Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 79
vida 5 capítulo 28




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DUAS SEMANAS DEPOIS

Harold Levine sabia o que precisava fazer para recuperar a divindade perdida. Ele precisava se reintegrar ao planeta. Ter o corpo consumido pelo fogo do núcleo da Terra e, assim, libertar seu espírito.

Não era uma tarefa fácil. Felizmente, estava no Oregon, a região do planeta que concentrava o maior número de vulcões ativos na atualidade. Mas a classificação como vulcão ativo levava em conta o tempo geológico. Um vulcão podia ser ativo e não ter tido nenhuma erupção em 1.000 anos.

O Monte Santa Helena estava em erupção desde 2004, mas a atividade vulcânica estava decrescendo. O vulcão não vertia lava há quase dois anos, embora continuasse despejando colunas de cinzas vulcânicas na atmosfera. No auge do fenômeno, em 2005, a coluna de cinzas atingira 11 km de altura. Agora, o lançamento estava irregular, mas ainda era freqüente.

Não havia como errar o caminho. Era só seguir na direção da base da coluna de cinzas. E se deixar consumir pela nuvem de partículas incandescentes. Era esse o caminho para a divindade.

O acesso à região permanecia controlado, com barreiras da polícia rodoviária nas estradas mais importantes. Havia poucas estradas de terra secundárias, que não necessariamente chegavam onde queria ir. Teria que usar o status de policial e inventar uma desculpa qualquer. Mas não estava realmente preocupado quanto a isso. Era um policial respeitado. Não teria problemas.

O acesso ao vulcão era difícil independentemente de problemas burocráticos criados pelos homens. Mesmo que se aproximasse da base da montanha de carro, ainda teria que fazer o último trecho a pé, subindo por trilhas íngremes até chegar ao cume. Não era o Himalaia, mas 2.550 m não era uma altitude desprezível. Sabia que os desafios do Monte Santa Helena exigiam uma preparação cuidadosa e equipamento especial. Ele praticara montanhismo na juventude e tinha o equipamento básico. Não queria esperar mais. Usaria o que já tinha em mãos. Felizmente, não precisava se preocupar com o caminho de volta.

Embora não estivessem no inverno, era sempre frio no Oregon e ainda mais frio nas altas montanhas. Mas ele não era, ou não fora um dia, o deus do inverno? Não seria detido pelo frio. O problema era o ar rarefeito e a poeira tóxica. Lembrava que no auge da erupção, os noticiários da TV reportavam a todo minuto que a poeira vulcânica que cobria a região tornava o ar irrespirável. Era quase impossível para um homem, mas ele era um deus. Ia recuperar sua divindade a qualquer custo.  

Ele perdera a sua grande oportunidade em 2004. Queria ter feito naquela ocasião. O irmão o convencera a dar mais um tempo no mundo dos homens. Ele aceitara ficar apenas por Mark. Agora Mark não estava mais ali para impedi-lo.

Harold Levine separara o material para a escalada na véspera. Tinha acordado cedo, colocado tudo no carro e fechado a casa. Deixara uma carta solicitando baixa da corporação. E uma segunda carta, de despedida, para o delegado Hayden. O velho fora como um pai para ele. Uma das coisas boas de viver entre os homens. Mas estava empolgado com a perspectiva de voltar a ser um deus. O deus do inverno.

Hod. Seu verdadeiro nome era Hod.

- Pai, é verdade que o Hal pediu licença da polícia?

- É verdade, filho. Ele ainda sofre muito pela morte do irmão. Depois, teve o seu desaparecimento. A morte dos Milligan. A morte dos colegas. A traição do Pawloski. A morte do Dr. Lawson. Um golpe após o outro. Ele ficou muito abalado. Um período de férias vai fazer um bem enorme a ele.

- Pai, se houvesse alguma outra forma, eu juro que você jamais ficaria sabendo. Mas, o Hal ..

- O que tem o Hal, filho? O que eu não podia ficar sabendo?

- Nem sei como começar, mas .. . tem uma coisa que você precisa saber sobre o Hal. O Mark me pediu segredo, mas, com ele morto e eu ainda aqui neste hospital, é você quem vai precisar fazer alguma coisa.

- Fala, filho. O Hal e o Mark eram como filhos para mim. Qual o problema com o Hal?

- Ele é esquizofrênico.

- O quê?? O Hal?

- É, pai. Desde criança, ele tem sonhos, visões, escuta vozes. Ele acredita que é uma espécie de deus pagão encarnado. Ele teve um surto em 2004, logo depois que o Monte Santa Helena entrou em erupção. Ele falava o tempo todo em se atirar no vulcão para recuperar sua divindade. O Mark teve que encarar uma barra pesadíssima na época. O Hal tinha acabado de entrar para a polícia. Se soubessem, ele seria afastado e a carreira dele estaria acabada.

- Como foi que eu nunca percebi nada estranho?

- Quando ele está devidamente medicado, não se percebe. Mas era o Mark quem cuidava para que ele sempre estivesse medicado. Volta e meia, o Hal se revoltava, dizia que não era um doente e agia como uma criança, se recusando a tomar os remédios.

- Meu Deus.

- Nos primeiros tempos, a medicação deixava o Hal sonolento, embotava os pensamentos dele e ele vivia com uma permanente sensação de enjôo. Até dava para entender essa atitude. Mas agora ele faz uso de uma geração mais avançada de remédios, quase sem efeitos colaterais. Mesmo assim, de vez em quanto voltava com a história de parar com a medicação. Quanto não conseguia convencer o Hal a tomar os remédios, o Mark tinha que apelar para algum truque. Aplicar a medicação sem que ele soubesse. Quanto o Mark morreu ..

Kyle não conseguiu completar a frase. A lembrança da perda do namorado fez que escorressem as primeiras lágrimas em muitas semanas. Finalmente ele se sentia completamente livre da influência da bruxa. O pai colocou a mão sobre seu ombro, dando força e incentivando-o a prosseguir.

- Quando o Mark morreu, eu fui falar com o Hal sobre ele ter que assumir a responsabilidade sobre o próprio tratamento, mas ele disse que o Mark cismara com aquilo, que não era verdade, que ele nunca precisara de nenhum remédio. Eu não tive escolha. Eu fiz o que o Mark fazia, e passei a misturar o remédio na água que ficava na geladeira. Depois, houve isso tudo comigo, eu fiquei semanas desaparecido. Se ele estiver mesmo esse tempo todo sem nenhuma medicação, não vai demorar muito para ele fazer alguma besteira.

A cidade era pequena, e, menos de vinte minutos depois, o delegado batia na porta da casa de Hal Levine. Não se sentiu bem de usar sem permissão a chave que Kyle lhe dera, mas ao encontrar e ler a carta endereçada para si, ficou agradecido a Kyle por ter insistido tanto.

Correu para a delegacia e enviou um alerta à polícia rodoviária para que detivessem Hal Levine. Para o bem dele próprio.

Meia hora depois, recebeu a mensagem que Hal Levine atravessara a última barreira quinze minutos antes de receberem o alerta. Ele seguia na direção do Monte Santa Helena.

Ao voltar para casa, abraçou a esposa. Contou a história com cuidado, pois sabia o quanto ela gostava de Hal. Mas não entendeu a reação dela. Ela olhou para ele como se ele não estivesse ali, pegou a bolsa e saiu. Catherine parecia outra pessoa nos últimos tempos.

Catherine sabia que suas atitudes nas últimas duas semanas vinham atraindo suspeitas. Ela vinha dando motivos para o marido pensar que estava mantendo um caso extraconjugal. E ela estava realmente se encontrando às escondidas com um outro homem. Um homem extremamente bonito e bem mais jovem que ela. Pelo menos, era isso que os outros viam.

Mas seus sentimentos por ele continuavam a ser os de mãe. Ela aceitara o monstro que se transformara em homem pelo que era hoje. Que mais podia fazer? Não podia fazer o tempo voltar atrás. A criatura seguira sua natureza, mas essa natureza mudara. Podia voltar a ser perigosa um dia, mas homens também podiam perder o controle e fazer coisas horríveis. Acreditava nele quando dizia que se tornara Mark Levine, de corpo e alma.

Viver significa aceitar correr riscos. Mark estava fazendo falta na vida de todos. Principalmente, na de Hal.

- Mark?

- Eu mesmo, irmão.

- Veio me acompanhar até a boca do vulcão?

- Não. Vim buscar você. Nós vamos voltar juntos para casa.

- Preciso recuperar minha divindade.

- E eu preciso de você. MUITO. Vai seguir em frente e me deixar aqui sozinho?

- Não. Que bom que veio me buscar.

Hal queria muito acreditar que aquele fosse realmente seu irmão e abraçou com força a ilusão que lhe foi oferecida. Foi uma escolha. Hal escolheu se dar mais uma chance. Agarrou-se à esperança de voltar a ser feliz. A esquizofrenia confundia seu senso de realidade, mas não a ponto de impedir que, no íntimo, ele intuísse a verdade.


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Notas finais do capítulo

01.03.2011