Anjo da Noite escrita por MsWritter


Capítulo 40
Capítulo 40 . Vazio


Notas iniciais do capítulo

Quando uma criança como eu recebe uma indicação tão tocante quanto a da Mayumi chan, não pode fazer nada além de rir que nem uma tonta e começar a escrever um capítulo como se sua vida dependesse disso. Quero aproveitar a chance para agradecer à todas as demais indicações (e também aos reviews), vocês fazem parte da história, ajudando a definir o rumo dos personagens. Muito obrigada por tudo. Mayumi chan, este capítulo vai pra você!
A música de hoje é "Pra não dizer que não falei das flores", de Geraldo Vandré. Boa leitura.



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Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

O mundo ainda estava frio. E nevando. Os flocos branquinhos caindo pela janela pareciam distração o suficiente para Integra, que estava sentada em sua cama, embrulhada em um casulo de cobertores, saboreando seu chocolate quente transbordando de marshmallows. Uma verdadeira criança quando ficava doente, embora não quisesse admitir. Vlad não a deixava fazer nada e parecia disposto os suficiente pra lhe prover seus desejos mais absurdos (como uma xícara de marshmallows com chocolate quente e chantilly), então ela estava aproveitando para ver até onde aquilo iria. Mimada. Se bem que o prazo que Vlad a tinha confinado no quarto estava acabando. Amanhã.

Já Vlad... Estava quieto. Ele respondia o que Integra o perguntasse, mas sempre com respostas curtas, poucas sílabas, sem atenção ao que fazia e sempre, sempre longe dela. Ele não chegava a deixar o quarto, mas ficava o tempo todo em uma poltrona do outro lado do quarto. Começava a ler um livro e então a Hellsing percebia que as páginas não se moviam mais, que o olhar do rapaz parecia desfocado, e finalmente que ele estava perdido em um mundo de silêncio e perguntas não feitas. Minutos depois, o conde ia perceber que a loira lhe olhava, daria um sorriso que nunca chegava até seus olhos e voltava a ler, muitas vezes voltando à página anterior por não se lembrar mais do que se tratava.

Assim a vida na mansão continuava, tirando os momentos em que ele ia buscar alguma coisa que ela lhe pedia, ou simplesmente era o horário de alguma refeição que Integra não queria. Às vezes ela o via escrevendo alguma coisa no celular, outras atendendo ligações de forma quieta, mas ela não sabia do que se tratava. Uma vez perguntou e ele lhe respondeu que não era importante, ele já tinha resolvido. Mais tarde naquele mesmo dia, ela descobriria, em um dos raros momentos em que ele não estava com ele e tinha esquecido o celular para trás, que as mensagens de textos eram ordens de posicionamento para as tropas, eliminando os vampiros remanescentes da destruição do ninhos, poucos dias antes. As ligações, porém, eram para números que ela não reconhecia, em vários países, pelo que ela pode reconhecer dos códigos. Não teve tempo de investigar mais, já que Vlad voltara com uma tigela de sopa e torradas.

– Na hora do chá, não seria correto servir chá com torradas? – Ela perguntou, erguendo uma sobrancelha.

– Milady já deixou bem claro que não gosta do meu chá. E depois, achei que poderia fazer bom uso das calorias extras.

Calorias extras? Com toda aquela porcaria que ela vinha infantilmente exigido? Bom, talvez Vlad quisesse dizer “nutrientes”, mas ela achou melhor não questionar o inglês do rapaz, que já há tanto tempo não dizia uma sentença tão comprida para ela.

– Você fez aquele chá de propósito pra eu não gostar!

E ela tinha certeza daquilo. Integra nunca tinha tomado nada tão forte em sua vida: canela, alho, gengibre e limão, com um toque de alguma bebida destilada e caramelo. Vlad a obrigou tomar o chá inteiro logo após a primeira noite em que ficou doente e propositadamente a embrulhou em um edredom, fazendo questão de segurá-la na porcaria, o que só fez com que aquele inferno ficasse mais quente. Ela achava que nunca havia suado tanto em sua vida.

Tinha que admitir que se sentia bem melhor algumas horas depois,quando Vlad finalmente permitiu que ela fosse tomar um banho, mas diria isso em voz alta? Jamais, principalmente porque o chá era horrível mesmo.

– Que seja. – Ele murmurou, colocando a bandeja com a tigela perto dela na cama, para que ela mesma posicionasse o objeto sobre seu colo. Ela ia começar a comer, quando percebeu Vlad se afastar para ocupar mais uma vez sua poltrona, seus olhos perdidos  nos flocos de neve que ainda caiam, embora de forma menos constante.

Integra parou para olhar para Vlad, realmente olhar para Vlad, pela primeira vez deste que ele voltou do hospital. O rapaz estava mais magro, até ai nada alarmante tendo em vista que tudo o que aconteceu. O que ela não gostou foi perceber que ele estava mais pálido também, com um tom acinzentado de pele que muito lembrava o de Alucard, mas com um aspecto azulado nos lábios que nada lembravam os do vampiro. Os lábios de Alucard sempre mantiveram o tom avermelhado que o sangue tingia.

Pensando nisso, Vlad estava comendo alguma coisa? Certamente não dentro do quarto dela. Ela não tinha como afirmar nada, já que não estava com ele quando ele ia buscar suas refeições, mas algo lhe dizia que o príncipe... CONDE! Que o conde não comeria antes de lhe trazer o prato e ela tinha certeza que ele não estava comendo nada depois, já que estava ali com ela o tempo inteiro. Da hora em que ela acordava até a hora em que ia dormir.

Erguendo uma torrada em direção ao rapaz, Integra perguntou:

– Torrada?

Vlad desviou os olhos da neve, olhando-a com uma expressão quase alegre.

– Sim Milady, isto é uma torrada.

Integra sentiu uma veia em sua testa saltar e fechou a mão com tanta força que a torrada acabou virando farelos que se espalharam pelo quarto.

– Você é um imbecil! – Ela murmurou, antes de começar a enfiar colheradas de sopa na boca.

Vlad sorriu de novo, aquele mesmo sorrisinho de Monalisa que não mostrava dentes, muito menos alegria, antes de seu olhar se perder e voltar-se para a janela. Quando Integra se acalmou (leia-se, quando ela queimou a língua e resolveu parar de agir como um glutão), permitiu-se olhar novamente para Vlad, aquela sombra de homem sentado perto de sua janela.

– Você está morrendo.

Aquilo chamou a atenção do rapaz, que a fitou por alguns segundos, antes de ela continuar.

– Sempre perdido no nada, sem propósito, aqui o dia todo mofando nesse quarto junto comigo. Eu ainda vejo televisão, leio jornal, fumo meus charutos... – Vlad fez uma careta contra aquilo. Não queria Integra fumando enquanto ela estivesse resfriada, mas não conseguiu se impor sobre esse respeito. – E você Vlad? Fica ai, com esse livro, aposto que nem passou do primeiro capítulo. O que diabos você está lendo afinal?

Vlad olhou para o objeto esquecido no braço da poltrona, encarando-o como se ele tivesse lhe ofendido pessoalmente. Depois, relutante, pegou o livro, virando-o para ler a capa.

– Alice no país das maravilhas. De Lewis Caroll. Embora eu não ache que esse seja o nome do autor.

– Não é. É Charles Lutwidge Dodgson.

– Entendo. Victória nem sabia que era um livro, achava que era um desenho e...

– Vlad. O quanto você conseguiu ler desse livro?

Vlad baixou a cabeça, procurando as palavras em algum lugar de seu cérebro, há dias movido por pura inércia, quando não por explosões violentas de emoções.

– Eu começo a ler, mas ai aparece um gato que só sorri, ou um chapeleiro que sempre muda de lugar, ou então um cavaleiro que carrega a bolsa virada para a baixo e de repente eu já estou em outro lugar...

Integra achou melhor não mencionar que o cavaleiro era, na verdade, de Alice através do espelho. Não viu necessidade em mencionar o quanto Vlad estava desatento com o que estava lendo.

– Porque se eles sempre trocam de lugar, e quando chegarem ao começo da mesa? Ou a bolsa para baixo... O que quer que estivesse lá já caiu, não caiu? E mesmo assim, esse país das maravilhas parece um lugar tão mágico, onde esses problemas nem são percebidos...

– Alice percebe os problemas, é o que faz deles realidade. Acho que no fundo, todos nós podemos viver no país das maravilhas...

– O meu está destruído. – Ele murmurou. – “Aqui somos todos loucos”. Bom, não me sinto mais fazendo parte de minha própria vida.

Integra ficou olhando para um Vlad que se levantava e apoiava a cabeça contra a janela, a respiração morna criando padrões no vidro frio tão nítidas que ela podia enxergar de seu lugar na cama. Ela deixou a bandeja de lado, com passos cautelosos se dirigindo para onde o rapaz estava.

– Não consigo me lembrar de como era não me sentir vazio. – Ele murmurou, espalmando a mão não coberta em bandagens no vidro, sentindo a temperatura do gelo que se aglomerava do outro lado da janela. – Não sei mais como vivia minha vida.

Integra pousou a cabeça por entre as omoplatas dele, sentindo os pequenos tremores que chacoalhavam o corpo dele. Mais sentiu do que ouviu uma respiração mais profunda dele, quando parecia tomar fôlego para murmurar:

– Às vezes eu acho que seria melhor se...

– Shhh... – Ela fez, enquanto envolvia a cintura dele com os braços, envolvendo-o com o cobertor também na ação. – Eu sei que parece ruim, mas vai passar. O vazio não tem força ativa, ele não vai conseguir ficar ai quando você começar a se empanturrar de vida, você vai ver.

Integra não precisava de muita coisa para reconhecer os sinais de uma depressão profunda, que ela sabia que Vlad, apesar de forte, não conseguiria lutar sozinho. Ela tinha sofrido do mesmo problema no início da adolescência, aprendendo algumas coisas em livros de auto-ajuda que seus psicólogos a obrigavam a ler, uma delas que ela repetiu para seu noivo: que a escuridão, o frio, o mal, eles não existiam, eram respectivamente a falta de luz, calor e Deus. Foi Einstein quem disse aquilo?

Integra tinha lutado contra seus demônios o suficiente para prendê-los novamente em sua alma, dedicando-se ao trabalho logo depois para assegurar que eles não sairiam de sua jaula tão cedo. E agora, aqui estava ela, dizendo o pouco que sua experiência havia lhe ensinado para o homem prostrado contra a janela.

– Com o tempo, pode até ser engraçado...

Ela ouviu uma inspiração mais pesada, quase que molhada, camuflando um riso sem alegria, e percebeu que Vlad estava chorando. Lágrimas silenciosas, tímidas, reprimidas. Lembrava-se das explosões de emoção, do pesar, do silêncio. Não se lembrava de lágrimas. Já tinha visto homens chorando, muitos deles. Mas sempre os achou covardes por isso. Os soluços, o implorar pela vida, o desespero, as barganhas (e ela nem estava falando de quando Alucard estava envolvido), mas aquilo. Por algum motivo ela não conseguiu achar Vlad fraco. Achou sim que ele era um grande teimoso, ainda prensado entre ela e a janela, sem se virar, não afastando mas também não aceitando o conforto que ela lhe oferecia, não se deixando chorar como se deve, como ela tinha visto tantos homens fazerem antes. Controlado. Apenas as batidas de seu coração e um ou outro salto na respiração o denunciando.

Integra se perguntou quando foi a última vez em que chorou, subitamente sentindo inveja do rapaz. Chorar de verdade, provavelmente na morte de seu pai. Uma ou outra lágrima durante o ataque na mansão, poucas quando Alucard desapareceu: nas três situações teve que se firmar e se fortificar antes de viver o luto, caso contrário estaria morta agora.

Perdida em seu devaneio, assustou-se quando Vlad afastou suas mãos de si, já quase recomposto para murmurar alguma coisa sobre a sopa ficando fria. Apenas os olhos avermelhados era prova de o que havia acontecido minutos antes.

Integra impediu que Vlad passasse por ela, forçosamente obrigando-o a reassumi seu lugar na poltrona, estranhando um pouco a docilidade e a falta de equilíbrio com a qual ele o fez. Lembrou-se da pergunta que tinha começado tudo aquilo, em primeiro lugar:

  – Quando foi a última vez em que você comeu?

Ele pensou um pouco, respondendo que havia sido naquela manhã. Quando Integra perguntou o que, ele respondeu que fora chá com torradas. Só. E após um inquérito mais detalhista, que ele estava vivendo daquilo já há algum tempo.

– Vlad! Você precisa de mais do que isso para funcionar!

Vlad acenou com a cabeça, murmurando alguma coisa que Integra não entendeu, quando ela lhe perguntou do que se tratava ele respondeu, ainda não a fitando nos olhos:

– Meu estômago dói.

Ela respirou fundo.

– É porque você não come há dias!

– Eu... Fico enjoado...

– Vai ter que comer mesmo assim!

E depois daquele dia, o resfriado de Integra ficou quase que esquecido, já que ela definitivamente não precisava mais ficar trancada em seu quarto e parecia ter assuntos muito importantes para cuidar. Não vampiros, Vlad já tinha resolvido aquilo. Mas garantir que o próprio Vlad se inserisse dentro de sua própria vida mais uma vez, com vagar, conversas pequenas, qualquer coisa para o rapaz não se perder dentro de si. Ela sabia que apenas ela não seria o suficiente. Esse tipo de coisa se constrói de dentro para fora, não de fora para dentro, mas ela queria dar motivos para que ele lutasse.

E então, em uma manhã estranhamente não tão fria de janeiro, Integra recebeu um homem velho e franzino na mansão, que carregava um pacote perto de si como se fosse um órgão próprio. Duas horas depois o homem saiu abraçado em uma bolsa, no lugar do pacote, e Vlad se descobriu com uma case. Abrindo-a, ele mais sentiu do que viu o veludo verde musgo, antes de retirar o violino lustroso e testar a afinação, as mãos recentemente retiradas de suas bandagens reverentes ao tocar as cordas com as pontas dos dedos.

Naquela manhã estranhamente não tão fria de janeiro, Vlad se viu com um Stradivarius. Naquela manhã, Integra descobriu que os sentimentos que Vlad não encontrava em seu peito, ele expressava pela música que tocava, que compunha. Naquela manhã, os dois descobriram que, por hora, aquilo talvez bastasse. Pelo menos até Integra encontrar o tal psicólogo que não internaria Vlad.

Em um arpejo particularmente longo, Integra percebeu que o rapaz estava fazendo exatamente o que havia lhe prometido, meses atrás: estava se desfazendo de suas máscaras, descobrindo seu verdadeiro rosto para ser novamente alguém inteiro, alguém que a merecesse.

A Hellsing começou a ponderar se seria muito clichê se casar na primavera, descobrindo que não se importava. Vlad havia feito uma coisa que ela jamais sonhou que alguém faria por alguém no mundo, muito menos por ela. Vlad havia desistido de tudo o que ele era, todos os seus sonhos, todos os seus medos, apenas para se reencontrar, para ser alguém de verdade, alguém que ele pudesse entregar a ela, unicamente a ela. Integra olhou mais uma vez para seu noivo, contente em observar a paz em suas feições, enquanto tocava de olhos fechados, andando pela sala da mansão. A expressão ainda não era alegre, mas tinha um aspecto zen que já era um grande avanço. Sorriu, escolhendo em sua agenda, que insistia ser de papel, um dia no começo da primavera para marcar a cerimônia.

Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição:
De morrer pela pátria
E viver sem razão

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Somos todos soldados
Armados ou não
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não

Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer


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Notas finais do capítulo

By the way, estão acompanhando "E... Corta!" da Carol_xp? Eu sempre me pego chorando de rir em casa, mas ela se recusa a postar sobre capítulos mais recentes. Enfim, uma pena.
Até o próximo, com uma cena que muitos estavam esperando.



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