad murmurou, finalmente se levantando para voltar aos seus afazeres.

— Eu entendo a minha fé. Entende a sua, general?

— A fé não deve ser entendida. Se o fosse, não seria fé. – Respondeu Vlad.

— Como pode um homem dar sua vida e a de outrem, por algo que não concorda? E como pode ele concordar com algo que não entende? – O andarilho perguntou.

Vlad, que já estava longe o suficiente para fingir que não ouviu o que o velho disse, simplesmente continuou a andar.

 

— Por que a gente tem que correr tanto? Eles acham que a gente vai conseguir fugir de um lobisomem? – James, um dos soldados treinando naquele momento, perguntou.

— Você nunca vai correr mais que um lobisomem. O máximo que você pode esperar é correr mais que o último da fila. – Respondeu Charles, o soldado correndo na frente dele.

— HA! Se o último da fila for o conde, eu nem preciso treinar! – Respondeu James. Imediatamente o soldado levou um tapa na nuca e quase perdeu o equilíbrio enquanto corria.

— Se você tiver o privilégio de participar em uma missão supervisionada pelo conde em pessoa, lembre-se que ele não precisa correr, então sua suposta vantagem não vai adiantar de nada. – Disse o comandante Willians, despreocupadamente passando por eles na corrida.

— O que diabos ele quis dizer? – James perguntou.

— Dizem que o conde é capaz de comandar vampiros e lobisomens só com o olhar. Eu não duvido. Já conheceu a esposa dele? – Charles murmurou, olhando por cima do próprio ombro para fitar o outro soldado.

— Conde Dracul? Sério? Aquele com os óculos e a bengala? – James continuou.

— Céus... Seus pais nunca te contaram nenhuma história da época da Grande Gripe? Ou pior, você não conversa com os que estão aqui há mais tempo? Aquele homem, vinte anos atrás, impediu a ressurreição de um demônio, bebeu chá com A Criança, fez com que o próprio Renegade caísse de joelhos a seus pés e desposou a Dama de Ferro da Inglaterra. E você vai subestimá-lo por causa de uma bengala e um par de óculos? – Charles disse, antes de também acelerar o passo e sair correndo.

James ficou para trás, chacoalhando a cabeça. O conde? Sério?

.

.

.

Vlad terminou de juntar seus papéis, pegou sua bengala que estava apoiada ao lado da mesa e se levantou, sem pressa. Apesar de seus últimos anos terem sido razoavelmente gentis com seu corpo, não havia como negar que o tempo estava passando. E rápido. Apesar de os fios acinzentados serem uma adição recente, não havia como negar a presença das mechas quase que definidas que apareceram em suas têmporas, pouco antes de ele completar quarenta e cinco anos, ou os fios dispersos pelo resto de sua cabeça. Os óculos vieram antes dos trinta, quando seus olhos claros sucumbiram não à idade, mas à claridade do dia, ao esforço da leitura e às horas e horas de treino contra alvos que se moviam na escuridão. Já a bengala era motivo de desgosto e certa ironia que sempre o divertia: depois de tantas batalhas, nesse ou em outro século, foi em uma partida de futebol contra as crianças de Mihaella que o conde finalmente sofreu um ferimento que deixou marcas mais expressivas que cicatrizes. Uma bola no lugar errado, uma criança que tropeçou e um conde que tentou segurá-la, resultando em um Vlad que caiu sobre o próprio joelho, deslocou a patela e nunca mais conseguiu andar sem o auxílio de uma bengala. De todas as formas que aquilo podia ter acontecido, Vlad quase estava grato pelo motivo.

Já de pé, Vlad fechou os olhos e respirou fundo, tentando em vão amenizar aquela sensação de que o chão estava aos poucos escapando por debaixo de seus pés, como a areia que as ondas do mar tomam para si, apenas para descartar de volta para a praia com seu próximo movimento. Respirou fundo mais uma vez e resolveu que aquele momento seria tão propício quanto qualquer outro para dar os dez passos que precisava para cruzar o escritório, os vinte e dois necessários para chegar até o elevador e depois os quase cinquenta para chegar até o carro que estaria parado na entrada do prédio.

Vlad sorriu para os próprios pés, lembrando-se perfeitamente bem de quando aprendeu quantos passos eram necessários para sair de sua cadeira e chegar até o veículo que o transportaria até a mansão. Onde desceria do carro e precisaria subir quatro degraus para chegar até a porta. Quantos passos eram necessários do veículo até o haras, onde os cavalos que não podia mais montar ainda eram cuidados com esmero. Aqueles passos estavam ficando mais difíceis a cada dia. O sorriso de Vlad não era feliz, mas também não havia tristeza em seu peito, apenas as batidas desesperadas de um coração enfraquecido. Talvez fosse a hora de parar de ir até o escritório, aceitar o conselho de Mihaella e trabalhar de dentro da mansão. Talvez fosse a hora, afinal.

Vlad acordou naquela manhã com pálpebras pesadas e olhos sensíveis à luz, confuso se as formas distorcidas e brilhantes que via eram resquícios de um sonho. Saiu da cama com pesar, lentamente se preparando para o dia. O banho quente mais sugou suas energias que o acordou e vestir-se foi um processo vagaroso. Ao servir-se de seu café da manhã percebeu que não tinha fome, só aquela estranha impressão de que ainda devia estar dormindo, que as formas do dia eram um sonho estranho do qual não conseguia acordar. Da porção que lhe foi servida, comeu o que seu estômago lhe permitiu. Quase um terço do que deveria. Deixou a mansão sob o olhar de sua esposa, que apenas lhe informou que ela tinha uma reunião com o príncipe naquela tarde, que estaria na mansão quando ele voltasse. Vlad passou o dia no escritório lendo relatórios sobre as tropas, que ele percebeu não necessitar de leitura. Não com Celas e Willians supervisionando as operações e deixando escritas exatamente as sugestões de ação que o próprio Vlad ordenaria.

Fechou a porta do escritório e se preparou mentalmente para os passos que faltavam até o elevador, ignorando o mundo que se distorcia diante de seus olhos. Estava pior naquele dia que nos anteriores.

—Vlad. Você precisa de ajuda?- Celas perguntou. A vampira estava parada no meio do corredor, vazio a não ser pelos dois. Vlad sorriu o mesmo sorriso sem humor, alegria ou tristeza de outrora. Celas tinha ainda a mesma aparência de vinte anos atrás. Nada em sua pele, em seu tônus ou em sua vivacidade mudou e provavelmente jamais mudaria. Imutável, a não ser por seu olhar, que revelava sua verdadeira idade. Vlad se perguntou como ela se pareceria nos próximos vinte anos, nos cem seguintes: como os olhos de um ser tão antigo ficariam em seu corpo quase de menina, quase de mulher.

—Quantos anos você daria para os meus olhos?- Ele perguntou em vez de responder à pergunta dela.

—Vlad?.

O conde nada respondeu, olhando para sua própria mão, que segurava a bengala. Sua pele havia envelhecido, mas não como a de alguém velho. Talvez estivesse só ressecada.

—Você está mais pálido que o normal, Vlad.

—Eu... Acho que esqueci de almoçar hoje, Victoria.

Celas se aproximou, pegou a bengala da mão dele e colocou o próprio braço no lugar. Um apoio muito mais eficiente, sem dúvidas. Juntos eles caminharam vagarosamente até o carro que aguardava para levá-los para a mansão.

Durante o percurso, Vlad fechou os olhos e contemplou as possibilidades do dia seguinte. Pensou em trabalhar da mansão, sem horários, sem pressa. Em abrir os olhos quando suas pálpebras se sentissem leves o suficiente. Em não se preocupar com o tempo de seu banho, com as roupas que vestiria. Em demorar toda a manhã para tomar seu café se necessário, em não te de lembrar-se de almoçar. Em ler inutilmente os relatórios que lhe eram enviados no conforto de seu sofá. Em não se preocupar com quantos passos seriam necessários para cruzar um maldito corredor. Com os olhos fechados e o rosto voltado para a janela, Vlad não conseguiu conter a única lágrima que escapou de seu olho esquerdo. Celas permaneceu em silêncio até chegarem à mansão, quando apenas o chamou para ajudá-lo a descer do carro.

 

 

One of these mornings
You're gonna rise, rise up singing,
You're gonna spread your wings, child,
And take, take to the sky,
Lord, the sky.

But until that morning,
Honey, n-n-nothing's going to harm ya,
No, no, no no, no no, no...

 

 

 

 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Anjo da Noite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.