Donna Koe De, Donna Kotoba De? escrita por Anna H


Capítulo 10
The Box-Above-the-Ceiling




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Estava em casa sentado encolhido entre o sofá e a mesa comendo um lamen instantâneo e sem gosto enquanto assistia a uma paródia terrível de Star Wars. O sono estava começando a puxar-me as pálpebras – talvez já fosse madrugada de domingo, o que me deixava tentado a simplesmente escalar o sofá e apagar pelas próximas quinze horas.


Alguns minutos depois, convenci-me de que não queria mais continuar acordado e desliguei o televisor, sem me importar de fazer o mesmo com o DVD. Como uma besta ferida ou preguiçosa demais, meio escalei, meio rastejei para cima das almofadas, puxando o cobertor que ficara no chão até que me cobrisse até a cabeça e fechei os olhos, contando com a minha capacidade de dormir em qualquer lugar a qualquer hora somada ao sono para fazer-me adormecer o mais rápido possível.


Estando às portas da inconsciência, experienciei uma mescla de raiva, confusão e estranha conformidade ao ouvir o telefone celular vibrar contra a madeira da mesa. Que diabos, pensei, esgueirando uma mão para fora da coberta e tateei no escuro até encontrar a fonte da luz que via através do tecido pesado. Ao encontrá-la, trouxe-o para meu abrigo improvisado, o brilho da tela forçando-me a apertar os olhos para não ficar cego e acabar com uma bela enxaqueca.


2 Mensagens não Lidas, dizia. Por um breve segundo quis matar alguém ou a mim mesmo, tanto fazia, mas eu estava com sono demais para ficar raivoso e o telefone já estava na minha mão, de qualquer maneira. A primeira estava vazia, o que me pareceu um pouco esquisito, mas não o suficiente para fazer com que me importasse. A segunda dizia que eu havia ganho alguns bilhões de ienes, ligue para este numero e nós te roubaremos. Aham, tá certo.


Deixei o aparelho cair no chão e virei para o encosto. Em menos de um minuto, o mundo era um lugar melhor.



Aproximadamente 16 horas depois, acordei com o toque infernal do telefone. Não conseguia imaginar quem pudesse estar me ligando em uma tarde de domingo. Deixei que tocasse até desligar antes de levantar-me do sofá. Instintivamente, liguei o televisor – estava no menu principal do filme – e dirigi-me até o banheiro – minha boca estava com um gosto terrível.


Assim que coloquei a escova de dentes na boca, o toque reiniciou. Ignorei e continuei a escovar os dentes. Em seguida, lavei o rosto e o pescoço, numa tentativa de despertar completamente. Olhei-me no espelho e vi a figura mais pálida encarando-me de volta, os cabelos por cortar, olhos caídos, olheiras gigantescas. Minha cabeça pendeu para o lado e fiquei a analisar a minha deprimente imagem.


Despertei apenas ao ouvir a campainha ser tocada, seguida de batidas à porta. Sequei o rosto e vesti um moletom ao caminho da porta, ainda sem adivinhar quem pudesse ser.


Pelo olho-mágico, vi uma garota que parecia preocupada e me passava a impressão de já tê-la conhecido de algum lugar. Ela parecia prestes a invadir minha casa e roubar todos os meus bens, logo decidi que era seguro abrir a porta e ela pareceu terrivelmente aliviada quando o fiz.


“Sr. Nishimura!” - ela exclamou ao me ver, o que me deixou ainda mias confuso - “Por favor, me perdoe, não quis perturbá-lo, ainda mais num domingo, mas eu telefonei eu senhor não atendeu e eu fiquei preocupada!” - continuou, tudo em só folego. Eu apenas a observei. Trazia nas mãos uma caixa cheia de algo como cadernos.


“O senhor vê, eu estava limpando o armário de casacos e percebi algo estranho no teto, achei que fosse um risco ou isso ou ele estava rachando! Mas era uma portinha, vê, e isto caia quando a abri sem querer! Eu nunca havia visto isso pela casa e entrei em pânico, acho que posso ter estragado alho, então trouxe para que o senhor pudesse verificar...!”


Oh, sim. Era uma garota do prédio com um possível TOC por limpeza que eu havia contratado, depois que voltei para o apartamento, para manter a casa limpa.


Ela continuou a olhar-me com aqueles olhos meio desesperados, esperando uma resposta. Eu não sabia do que ela estava falando ou o que poderia ser aqueles cadernos. Com algo entre a relutância e a excitação em meu peito, peguei a caixa de suas mãos e murmurei um agradecimento, o qual não tenho certeza se foi ouvido antes de fechar a porta.


Sentei-me no sofá com a caixa à minha frente.


Após algum tempo encarando-os, peguei um dos que estavam no topo. Assim como todos, tinha a capa dura e preta, com um número em dourado. 1999. Olhei os outros e constatei que eram todos exatamente iguais, exceto pelo número. Eram diários. Meu coração pulsava em meus ouvidos. O mais antigo datava de 1997, começando do dia 30 de janeiro. Naquele ano ele deveria ter volta de 13 anos.


A caligrafia, exatamente como quando nos conhecemos, foi o que me chamou a atenção primeiramente, não se parecia nada com a perfeição meticulosa que eu conhecia


“Meu nome é Shinya Terachi. Nasci em 85 e há uma semana, dia 23 de janeiro de 1997, acordei de um coma que, segundo me disseram, durou oito dias. Sinto-me muito melhor agora, apesar das dores. Consigo mexer minhas pernas, consigo escutar e vejo melhor, também consigo sentir quando alguém toca meus braços.


Estou com um curativo gigantesco na cabeça, mamãe diz que estou careca. Parece que precisaram mexer no meu cérebro para fazer algumas coisas pararem, mas, mesmo assim, ainda tenho que continuar com os remédios, o que é um saco.


Estou melhor, mas ainda estou cansado, então vou parar de escrever agora.


31 de Janeiro.


A enfermeira disse que eu preciso colocar data toda vez que eu escrever, para poder saber um dia quando desenterrar isto aqui. Não sei porque enterraria um diário, não sou cachorro. A enfermeira disse que pode me ensinar a falar com as mãos se eu quiser. Ela disse que era super útil para conversar quando devo fazer silêncio. Disse que vamos começar amanhã e disse também que não dá para eu ir à escola assim, daqui a um mês vou ter um professor só pra mim.


01 de Fevereiro


Todos os dias faço exames chatos. E ainda não consigo sentir o gosto de nada! Pareço estar gripado eternamente.


Hoje comecei a aprender a afalar com as mãos e já sei dizer meu nome. É bem fácil. Mamãe e papai não me largam nunca, nem quando tenho que fazer minhas necessidades na bacia. Odeio aquela bacia, mas a médica disse que só posso usar o banheiro quando puder andar. Quero andar. Andar e sentir o gosto das coisas.



03 de Fevereiro


Consegui dar uns passos, o suficiente para chegar ao banheiro. Chega de bacia para Terachi Shinya! Mas isso foi ontem. Ontem foi um dia cheio de chatices. Depois que andei me fizeram dobrar os exercícios e os exames. Mas à noite a enfermeira veio e me ensinou uma parte dos katakana, que já são um pouco complicados de entender, apesar de eu já saber alguns. A enfermeira disse que era difícil, mas eu quero aprender. Acho que quero fazer xixi.”


As anotações seguiam assim até o fim do ano. Até lá, ele já sabia grande parte da “língua das mãos” e eu sabia que havia sido enganado.


Encarei em silêncio a capa do caderno, sem ter certeza do que pensava ou sentia. Voltei os olhos à caixa. Como eu nunca havia visto aqueles diários? E ainda, como havia ficado sem saber do que era contado neles?


Sentei-me na mesa e coloquei o 1997 sobre o 2008.


2008.


Como um raio tomei o volume em minhas mãos e o abri em qualquer página.


“Janeiro – 14


Já fazem 5 dias e ainda não me sinto melhor. Não sei como cuidar de tudo sozinho.”


A caligrafia me era familiar agora. Fazia meu peito apertar. Voltei cinco páginas, estava em branco. A próxima estava escrito.


“Janeiro – 10


Papai enfartou ontem à tarde. Agora estou só de verdade.


Janeiro – 11


Matsueda disse que ficou tudo para mim. Me sinto perdido em todos os sentidos.


Janeiro – 12


Hoje me dei conta que não sei nomear a quantia que me foi deixada.


Janeiro – 15


Fui encontrar-me com Matsueda. Ele pediu para administrar tudo antes que eu o fizesse. Um pouco de alívio. Tenho tido enxaquecas, mas Takashi disse que é apenas o estresse. Espero.”


Parei de ler. Algo havia caído de entre algumas páginas no final. Era um post-it azul com marcas de amasso. Peguei-o do chão e o li, descobrindo-me incapaz de recordá-lo. Dizia:


“Por favor, não me deixe acordar sem você sem outra vez.”


Folheei o caderno até encontrar uma fita adesiva vazia na página. Marcava 13 de novembro.


Minha garganta fechou.



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Notas finais do capítulo

- - - Aqui é a Charlotte_B postando para a Namida_K.