Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 145
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HADES

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O Hades não é o Inferno.

O Hades não é um lugar de regozijo, mas também não é um lugar de sofrimento. Os espectros dos mortos que perambulam pelo Hades não são movidos por paixões nem por culpas. Eles as deixaram para trás. Ao cruzarem os grandes rios que cortam o mundo inferior, as emoções que os motivavam em vida foram removidas. Eles não têm desejos nem necessidades. Para eles, não existe tempo. A história deles acabou. Estão mortos. Simples assim.

A passagem pelo Aqueronte, o rio da eterna aflição, livra os mortos dos sentimentos negativos associados aos males que lhes foram infringidos pelas ações dos outros. Suas águas lavam as dores de amores não correspondidos ou abortados, a revolta pelas injustiças de que foram vítimas, o inconformismo pelas iniqüidades do mundo e da sociedade, as dores infligidas ao corpo pela violência do mundo, os sofrimentos vindos de doenças do corpo e da mente. O Aqueronte tira dos mortos os atenuantes para as suas ações e os expõe à consciência de quem realmente foram e do mal que foram capazes de praticar.

Todos somos em algum momento vítimas de algo de que não tivemos culpa, mas depois optamos por nos tornarmos protetores ou carrascos de outras vítimas da mesma injustiça. Conhece a ti mesmo. Mesmo que depois da tua morte.

O Cócito, o rio do planto e do lamento, liberta os homens de suas culpas. Tanto as auto-impostas quanto aquelas que nos são atribuídas pelos outros, quer sejam justas ou não. No caminho entre o Aqueronte e o Cócito, os mortos encaram as conseqüências de suas ações em vida, mas não enfrentam um julgamento que não o próprio. Sejam inocentes ou culpados, estejam ou não arrependidos, ao atravessarem o Cócito, estão livres do remorso.

A passagem pelo Flegetonte livra os mortos de suas paixões sejam elas positivas ou negativas. Amor, ambição, espírito de aventura, sede de poder, fome de conhecimento, desejo de vingança ou aspiração à santidade. Tudo o que inflama a alma e motiva o ser humano a seguir em frente precisa ser extinto porque a morte é extinção.

O Flegetonte é um rio de fogo e nele as paixões ardem até sua completude para, finalmente, se extinguirem, apaziguando o espírito. No Flegetonte, os mortos experimentam por um momento a concretização de suas paixões e descobrem o que significava viver aquele forte desejo e até onde ele os levaria se realizados em vida. Uma vez vivenciados intensamente, mesmo que na morte, esses desejos podem ser transcendidos, para serem, então, definitivamente abandonados.

Finalmente, o Letes. O rio do esquecimento apaga dos mortos a sua identidade e todas as lembranças de tudo que fizeram de bom ou de mal. Lembrar é uma forma de viver e o Hades é o reino definitivo dos mortos.

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O Hades não é o Inferno. A vida humana é curta e limitada. Não existe nenhum motivo para que o castigo por um ato efêmero seja eterno, já que o sofrimento que causou também não foi eterno. Ao cruzarem o Letes, os atos dos mortos só persistem na lembrança dos vivos.

E sempre fora assim para todos, até Eles surgirem.

Eles. Os Deuses. Eles passaram a determinar o que era certo e o que era errado. Eles eram eternos, ou assim se imaginavam, e decidiram que injúrias contra eles deviam ser punidas com sofrimento eterno.

O deus da guerra achava que matar o inimigo no campo de batalha era certo. Um deus da paz talvez achasse errado, mas simplesmente não existia um deus da paz. No mundo, imperava a lei do mais forte e só os mais fortes sobreviviam. A justiça do olho por olho alimentava as vendettas de clãs ou de famílias. Mate agora ou morra amanhã. Se as opções se resumiam a matar ou morrer, matar não era considerado errado.

A deusa do amor achava certo que as pessoas se entregassem aos seus desejos sem medir as conseqüências. A deusa da caça e da lua valorizava a castidade e exigia punição para quem não respeitasse quem fez a escolha pela castidade. A deusa do fogo familiar pregava a fidelidade conjugal e a punição exemplar dos adúlteros. Era impossível agradar às três deusas simultaneamente e, portanto, nenhuma das três opções era intrinsecamente errada. Tudo dependia das circunstâncias.

Quando o assunto é amor e sexo, humano ou deus, atire a primeira pedra quem nunca errou. Talvez não exista mesmo o certo e o errado nesta questão.

Roubar era errado, mas era certo o seu vizinho ter e você não? Era certo a sua aldeia morrer de fome, se existia comida em abundância na aldeia vizinha. Muitos povos viviam da pirataria. Era a base da sua cultura. Não era diferente das aves marinhas que investiam umas contra as outras para roubar-lhes o produto da pesca. As gaivotas mereciam a danação eterna no Inferno? Errado ou não, havia um deus patrono dos ladrões.

Existem muitos criminosos porque existem muitas leis. Se todas as leis fossem abolidas, não existiriam criminosos. Se não reconhecemos o pecado, a punição não se justifica.

Mas, havia uns poucos atos que eram reconhecidos como errados por todos. Considerar-se superior ou buscar equiparar-se aos deuses em suas prerrogativas e atributos. Oferecer hospitalidade e agir traiçoeiramente contra o hóspede. Para uns poucos grandes criminosos, uma eternidade de sofrimento. No Tártaro.

O Tártaro surgira como local de confinamento dos grandes inimigos dos Olimpianos, como os Titãs. Virou lugar de punição, no caso de Prometeu. Não era para ser um destino final para homens. Com o tempo, no entanto, alguns acabaram condenados. Mas, eram a exceção. E fizeram por merecer. Prometeu acabou anistiado e voltou para o Olimpo. Talvez um dia, os criminosos humanos também sejam libertados.

Sísifo testemunhou o rapto da filha de um deus-rio por Zeus e contou o que viu ao pai furioso da ninfa, em troca de ter sempre água em suas terras. Zeus, irritado, ordenou que Tânatos, a Morte, fosse buscá-lo. Sísifo, primeiro enganou a Morte, aprisionando-a e fazendo que por um tempo ninguém mais morresse no mundo. Levado para o submundo, convenceu a Morte e deixá-lo voltar ao mundo dos vivos por uns dias e não mais voltou. Acabou morrendo serenamente de velhice, mas sua ofensa a Zeus e à ordem natural não foi esquecida. Ao chegar ao Hades, foi condenado ao Tártaro.

Tântalo, convidado pelos deuses a participar de um banquete no Olimpo, contou aos homens as fofocas e maledicências sobre o que vira e ouvira dos deuses. Mas, não esse foi o motivo de sua condenação. Ele ousou convidar os deuses para um banquete em seu palácio, a pretexto de retribuir-lhes a gentileza, e serviu-lhes um ensopado de carne condimentado com ervas finas preparado com pedaços do corpo do próprio filho, que matara apenas para testar a omnisciência dos deuses.

Ixion depois de não entregar ao sogro as cabeças de gado prometidas como dote pela mão da filha, fingiu estar arrependido, chamou o sogro até sua casa para uma reconciliação e queimou-o vivo. Perdoado por Zeus de seu crime, Ixion assediou a própria esposa de Zeus, a deusa Hera. Alertado pela esposa, Zeus deu a uma nuvem a forma de sua esposa e deixou que Ixion tivesse uma noite de amor com o construto. Ixion foi fulminado por um raio quando se gabava para amigos ter corneado o deus supremo. No Tártaro, foi amarrado a uma roda em chamas em sofrimento eterno.

Mas, mesmo o Tártaro não parecia com o Inferno. Sísifo tinha que empurrar uma grande pedra arredondada montanha acima, mas, ao depositá-la no cume, ela rolava pelo outra encosta, obrigando-o a reiniciar a tarefa. Tântalo tentava beber água de um rio cristalino, mas a água fugia de seus dedos. Tentava alcançar frutos maduros e suculentos de árvores frondosas que cresciam nas margens do rio, mas os galhos afastavam-se de suas mãos. Mas, eles não tinham carcereiros sádicos e cumpriam sua pena num inferno paradisíaco.

A punição de Ixion foi mais severa, mas convenhamos que ele passou dos limites. Não seria de se estranhar que o local de punição de Ixion estivesse na rota do Inferno cristão.

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Inferno. Erre uma vez e sofra eternamente. É justo que seja assim? O Hades não deveria voltar a ser o destino final de todos os mortais?

Gabriel é confrontado com estas questões quando a Argo se aproxima do Aqueronte e as emoções deixadas para trás pelos mortos que cruzaram o rio da eterna aflição começam a influenciar os homens a bordo.

As vítimas do erro de avaliação de Gabriel estavam a muitas realidades de distância, mas era impossível estar ali escutando as dores dos mortos e não lembrar que falhara em impedir a extinção de toda a humanidade em sua realidade de origem. A praga zumbi devastava a alma dos infectados e lhes fechava a porta do Paraíso. O destino final de bilhões de almas humanas de sua realidade seria o Purgatório e, para elas, a eternidade seria passada na companhia de todo tipo de monstros e em condições muito mais terríveis que as do Hades.

Se já é difícil para um homem encarar os erros cometidos em algumas décadas de vida, imagine confrontar erros acumulados em mais de seis milênios. Os semideuses são assombrados pelas dores e mágoas que infligiram a milhares de pessoas cujas vidas cruzaram com as deles ao longo dos séculos. Amigos, amantes, desafetos, pessoas que ignoraram, humilharam, feriram ou matarem sem nem mesmo conhecer seus nomes.

Eles podem ter esquecido daqueles a quem um dia feriram. As vítimas das injúrias não esqueceram. Elas levaram suas dores e mágoas para o túmulo; e além. Essas dores e mágoas impregnaram as águas do Aqueronte e geraram um poderoso campo psíquico que emana do rio e se espalha pelos arredores. Cada pessoa tem sua própria assinatura energética. De alguma forma, a energia difusa nas águas guardava a memória destas assinaturas. Não importa que tenham se passado dez mil anos ou mais, o mal que fizeram estava ali aguardando por eles.

Eufemo cai de joelhos, gritando em agonia, quando as dores de amor de milhares de mulheres invadem sua alma. Mulheres a quem deu uma noite de amor e décadas de lembrança desta única noite, às vezes na forma de uma criança sem pai. Mulheres que cultivaram por anos a esperança de ganharem uma segunda chance, se culpando pelo que poderiam ter deixado de fazer naquela única noite de amor. Aonde tinham errado? O que havia de errado com elas? Mulheres a quem deu alguns meses ou mesmo alguns anos de amor e que um dia se viram trocadas por outras mais atraentes ou mais ousadas. Amor transformado em ódio. Mulheres feias que se sentiram ainda mais feias ao serem completamente ignoradas por ele. Rancor e despeito. Mulheres que envelheceram vendo-o permanecer eternamente jovem e desejado. Vendo o olhar de desejo que um dia ele lhes dedicara voltado para outras. Ódio e inveja.

As dores de amor marcam a alma muito mais que ferimentos físicos e são direcionadas. Há sempre um culpado muito bem identificado por aquele sofrimento. Além disso, as vítimas das dores de amor realimentam suas dores por anos ou mesmo pela vida toda. Como se não bastasse, eram quase todas mulheres gregas. Mesmo que, no dois últimos milênios, muitas tenham adotado a fé cristã, mesmo estas conheciam as antigas crenças que subsistiam fortes na região de Santorini. Ao morrerem, várias seguiram para o Hades e não para o Paraíso ou o Inferno cristãos. Por isso, de todos, Eufemo foi o mais afetado.

Mas, não foi o único.

Jasão sente os dedos acusadores dos seus vinte e dois filhos naturais assassinados por Medéia, quatorze deles crianças de menos de dez anos. Alguns que ele nem imaginava que existiram, mas para os quais Medéia fez questão de deixar bem claro o motivo pelo qual os estava torturando antes de matá-los. Crianças assombradas pelo pavor que aquela mulher insana lhes incutiu na alma.

Foram dezoito as suas amantes assassinadas pela feiticeira. Exceto uma, mulheres que significaram pouco ou nada para ele. Elas sofreram quando foram abandonadas, mas nem de perto o que sofreram depois, nas mãos impiedosas de Medéia. Em seu sofrimento, elas amaldiçoaram Jasão e o culparam por todo o mal que seu amor efêmero lhes trouxera.

O ódio de Medéia continuou fazendo vítimas inocentes nas décadas seguintes: quatro netos, seis bisnetos e trinta e um descendentes diretos do ex-marido. À medida que o tempo passava, mais e mais cruéis eram as mortes. Mesmo os que nunca tinham ouvido falar em Jasão aprenderam a odiá-lo como o grande culpado por suas desgraças. Mas Medéia não parou por aí. Passou a matar qualquer um que lhe lembrasse Jasão. Centenas de mortes. Jasão sentiu a dor de cada uma delas, como se fosse ele próprio morrendo em agonia centenas de vezes. Para sua sorte, com o passar dos séculos, os mortos passaram a ser de povos com outras crenças e estes, ao morrerem, não seguiram para o Hades.

Caído no convés da Argo, Jasão sofreu com o inconformismo e a mágoa infinita de Absirto, o irmão de Medéia, traído e esquartejado pela irmã que idolatrava, para ela e seu amante estrangeiro fugissem da Cólquida. Depois, vivenciou a mesma dor que Κρέουσα, que não viveu para tornar-se sua esposa, o veneno penetrando em sua pele como fogo. Porém, mais que dor, ela sentiu revolta e mágoa por ele não ter impedido que a feiticeira louca chegasse até ela no dia de seu casamento. Aquela mágoa queimava tanto ou mais que o veneno.

Perto destas dores, o sofrimento que ele próprio infligiu a inúmeros homens no campo de batalha parecia algo pequeno. Uma gota d’água num oceano de dores.

Para sorte de Autólico, a maior parte das vítimas de seus golpes não seguia as crenças dos gregos e suas almas não estavam no Hades para acusá-lo. Muitos dos que roubou ou prejudicou sequer tomaram conhecimento em vida da sua responsabilidade nestes atos e direcionaram seu rancor para terceiros ou para a sua própria ingenuidade e fraqueza. Destes, ele escapou. Mas também ele tinha sua cota de mulheres ressentidas, o rancor de conhecidos que confiaram nele e foram enganados e o ódio de todos aqueles cuja vida destruiu por ganância. Pessoas que perderam os meios de subsistência, que tiveram que abandonar sonhos e projetos, que se suicidaram. Mesmo que menos de um milésimo de suas vítimas o acusasse, ainda assim era muita gente. Autólico se contorce em agonia.

Zetes estava pagando por seus muitos séculos de ações irresponsáveis. Suas brincadeiras deixaram um saldo de navios naufragados, aldeias arrasadas, homens feridos e colheitas destruídas. Hoje em dia, ninguém em sã consciência dirige sentimentos de ódio ou rancor para uma tempestade ou um tornado, já que não pensamos nas forças da natureza como seres vivos capazes de fazer escolhas. Mas não foi sempre assim. Os antigos escutavam as risadas dos ventos em meio à destruição que traziam e os imaginavam como crianças inconseqüentes e cruéis. Não era estranho que os amaldiçoassem e os responsabilizassem por suas perdas.

O ódio pode cortar como garras afiadas. Zetes sente seu corpo ser dilacerado pelo ódio dirigido a ele pelas harpias, monstros com corpo de pássaro e rostos e seios de mulher que ele e o irmão exterminaram durante a excursão da Argo original. Uma dor maior que a causada pelas flechas que as levaram ao Hades.

Palemon era um gênio dedicado e meticuloso. Sempre fora obcecado com perfeição. Não admitia falhas, não perdoava erros. Dispensava sumariamente qualquer auxiliar menos competente ou aplicado. Arrogante, menosprezava todos que considerava intelectualmente limitados, mesmo que fossem homens poderosos. E isso significava praticamente todo mundo.

Sempre foi odiado por seus subordinados, pelas críticas implacáveis que fazia e pelo menosprezo que lhes dirigia mesmo quando se esforçavam para agradá-lo. Sempre foi odiado, invejado ou temido por colegas e superiores, já que, confiante em sua capacidade intelectual e dono de uma incalculável fortuna, nunca baixara a cabeça ou controlara a língua para quem quer que fosse. Aquelas vozes que sempre se calaram na sua presença, agora gritavam em seus ouvidos as queixas e mágoas que não tiveram coragem de dizer em vida.

À medida que esses gritos aumentavam, a concentração de Palemon é enfraquecida e a própria integridade da Argo é abalada.


A nave começa a se desfazer em pleno vôo.


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Notas finais do capítulo

21.03.2012