Na Ponta dos Pés escrita por Maybe Shine, Bibiana CD


Capítulo 4
Pão com mortadela


Notas iniciais do capítulo

Oies gente!
Demorou para a gente voltar a postar, né? //apanha
Mas voltamos a postar e isso é o que interessa, esperamos que gostem ;)



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Naquele dia fazia sol. Era sexta e fazia sol. Estava frio, mas fazia bastante sol.

Fiz aula de ballet pela manha, almocei com minha mãe em um restaurante natural que servia apenas folhas e que achava que todo mundo era coelho, e pela tarde ensaie algumas coreografias e essas coisas.

Já era bem de tardezinha. Todos estavam indo para casa e, enquanto ia pelo corredor, ouvi aquele barulho que lembrava uma galinha sendo possuída. Resolvi olhar.

A única pessoa que sabe fazer esse som é a Lisa. E ela faz super bem. Só que a Lisa não estaria no atelier naquela hora, porque deveria estar dessecando um sapo. A Lisa é bem assim, cheia de sapos e sons de galinhas sendo possuída. Na noite anterior, chegando em casa, a encontrei ajoelhada em frente a mesinha de centro da sala jogando xadrez com nosso pai. Ela estava vencendo e dava para ver por causa da testa franzida e do jeito que meu pai apertava as mãos imaginando a vergonha de perder para sua filha de onze anos em uma partida de xadrez.

Eu achei a maior graça. Mas não ri, porque a Lisa também me vence no xadrez.

Normalmente nem olho pra ela. Digo, para a Lisa quando chego em casa. Mas se estou feliz, e naquele dia estava especialmente feliz embora tenha caído do telhado, resolvo incomodá-la.

- Não vai perguntar nada sobre o Newton hoje?

- O que, garoto?

- O Newton. Teu amor. Não vai perguntar nada?

Ela largou uma das peças no tabuleiro e me olhou com os olhos bem estreitos e era como se fosse jogar em mim um dos cavalos.

- Eu não sei do que você esta falando.

- Sabe sim. Você tem uma paixão plantonica por ele e não quer admitir.

- Plantonica?

- É. Sabe, tipo uma paixão que nunca vai se realizar. Você sabe... plantonica.

Ela me olhou assim, bem séria. Meu pai estava mexendo nas peças do jogo e nem dava atenção à nossa conversa. A Lisa perguntou mais uma vez o que eu tinha falado, então repeti, e ela começou a gargalhar e perguntou de novo o que eu havia dito e repeti. E ela gargalhava e eu ficava perguntando por que, e ela gargalhava mais até que o som de galinha sendo possuída - que é o som da risada dela - parou de vez.

- Plantonica, Ed? Plantona! Meu Deus... é platônica! De Platão! Da teoria que ele formulou sobre a existência de um lugar onde estão os modelos perfeitos de todas as coisas que existem, e que é de lá que nossa...

Mas depois disso parei de ouvi-la. Eu já sabia tudo isso, é claro que sabia.  Mas às vezes me confundo.

E foi na tarde seguinte que ouvi o som estranho pela segundo vez.

Eu estava saindo da aula de dança e andava pelos corredores à procura de Newton. Subi as escadas e quando passei em frente à sala de música ouvi aquele som terrível. De galinha. E achei tão terrível que tapei as orelhas com as mãos e fui olhar.

Quando cheguei perto vi Sam escorada na parede e dando gargalhadas. À sua frente três garotas a olhavam espantadas, com seus olhinhos esbugalhados e os lábios entreabertos.

Não quis nem imaginar o que havia acontecido ali.

- Sam - chamei e ela me olhou, sorrindo sínica. Claro que sorrindo assim, porque ela não sabe sorrir de outro jeito.

- Edmundo.

- Edmund.

- E qual é a diferença?

- Não é Edmundo tipo o nome daquele jogador de futebol, é Edmund tipo... tipo bonito. Assim. Mund.

Ela me olhou com uma das sobrancelhas arqueadas e percebi que as duas garotinhas estavam correndo sem olhar para trás, se afastando de Sam, como se fossem dois ratinhos fugindo de um gato faminto.

- Edmund - ela disse, fazendo biquinho.

- É.

- Que coisa mais ridícula!

Sua risada voltou a encher o ar. Ela subiu no skate e começou a deslizar pelo corredor. Fiquei confuso, mas só porque fico confuso o tempo todo mesmo. Segurei seu braço barrando-lhe a passagem. Ela me olhou aborrecida e perguntou o que eu queria.

Essas mudanças repentinas de humor me deixam pasmo. Uma hora gargalhadas dignas de comparação com as da Lisa. Outra hora os olhos verdes muito, muito duros me encarando com raiva. Pensei que depois de um tempo entenderia melhor e certo tudo aquilo. Não entendi.

- Queria falar com você.

- Sobre o que, Edmundo?

- É Ed... enfim, sobre ontem.

- Que teve ontem?

- Ora essa, Sam! O sequestro!

- O sequestro... claro! Como esqueci?

Ela me olhava de um jeito sincero quase convincente.

- Olha, queria saber se você lembra. Lembra-se da placa do carro dos sequestradores. Estava pensando em...

- Ah, isso? Não lembro não.

Ela sorriu e saiu deslizando com o skate pelo corredor. Antes que virasse e chegasse as rampas de acesso dos andares superiores, coloquei as mãos feito uma corneta sobre os lábios e gritei.

- Não pode andar de skate aqui dentro!

E o que ela gritou de volta eu nem vou repetir.

 

 

 

 

Depois de algum tempo, quando deu à hora de ir embora e o prédio do Atelier esvaziava-se, fiquei atrás de uma das árvores largas que rodeiam a construção. Fiquei quieto e escondido apenas esperando a hora certa de sair.

Sam apareceu depois de alguns minutos, saindo pela porta da frente. Ela seguiu seu caminho andando pela rua resignada, sem olhar para trás ou para os lados. Uma mochila nas costas e o skate enfiado ali.

Comecei a segui - lá.

Tudo bem, tudo bem. Falando assim até parece que sou um serial killer. Mas não é nada disso. Às vezes a gente faz umas coisas bem suspeitas, mas isso não quer dizer que é preciso desconfiar da nossa saúde mental. Só estou querendo dizer é que, na hora, nem pareceu tão absurda a ideia de segui-la.

Decidi dar uma de James Bond.

De início Sam nem percebeu, mas olhou para trás quando chutei sem querer uma lixeira.

- Ed, o que diabos você esta fazendo me seguindo?

- Não estou seguindo... - murmurei sem jeito. Ela me encarava com uns olhos verdes assassinos.

- Esta sim! Todo furtivo, se enfiando atrás de lixeiras. Ou acha que não percebi? Você é louco, é?

- Poxa Sam, só queria...

- O que? Descobrir onde moro para me acordar com umas pedras atiradas na janela, e começar a dançar ballet no meio da rua?

- Sam! Da onde você tirou isso?

Ela parou. Olhou em volta meio que pensando, apertou os olhos, soltou uma risadinha.

- Esqueça - daí ela me olhou assassina de novo - porque você estava me seguindo?

- Queria saber a placa...

- Já disse. Não sei.

- E protegê-la.

Daí ela me olhou mesmo. Quero dizer, ela estava me olhando antes. É claro que estava. Mas nessa hora ela parou de se mexer e me encarou como se fosse um cara que acabara de fugir do manicômio.

- De que?

Suspirei impaciente, revirando os olhos. Eu fiquei bastante irritado. Ela só podia estar de brincadeira comigo.

- Sam, aqueles caras lá, eles nos ameaçaram, podem querer, sabe como é, silenciá-la - passei a ponta do dedo sobre a garganta e fiz uma careta para ilustrar.

Sam ficou me olhando. Sem rir. Sem sorrir. Só me olhando com a cara que minha mãe me olha quando estou em frente ao espelho cantando e fingindo ser o Slash e ela abre a porta do banheiro.

- Você é doido - disse ela e começou a andar. Mas não disse essa ultima frase como se estivesse me acusando de algo assim, super grave. E sim como se tivesse acabado de fazer uma dedução lógica. Achei melhor não ficar ofendido. Corri um pouquinho e parei ao seu lado. Andamos em silêncio por alguns metros e ela não reclamou da minha presença. E não falei que não estava ali para protegê-la. E não disse nada, só caminhei com ela durante um tempo por uma Porto Alegre agitada de fim de tarde.

 

Andamos lado a lado seguindo quietos pelas ruas. Não era ruim ficar assim. Era até bom, porque a Sam foi seguindo e eu não sabia pra onde, e aquilo estava bem interessante porque ela não falava nada e andava, e andava e eu agora penso que não deveria ter achado tudo assim, tão legal, porque nem foi legal.

Ela e aquele seu coração gelado queriam que eu me arrependesse. E, claro, me arrependi.

- Onde estamos indo? - fiquei perguntando, e Sam me olhava e sorria. Sorria calma de um jeito sínico. Nós entramos no Mercado Público.

Andamos pelos corredores tumultuados. Às vezes eu pensava que perderia Sam no meio daquela gente toda. Às vezes pensava que me perderia no meio daquela gente toda. Andamos mais um pouco e ela se sentou em um banquinho alto, em frente a um balcão do que parecia ser uma lanchonete. Sentei ao seu lado.

Um tio enorme apareceu atrás do balcão. Falando sério, eu e a Sam juntos não seríamos tão grandes quanto aquele homem. Quando ele perguntou o que a gente iria querer a Sam foi quem respondeu.

- Pão com mortadela - disse ela em tom jovial.

- Pão com mortadela, Sam?

- Dois pães com mortadela.

- Poxa...

- Dois pães com mortadela saindo - disse o king Kong.

O cara sorriu fazendo com que as bochechas rosadas subissem, deu as costas e passou a preparar os sanduíches, ou seja lá como se chama.

 

- Você come feito uma porca.

Um segundo depois que disse isso senti o arrependimento chegando, feito uma névoa gelada arrastando-se pelo chão. Não era difícil imaginar relâmpagos impressionantes atrás de Sam quando ela me olhou com os olhos estreitos e maníacos, como se eu fosse o seu pior inimigo, ou o garoto que atropelou sem querer o seu hamister.

Sei lá se Sam tem hamister.

- Porque esta me olhando assim?

- Porca?

Ficamos em silêncio, um silêncio horrivelmente palpável. Aos poucos fui percebendo que os ombros de Sam relaxavam e os lábios se curvavam num sorriso. Pronto, pensei, percebeu que era uma brincadeira e não quer mais me transformar em cinzas com os olhos.

- Porca - murmurou ela rindo, e, por mais que seja doloroso admitir, senti medo.

Sam pegou com as duas mãos o seu pão com mortadela, olhou em volto com um sorriso sapeca que não abandonava seus lábios, soltou umas risadinhas amargas e fincou os dentes no pobre e indefeso pão. Enfiou, sem mais nem menos, sem dó. Mordeu de olhos fechados e abocanhou a metade do pãozinho de uma vez.

- Sam! - disse alarmado, pois não sabia que esse era apenas o começo.

Todo mundo olhou.

É incrível como me senti pequenininho e vermelho naqueles minutos de vamos-matar-o-pão. Sam mordia o pão e mastigava com a boca aberta, olhava para as pessoas e falava e ria e sorria.

- Sam! Sam! Sam! - era apenas o que conseguia dizer. Todos que passavam olhavam espantados e cheios de desgosto.

Foram os cinco minutos mais aterrorizadores e vergonhosos da minha vida. Claro, isso se eu não contar o dia em que sai correndo pelado pela casa gritando que não iria para a escola e meu pai apareceu correndo atrás de mim com uma câmera na mão. Foi meu primeiro ato de rebeldia. Mas poxa, eu tinha apenas seis anos.

Até hoje assistimos o vídeo no natal.

 

- Você não precisava ter feito aquilo - disse emburrado.

- E você não precisava me chamar de porca, não é? Ou precisava? Porca é sua avó!

Acelerei o passo, cerrei os punhos e segui de cabeça baixa.

- Ela é apenas um pouco atrapalhada, não é culpa dela se é difícil se cuidar...

- Do que você esta falando, Ed? - Sam me olhou daquele jeito, como se eu fosse louco.

- Da minha avó. Do que mais seria?

Ela revirou os olhos.

Nós estávamos caminhando novamente pelas ruas de Porto Alegre. O sol se escondera e as sombras espichavam-se abaixo dos postes. Se demorasse muito para chegar em casa minha mãe começaria a comemorar em vão meu desaparecimento. Precisava ir embora, antes que Lisa tomasse meu quarto. As coisas são difíceis na minha vida, vou te contar.

Sam e eu seguimos caminhando pela cidade. Alguns cafés enchiam de pessoas rapidamente, lojas fechavam suas portas e homens e mulheres corriam em direção ao metrô. A cidade fervia, e tive medo de deixar Sam andar por ali sozinha.

Não que eu me preocupasse, nada disso. Ela saberia se cuidar extremamente bem e não havia espaço para esse tipo de dúvida. Fiquei com medo foi pelos bandidos que andam por ai à noite, se algum topasse com Sam se daria muito mal.

Enquanto caminhávamos em silêncio, pensei nessas coisas e observei a roupa de Sam. Ela usava uma calça jeans um pouco larga e manchada e velha e rasgada nos joelhos. Uma camiseta de flanela e tênis gastos, mais gastos que as calças.

A garota se inspira no Kurt Cobain para se vestir, pensei espantado.

- Você quer dinheiro para comprar um tênis? Porque. Sabe. Posso emprestar... - disse, tentando ser cínico.

- Era de se esperar essas palavras de você, Sr. Nike branquinho.

Cheguei perto dela, sem parar de caminhar, e empurrei seu corpo com a lateral do meu. Ela devolveu o empurrão e quase me estatelei na calçada. E eu devolvi mais forte e daí ela é quem se estatelou contra o muro.

Seus olhos verdes miraram os meus por um instante e ela me empurrou com muita, mas muita força. Foi ai que aconteceu a tragédia. Porque aquela poça de lama que estava ali, a espreita ao lado da calçada, só esperando alguém cair.

E eu me senti que nem quando tinha nove anos e meus colegas me jogaram no chiqueiro de um sitio que a gente foi. Ah, eu me lembro bem daquele dia.

Lá estava eu com meus nove aninhos, saltitando pela trilha. Atrás de mim estavam aqueles garotos, o Pedro e o Mário. Pensando bem, eles eram quase do tamanho do tio do pão com mortadela. Só que eles tinham nove anos...

Eles começaram a me chamar de bailarina e tal. Mas nem dei muita bola porque estava super concentrado para fazer aquele salto direito, que era bem difícil, sabe? Mas daí eles começaram a apelar mesmo, e me empurram com tudo contra o chão.

Me virei indignado para eles, que responderam algo do tipo ?a bailarina vai bater na gente, que medo...?. E eu respondi que claro que não bateria neles porque, até exemplifiquei, o Baryshnikov e o Nijinsky nunca bateriam em alguém, sabe.

Talvez o Nijinsky até batesse por que ele era meio louco, mas deixa pra lá né.

Mas acho que eles nem ouviram, por que antes que eu acabasse de falar eles me pegaram e me jogaram no chiqueiro que tinha ali do lado. E até tinha uns porcos lá dentro, e eles não se pareciam nem um pouco com o ?Baby, o porquinho da cidade?.

E depois daquilo minha mãe me deu banho direto por uns três dias.

Mas isso é só para vocês entenderem como é que eu estava me sentindo ali, caído naquela poça de lama enquanto a Sam ria de novo, feito uma galinha possuída.

-Ops! Acho que o Nike não está mais tão branquinho...

Levantei e olhei para mim mesmo, para ter uma ideia do dano. Preferiria não ter olhado. Meu tênis com certeza não estava mais branco, mas isso nem era o pior. Minha camisa do Hugo Nino, que eu tinha ganho de aniversário da minha mãe, estava com uma mancha marrom e nojenta.

Olhei horrorizado para Sam, que alem de tudo ainda ria da minha desgraça.

-Sam, como você pode? É o Hugo Nino!

-Sabe, Ed, acho até que você ficou melhor assim! -Ela respondeu alegre, me olhando de baixo para cima.

-Sam, você é impossível!

Passei as mãos pela camisa, tentando limpar aquela porcaria toda. Não adiantou. Minhas mãos ficaram marrons e Sam acabou rindo mais e mais alto. Olhei com raiva e ela chacoalhava a cada nova risada, o que era duplamente irritante.

Resolvi não deixar aquilo assim, porque me senti um idiota coberto de lama.

- E você, hein?

- Eu o que? - perguntou ela entre uma risada e outra.

- Você. Você e esse seu tênis imundo, podre. O que foi, mamãe não limpa mais, é?

Sam parou de rir abruptamente. Senti no mesmo instante que havia dito besteira, pois seus olhos me encararam e eles eram feitos de pedra. E depois do que ela disse, ah, depois do que ela disse senti que deveria me esconder na poça de lama e nunca mais sair de lá. Talvez eu fizesse amizade com um porquinho.

Fiquei parado alguns minutos, depois que Sam tirou o skate da mochila e ignorou meu esforço de segui-la correndo. Fiquei parado no meio da rua, ofegante, com alguns carros passando próximos do meu braço. O borrão que era Sam avançando muito à frente e a ultima frase ressoando em minha mente.

"Seu imbecil, minha mãe esta morta."


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Notas finais do capítulo

Então, que tal alguns reviews bobonitinhos?