Legado De Poder escrita por Merophe


Capítulo 1
I




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Não poderia ser talvez a residência imaginada. Localizada na cidade de Pormadre, a mansão Casa do Reino reluzia já do asfalto da rua. Murada pelo cobogó de concreto de meia parede, a singeleza apareceu com a vista dos alfeneiros. Não demorou para o portão deslizante liberar a passagem do carro escuro. A velocidade aumentou na passarela de concreto, encostou na fachada com o vidro do volante abaixado. Mandaram avisar ao mordomo sobre o visitante inesperado.

Nem tão inesperado seria para Enrico. Antes, era um empecilho alguém lhe perturbar depois das quatorze horas. Acompanhava um programa devocional na rádio de horário marcado, conferindo na bíblia as passagens ouvidas e um terço enrolado na mão. Devoto da Virgem Maria, carregava a gargantilha com a imagem por baixo das camisetas e, quando lembrava, beijava às escondidas. Desta vez, não ouvia os versículos, muito menos as rezas repetidas. Na hora distante da programação, um livro se tornou no passatempo. Lido algumas páginas, ao menos sabia do que se tratava a temática sobre tripulação e técnicas navais. Pausaram os passos na entrada da sala. Aproximou-se o mordomo na poltrona para explicar e cessar instantaneamente o recado, quando umas pegadas continuaram para dentro do cômodo. Enrico se virou na poltrona primeiramente para reprovar sem sucesso o rapaz.

— Sou eu.

Mal educado, nunca deixava de ser, ainda mais impaciente sem saber esperar o retorno do mordomo com a permissão para entrar. Enrico nem o repreendeu. Fechou o livro, ainda com os dedos marcando as páginas com a leitura incompleta, e liberou o mordomo. Na lareira, entulhou o livro por cima de outros.

— Eu lhe disse que voltaríamos a nos ver quando lhe mandassem vir atrás de mim.

— Podemos marcar um reencontro melhor em outro dia.

— Pode trazer azar. — Enrico se afastou da lareira, reparando nos braços do rapaz.

— Escondeu a santa antes de falar isso?

A cruz invertida do antebraço direito se revelou totalmente assim que a imagem da gargantilha de Enrico foi apontada pelo rapaz. As tatuagens nunca agradaram a Enrico; explicavam muito sobre a falta de fé no rapaz. Apelidado por muitos de Anticristo, o invento das cruzes invertidas tatuadas nos antebraços completou a identidade inventada. ‘Diabo solto em Monte dos Reis’. Enrico temia que os nomes satânicos destruíssem por completo a sua boa índole.

— Prefiro não esconde-la da sua alma perdida.

— Ela não vai querer salvar um diabo.

Não deu certo insinuar uma graça. Intimidou-se logo pelo olhar frívolo de Enrico, uma arma letal de constrangimento, com o delicado azul gelo no fundo.

Enrico se adiantou com a iniciativa de ir direto à conversa.

— Ainda não gosto de receber visitas, mas eu já sei que o motivo de você ter vindo me encontrar tem a ver com a minha resposta.

 

 

A reunião se mantinha por dentro da sala, portas fechadas para não vazar as informações, ou talvez apenas para não precipitar com os falatórios. Diferente do amigo, Lorenzo se conformou rápido com o puro malte. Paladar fino valia muito em todas as ocasiões, dispensava o mais barato até nas conversas de última hora. Decidiram comparecer a uma reunião em Monte dos Reis, acordo combinado por Caius, voz suprema da Sociedade e atual capô do eterno clã Marquese. Descendente de duas famílias, sendo consagrado mesmo no mundo do crime pelo clã de Castelli de linhagem paterna. Alternando a vida entre Monte dos Reis e a cidade normal dos tiras, o sobrenome materno apenas servia para esconder a identidade firmada na Sociedade. Alguns da elite mafiosa e consagrada na cidade costeira e montanhosa Monte dos Reis viviam em segredo e discrição na cidade dos tiras. Além dos investimentos em multinacionais e fundações, o registro na cidade dos tiras facilitou a vida sem suspeitas de Caius. Acostumado com a dupla identidade, a delegação não foi demorada para a liderança da Sociedade. Sem votação e mais confiança com o homem que, dias antes, tinha a facilidade de não se envolver em nenhuma acusação criminal.

— Não sei se eles deveriam pegar tão pesado.

O lance do jornal na mesa de centro de madeira oleada desviou os olhos achocolatados de Caius. Lorenzo cruzou os braços, aguardando alguma resposta.

Nome respeitado também dentro da Sociedade, vindo do clã de Valentini, Lorenzo tinha proposto inicialmente a reunião com Caius.

— É a sua mãe que está morta mais uma vez no jornal.

Lorenzo não enganou a inquietação com as passagens pela sala de cortinas fechadas. Iluminando o fino mastro da bandeira italiana na parede, o lustre de três castiçais refletiu o copo descansado na mesa com uns resquícios de whisky. Evitando falar antes de pensar, Caius cruzou os dedos na poltrona marrom, tentando reparar a manchete do jornal.

— Estamos ficando sem tempo para decidirmos tudo isso. Acabará envolvendo todos nós. — Lorenzo continuou com a preocupação.

— Ainda acredito que eu sou o único suspeito.

— Nem na cidade dos tiras você estava.

Alcançando primeiro o copo da escrivaninha, Lorenzo resolveu por fim se acomodar no sofá. A barba loira e cheia não se umedeceu com o trago demorado.

— Precisamos aguardar a volta de Ettore.

— Em Pormadre não se encontra um com quem se possa contar.

— Tentei conversar sem precisar envolver ninguém, mas Enrico está demorando demais com a resposta. Ele sabe onde está o último herdeiro dos Marqueses.

 

 

Família antiga e respeitada, os Marqueses se resumiam. Foram os primeiros a constituir a Sociedade e a formar os Rosa Azul, unindo inicialmente as três famílias poderosas. Juntamente com os Valentini e os Castelli, deram nomeações aos membros dos Rosa Azul. Símbolo presente entre os Marqueses, o canteiro de rosas azuis, cultivado por um antigo capô, se tornou a identificação dos aliados. O último membro ativo pelo clã dos Marqueses, muito conhecido, era chamado de Vincenzo. Até onde sabiam, residia na mansão Casa do Príncipe, sozinho e sem nenhum herdeiro.

— Ele era o meu amigo. Jurei que continuaria mantendo em segredo o filho perdido de Vincenzo.

— Não parece que foi muito secreto.

Ettore se apoiou no cercado da varanda, avistando o trabalho do jardineiro no gramado, enquanto os regadores automaticamente aguavam a trilha aparada.

— Alguns já sabiam. Também os boatos não foram tão verdadeiros. A veracidade é que faz comprovar o melhor. — Enrico escondeu as mãos nos bolsos da calça, reparou as bromélias douradas e já aquecidas pelo sol.

— Eles também devem dizer um pouco de verdade.

— Ninguém nunca soube quem era a mãe da criança. Vincenzo não era casado.

Nem demorou para o olhar de Enrico ser desviado pelo riso folgado de Ettore.

— Teve um desfecho com um filho fora de Monte dos Reis.

— É uma história parecida com a de Caius. Ele não foi escolhido para ser o novo chefe dos Marqueses?

— Não vai ser por muito tempo, a mãe dele foi encontrada morta na cidade dos tiras.

Cidade normal ou cidade dos tiras. Terra da lei incompleta e da justiça cega e comprada. Poucos da Sociedade sobreviviam clandestinamente na cidade, as exceções mal percebidas pelos tiras. Inimigos da Sociedade, juntamente com os alarmes da imprensa, fizeram com que Monte dos Reis se tornasse o alvo da polícia e dos rumores dos civis de Terra Bandida. Interligando os variados crimes da cidade, rapidamente a máfia tornou-se conhecida e divulgada pela mídia, com a sede formada em Monte dos Reis. Assim foram interpretados os relatos de alguns membros capturados. Envolvidos com crimes de todos os tipos, os clãs formavam-se com Membros e Recrutas, a maioria atuando dispersa pelo mundo. Não era o caso de Caius; escolhera trabalhar diretamente na cidade normal. Empresário em destaque em reportagens, um rosto famoso, conhecido por atuar como sócio de multinacionais. Especialista formado da família Castelli, recolhia o dobro do salário com as negociações de lavagem de dinheiro.

Nunca houve provas ou acusações confirmadas na cidade normal. A limpeza pesada nos rastros era uma técnica improvisada no final do trabalho dos Castellines. Fiorella já ouvira falar dessa especialidade. Esposa recatada e com o nome forte dos Tarantinos, aceitou a união antes de Caius governar o clã, sem descendentes dos Marqueses, e assumir a grande máfia.

Fugiu para a varanda para acalmar a ansiedade. Já bastava ao marido receber conselhos do amigo e discutir mais uma vez sobre a acusação falsa. Crente da inocência do marido, qualquer hipótese contrária ardia-lhe nas costas. Como não se garantia em expor as próprias defesas nas discussões, inventava um ataque de pânico e uma simulação de fraqueza nas pernas. Inspirou o ar fresco várias vezes, aguardando no primeiro andar. Decidida a não retornar para a sala, no primeiro sombreado aparente na escadaria, a cabeça se esticou para além do muro de concreto.

Ainda em leve discussão, os dois homens desceram a escadaria larga da entrada. Igualando as mangas do pulôver marinho aos cotovelos, o riso solto de Caius provou que o papo era sobre um assunto diferente. A batida de mãos afastou Lorenzo para o Porsche Exclusive, já vibrando com os motores, que desapareceu depois do chafariz obelisco.

Rápido apenas com a meia volta dos pés, o encontro de Caius com a imediata chegada de Fiorella alterou até um descompasso leve no peito. A postura surpreendeu, com os passos alinhados no salto scarpin amarelo.

— Me diga se ele trouxe alguma solução desta vez. — A sorte de uma sujeira encontrada na gola da camisa branca de Caius ajudou Fiorella a se acalmar.

— Ainda estão procurando alguém para ficar no meu lugar.

— Não vou acreditar que está muito ruim a sua situação.

— Tenho que colaborar.

Estava nítido que a firmeza enfraquecia no olhar dele. Fiorella resolveu incentivar.

— Mas não vai dar em nada. – Bater na gola limpa reafirmou o incentivo.

— Verei o que eles poderão me dizer amanhã.

Receber o reforço positivo tão cedo causou uma estranheza em Fiorella. Ela nunca confundia a meiguice das mordiscadas nas pontas dos dedos, porém suspeitava quando Caius evitava receber uma contrariedade.

Desistindo do mimo sem sucesso, dependia apenas de Fiorella aceitar a explicação.

— Terei que voltar para a cidade. Estão precisando de um novo depoimento.

 

 

Provas do assassinato ninguém tinha realmente. Encontraram o corpo na cidade, durante a noite, de Carmen Montano, posicionado em frente ao volante, tendo o xale rendado tingido por uma bala. Poucos dias depois que Caius passou na cidade, retornou para Monte dos Reis uma tarde antes. A notícia se espalhou pela cidade dos tiras com enfoques nos noticiários. Informaram Caius do homicídio e teve que retornar às pressas para colaborar com as investigações.

— Aqui eu posso dizer que é idiotice se arriscar demais.

Adiantando as mãos dentro dos bolsos, Enrico se desvirou rapidamente para o rapaz.

— Tem alguma câmera escondida na sua casa? — Atento com os degraus, na descida para o pátio, o rosto de Ettore esquentou por conta do holofote do céu.

— Tem medo que eu entregue alguma prova da sua coragem para eles?

— Eu sei que você não tem mais idade para me ameaçar. Arrumou um paraíso no céu.

Manusear as mãos foi mais um deboche percebido por Enrico. Algum escárnio com a santa causaria um grande problema. Mesmo não aparentando a idade real, Enrico corrigia os palpites por vontade. Ainda saudável e embelezado pelos grisalhos no cabelo castanho escuro, o acréscimo da barba alinhada nos ângulos do rosto, juntamente com os olhos azuis de gelo, aumentava o fascínio das solteironas. Abençoado com um tipo de sorte por não se desgastar com os cinquenta e três anos.

— Eu levo a sério se alguém falar de paraíso comigo.

— Já tentei ler a bíblia. Não foi assim que Lúcifer conheceu toda a palavra?

— Ele pecou antes de cumprir. — Enrico insistiu, estendia uma conversa mal inventada para levantar as dúvidas no rapaz.

— Fez uma mulher pecar. — Ettore reforçou o indicador. — Finalmente entendemos a raiz de todos os problemas.

— Você precisou de uma mulher para nascer.

— Não me lembro de ter pedido alguém para me ajudar a sair da placenta.

Enrico apressou os passos no pátio, ultrapassou as cicas nos canteiros e alcançou o átrio quadrangular, soltando o fôlego. Retornaram para um dos salões de leitura. Metódico na classificação dos assuntos, ao menos os livros nas estantes de imbuia facilitavam com a ordem alfabética. Ettore apalpou a lombada de um livro grosso, destacando um couro sintético escuro.

— Não retire. Eu faço você arrumar.

— Tem muito assunto que eu não gosto.

Não fazendo muito caso do aviso, o menosprezo com as pinturas da parede próxima surgiu de repente com a aparência da santa de braços abertos nas nuvens. Ettore interrompeu com a blasfêmia da cabeça pelo salto da tampa do licor aberto por Enrico.

— Você ainda bebe?

— Tenho um gosto diferente. 

Foi suficiente recusar, mas Enrico desviou os olhos do licor escorrendo na taça para sondar os circuitos do rapaz. Pinturas barrocas, livros didáticos, mesa posta de xadrez, cavalete mal usado, era até difícil para Ettore entender o gosto antiquado de Enrico. Apenas o lustre candelabro de luz velha lhe causava uma claustrofobia.

— Já sofreu com algum pensamento suicida ou algo parecido com um ataque de pânico?

— Quer saber se eu tenho uma relação boa com os meus vizinhos? Não conheço nenhum deles. — Enrico respondeu rápido estimando aproveitar mais do licor chocolate.

— Esqueceram de avançar o tempo para você.

Discretamente, a porta de duas folhas se abriu. Enrico atentou-se ao aviso dado pela empregada. Exatamente na entrada da mansão, alguém desembarcava de um carro. Do átrio, Ettore reparou na aproximação do mordomo, que segurava algumas caixas nas mãos. Enrico não atravessou o pátio; em vez disso, escondeu as mãos com a cruz dos braços, vendo a moça sair do carro.

— Pensei que morava sozinho.

Ettore desviou o olhar para a moça entrando no jardim principal. Não foi a franja que impediu de reconhecer o rosto; o alcance do sol incomodou diretamente nos olhos da jovem, e a mão escondeu-lhe grande parte da face. Na frente do mordomo, ela falou alguma coisa. Passaram pelo pátio, dobrando para os fundos da mansão. Enrico desatou os braços, sem se incomodar com a mesma introversão.

— Ela é a minha filha.

 

 

A filha mais velha dos Tarantinos se chamava Eliane. Muito autoritária na opinião dos conhecidos, envolvida em contrabando de tecidos. No quesito de esperteza, via-se mais avançada que Fiorella. Esposa e senhora do capô dos Messinas, as aparências enganavam nas boas ocasiões com a irmã. Houve rumores de uma rivalidade por causa dos maridos; Caius mal tinha uma posição no meio dos Castellines por conta da vida dupla com a cidade dos tiras, enquanto Pasini já pendia anos de capô dos Messinas. Meio caminho andado para as fofocas, pois, apesar das posições serem diferentes no início, as irmãs Tarantino viviam mesmo em rivalidade por qualquer coisa. Não seria diferente com a situação de Caius sendo suspeito do assassinato da própria mãe.

A descida na escada foi rápida. Passando discretamente pelo salão aberto, a voz da criança na outra sala, Eliane tentou desprezar. Manteve firme o telefone no ouvido; a chamada em nenhum momento foi atendida. Viera insistindo na ligação desde o quarto; precisava resolver um assunto importante o mais breve possível. Desistiu no meio da chamada, atravessou o arco para o outro salão, tilintando o salto fino no carpete vinílico. Na poltrona vaga, sentou-se, e deu-lhe logo um vexame ao ouvir o ruído da página virada do caça-palavras, que era o passatempo preferido do marido.

— Falaram com você alguma notícia de Caius?

— A sua irmã deve saber de alguma coisa.

Poderia ter sido indispensável para ela esconder o lado torto dos lábios. Pasini manuseou a caneta alinhando alguma palavra na página.

— Ela deve acreditar em qualquer coisa.

Eliane percebeu a menina sair correndo do salão em frente, ressoou os passos pesados na escada.

— Ninguém não nos avisou nada até agora. Não estou conformada. — A postura se desalinhou com o escoro no braço da poltrona. — Não confio muito em Lorenzo.

Demorando a falar, Pasini traçou na horizontal uma palavra gigante, confiou na contagem das letras para se conformar com o acerto.

— Ele deve ajudar. — A ponta do lápis se afastou do canto da boca para reforçar mais outro risco na mesma palavra. — Ouvi dizer que ele está procurando alguém para substituir Caius.

— Mas não deve ser assim!

Pasini espiou de canto a palma batendo no braço estofado da poltrona revestida por um capitonê semelhante ao ocre.

— Lorenzo não decide as coisas sozinho.

— A situação de Caius não está sendo muito favorável para alguma decisão. — A voz de Pasini também se alterou com o entusiasmo.

— Ninguém me faz garantir que Caius seja mesmo inocente. Mandou matar a mãe porque descobriu que ele era do crime.

A pressa de Pasini para revirar a página quase rasgou a folha da revista.

— Fiorella não quer aceitar nada.

— Ela conhece as suas mentiras. — Já era por distração o folheio nas páginas da revista. — Lorenzo fez certo em procurar Enrico.

Mesmo de face virada para o marido, Eliane torceu a boca antes de reprovar.

— Não concordo. Ninguém de fora deveria se intrometer nisto.

— Ele foi amigo de Vincenzo, deve saber onde encontrar o filho perdido. Achei que se lembraria dele.

— Eu me lembro dele. Tinha sido um Rosa Azul.

 

 

Rosa Azul era um segredo do passado de Enrico. Atuando pelo clã dos Giordanos, a família da mãe era a preferida e prioritária. Unida com o clã dos Carusos, as duas famílias pareciam ser semelhantes em várias questões, até surgir o abalo com uma traição no casamento. Uma irmã por parte de pai tornou-se conhecida por Enrico posteriormente. Vivendo em Londres desde então com a mãe e amante, o relato da infidelidade foi contado pela própria mãe. Resolvendo o divórcio, a dúvida de muitos foi com a desfeita da amizade mantida pelas famílias. Os Giordanos e os Carusos se conheciam desde antes; o casamento não seria garantido de reatar, porém a separação não foi capaz de prejudicar os laços antigos. Tendo o pai saído primeiro de Monte dos Reis, Enrico assumiu o sobrenome da mãe e os negócios diversificados da família Giordano. Permaneceu como um membro ativo até os trinta e cinco anos, decidindo se aposentar da Sociedade na mesma idade. Mudou-se para Pormadre e converteu-se à fé católica, nunca mais se envolvendo com as duas famílias atualmente inativas.

Portadora de diabetes, a mãe partiu primeiro. Em seguida, a família se dissolveu em outras cidades, inclusive países. Desistiram dos negócios em Monte dos Reis, assim como os Carusos. Por sorte, o pai deu notícias da Espanha; tinha alguém para cuidar da artrose e do casal de cães maltês.

Mantinham uma conversa de vez em quando. Enrico se informava sobre o estado de saúde, envolvia os mesmos assuntos, sendo tímido demais para trazer novidades.

Nunca confessou sobre a filha, acreditava que o velho não precisaria conhecer os detalhes do convívio. Mas a verdade é que Enrico não enganava sobre a relação perturbada; ao menos respeitava as decisões da filha de manter a pouca conversa e as visitas, na maior parte do dia, ao orfanato da igreja. Primeira e única filha, raras vezes a chamava pelo nome completo, Giane, tendo o apelido curto de Gigi desde criança. Trancava-se no quarto, descendo ao salão somente quando necessário, pisoteando levemente para não se deparar com Enrico.

Nem fez muito diferente assim que chegou na mansão. Era o paradeiro conhecido por todos. A empregada precisou bater com pouca força na porta do quarto. Esperou a garota responder para anunciar a espera do jantar.

— Aquele outro já foi embora?

Não foi preciso estranhar o bater dos talheres. Tinha vinho servido e somente Enrico estava na mesa. Por detrás da parede Giane reparou. Encontrou o lugar reservado ao lado do assento da extremidade, Enrico fingiu desperceber a puxada da cadeira. Na massa fresca ainda se via o vapor, a salsa se afundou no molho com o sopro proposital da moça.

Nenhuma palavra escapou durante a refeição. Por vezes espiando Enrico percebia a timidez da moça por meio do prato mal remexido. Largava os talheres na porcelana e bebericava o vinho para tapear. Durou um tempo o silêncio na sala, até Giane perceber alguém se aproximando com uma conversa estranha no celular.

Enrico entendeu do que se tratava o celular afastado do ouvido de Ettore. Deixou a mesa nas pressas.

Retornou sozinho para um dos salões, preferiu completar a ligação no telefone.

— O que você quer?

— Saber da sua lealdade.

Não estava sendo fácil de se resolver com Lorenzo.

— Nunca tive lealdade com você.

— Não é bem assim que os amigos se conversam.

Percebendo que o rapaz se afastou da porta, Enrico deixou de sussurrar.

— Não me lembro de ter considerado você com um amigo.

A risada sendo baixa, escapou de propósito de Lorenzo. Espiando novamente na fresta da porta, Enrico observou a passagem de Ettore para além da sala.

Era mais uma opressão de Lorenzo. Decidiu ligar por notícias, também exigiu que Ettore retornasse o quanto antes para Monte dos Reis.

— Eu ainda não disse nada para ele. E se não for um homem como é o esperado?

— Do que está falando? — A suspeição transpareceu na voz áspera de Lorenzo.

— A criança pode ser qualquer coisa.

— Vincenzo não te deixaria sem essa informação.

Enrico desistiu de responder. Nada parecia convencer Lorenzo. Já estava se intrometendo demais no segredo de Vincenzo. Se bem que a Sociedade agora dependia mais ainda desse mistério. Não seria pela morte da mãe que Caius poderia ser condenado. A Sociedade corria grande risco. Um escândalo entre um rosto famoso na cidade dos tiras, sendo líder dos Marqueses e da máfia escondida em Monte dos Reis, não parecia ser seguro para ninguém. Bastava apenas encontrar o herdeiro para livrar também a sentença pesada sobre Caius. Nenhuma investigação encontraria provas dos seus delitos na máfia, teria outro para substituir o poder em Monte dos Reis. Enrico compreendia a situação, mas deveria continuar irresoluto, considerando a promessa feita com Vincenzo. Por motivos desconhecidos tivera que esconder o filho. Jamais que alguém deveria saber do herdeiro. Nem mesmo em uma situação tão indecisa como a de Caius, nunca acontecendo antes entre os Rosa Azul.

Não tinha porque ainda se envolver com Monte dos Reis. A fé também o limitava com uma boa razão. Mudou a vida, arrependendo-se das abominações e do mundo errado que se envolvia na Sociedade. Ajudando com a revelação do herdeiro, seria cúmplice no pecado, responsável pelas vidas perdidas, o crescimento das drogas e da prostituição. Nenhuma alma levaria para o reino, antes disso entregaria todas ao inferno. Dependeu de um sermão na catedral da cidade para ler a bíblia e reconhecer a missão importante dos regenerados na terra. Pecaria novamente ao se envolver com Monte dos Reis. Não valeria em nada o arrependimento e todo o esforço do início para se livrar das tentações. A mesma coisa de nunca ter sido salvo, aceito e acolhido pela virgem do céu.

Era indeciso não apenas por causa de manter a promessa com Vincenzo, mas também pela fé que condenava os delitos de Monte dos Reis. Reta justiça haveria para a cidade bandida.

Lorenzo não manteve a paciência durante o silêncio, resmungou pela falta de conversa. Enrico decidiu retornar.

Expandiu o peito antes de falar. Lorenzo desconfiou quando o suspiro foi solto.

— Preciso que Ettore volte amanhã. — Não deu tempo de Lorenzo replicar, a conversa prosseguiu decidida por Enrico. — Posso explicar melhor para ele sobre o herdeiro.


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