1001 cartas para chegar até você escrita por Liliquinha


Capítulo 4
Capítulo 4 – Sobre o DC




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Ultimamente, a banda não tinha como ensaiar: incompatibilidade de agendas. Cascão treinava para o campeonato, Magali tinha o Quim e o vestibular para se ocupar, Cebola não se sentia à vontade de formar um trio com as mesmas pessoas que formavam discretamente o triângulo amoroso, nem Mônica. Para DC, nada seria mais legal que isso. No entanto, ele não insistiria. Queriam dar um tempo? Beleza. Ele continuava tocando música, escrevendo letras e compondo melodias. Comprou um violão para isso – tão comum que surpreendia.

Depois de velho, ele cansou de forçar a barra. Fazer tudo ao contrário requiria dele saber constantemente o que era “normal”, e sinceramente quem tem tempo de acompanhar todas as modinhas? Além da Denise, é claro. Ele repetia que era filosofia de vida, comprometimento vitalício, mas é que a vida tem muitos anos e uma hora cansa. Não tinha que ser uma prisão perpétua. O que as pessoas esperam dele pouco importa, ele se deu conta. Era mais fácil fazer o que ele queria do que fazer o que os outros não fariam – ou não deviam fazer. Vivia na contramão, não fazer nada como os outros, mas tinha algumas coisas que ele tinha que fazer: como respirar, comer, dormir... Era mais interessante fazer o que quisesse quando desse na telha: o problema é que às vezes acabava fazendo igual aos outros... Dane-se. Fez, está feito. Vida segue, ninguém morre por causa disso. Admitia ter sido bem mais comprometido na infância, agora que cresceu, parecia estar traindo o movimento (que ele mesmo criou e era seu único membro). É que todo mundo da turma mudou, por que só ele tem que se estagnar e viver exatamente como era? Para ser diferente? Ser como Peter Pan, nunca ter que crescer.

No entanto, ele cresceu! Ganhou novos interesses, curtia novas coisas. Pode até ser traição, mas deixar de gostar de um artista bom só por causa do número de fãs é tão infantil. Ou menosprezar alguma coisa só porque outras pessoas a curtem é tão bobo. Mimado. Teimoso. É bom ser essas coisas, faz com que ele pareça obstinado. Mas ele quer ser mais que duas palavrinhas pejorativas usadas para repreender seu comportamento. Quer ir além do apelido.

Ele não é só o contrariado. Realmente gosta de música experimental e cinema cult... Por quê? Além de outros não gostarem. Qual outra razão para justificar que ele gaste sete horas assistindo a um filme sobre nada? O que ele ganhava além do apelido? Descobriu o quão enfadonho e pretensioso é o artigo de arte denominado “cult”. Os críticos só elogiam para parecem mais inteligentes e cultas... Acima da massa popular. No entanto, em que era bom? Um dia ele se perguntou se ele gostava de soar pretensioso e vaidoso, se gostava daquelas coisas mesmo ou se era só para contrariar... E achou meio boba sua reposta, infantil. Ficou olhando o teto por horas nesse dia. Nenhum pensamento. E se deu conta que ele precisava descobrir quem era – não quem ele não era: isso ele já sabia. Não era como as outras pessoas. Ok... Mas quem é Maurício, o rapaz que chamam por aí de DC?

Pensou na “massa popular” e o que forma um grupo. Uma comunidade é feita de pessoas que partilham algo em comum: lugar, costumes, tradições, predileções, interesses políticos, valores religiosos... Mas dois cristãos não precisam de gostar das mesmas músicas, vestir as mesmas roupas... Por exemplo, um pode perfeitamente gostar de salsa e o outro ter aversão à música. Os dois no final das contas continuam na mesma comunidade religiosa, só não estariam na mesma comunidade musical. É como a história de conjuntos da matemática...

A é o conjunto de pessoas que rezam para deus. B é o conjunto de pessoas com intolerância à lactose. As duas formulações não são excludentes, por isso um elemento pode tanto pertencer simultaneamente ao conjunto A e ao B. Isso forma uma pequena interseção no meio dos conjuntos... A exemplo disso temos o conjunto M formado por todas as modinhas. É o conjunto de coisas que ele jurou não gostar jamais... DC é o conjunto de coisas que ele gosta, e que por isso não podem ser jamais elementos do outro conjunto... Ele queria que os dois conjuntos fossem automaticamente excludentes, mas não são. Há uma ou duas coisas do conjunto M de que ele gosta, mesmo que lhe cause dor física admitir... Portanto, entre o conjunto M e o DC tem uma interseção. Uma vergonhosa interseção... Mas o pior disso tudo, é que ele não sabe quais são todos elementos que formam o conjunto DC... Filmes húngaros? Todos? Algum deles deve fazer sucesso na Hungria e por isso pertenceriam ao conjunto M... Música conceitual? É, mas tem umas que doem a alma dos ouvidos, portanto não pertencem nem ao conjunto M nem ao DC. São elementos do conjunto N, “nem que a vaca tussa” ou de “Não dá para gostar nem ironicamente”. De verdade, a convicção de ser contrário a tudo às vezes o incomodava...

Não só quando ele perdia oportunidades de ouro para ser feliz. Não, isso era até irônico, e o lado tragicômico da coisa divertia e consolava. O problema é quando ele se deu conta de que para ser tão diferente, a identidade dele tem que não ser parecida com a de ninguém. E para isso ele tem que saber de antemão como os outros são. Ou seja, primeiro ele tem que saber qual é a opinião popular só para então formular sua opinião, que devia ser necessariamente oposta – mesmo que ele não esteja automaticamente de acordo... Meu deus, era como se ele fosse a Denise que bolou um plano infalível (cheio de falhas) à la mode Cebolinha para não ser como mais ninguém. E ironicamente, ele tem de agir como a combinação de duas pessoas no processo de se tornar diferente de todos. Ele devia ser meio tonto...

Tanto esforço para nem ser bem sucedido... E pior, nem feliz. Quer ser único? Seja um eremita nas cataratas do Niagara que vende picolés a base de marshmallow junto de seu sócio, um elefante albino... É... Seria muito desafiador se comprometer a tal tipo de vida. Sedutora... Agora ser um adolescente estudando em uma escola, dizendo que não curte a música que mais toca no rádio ou se recusa a ver o filme que lota as bilheterias... Escolhendo o que fazer diferente dos outros só soa como um garoto mimado e bem pretensioso... Quando é que ele se tornou o idiota do Cebola? E por que a Mônica não gosta dele como gosta do outro? Ei! Foco! Sim, comprar uma passagem para a Índia e tentar arranjar um elefante albino que queira investir em um negócio de picolés... Não. Sua mãe não lhe daria o dinheiro para a passagem...

Não, isso não era o mais importante agora. Nessa época de vestibular e faculdade, o que ele pretendia para o futuro? Sim, era essa a dúvida que tinha surgido em sua cabeça naquela manhã de ontem... Depois de ouvir por alto a conversa dos dois sobre destino. Em sua defesa, ele não estava espiando o casalzinho. Até desviou o olhar quando começaram a se abraçar, não ouviu o restante da conversa, achou melhor ir para casa... Voltando ao que importa, e a conclusão? Nenhuma. Não era do feitio dele responder, ele era quem perguntava, sempre e coisas sem sentido. Bancar o profundo e esconder o sentido e a lógica lá no fundinho para que ninguém ache. Não era obrigação dele encontrar significado para as coisas... No entanto, agora ele precisava. Era o futuro dele.

A mãe dele tinha falado sobre um possível intercambio no Japão. Ele sorriu e disse não. É claro que ela lhe pediu para pensar, mostrando para ele uma brochura e uns panfletos. Não tinha um powerpoint? Ele ficou desapontado com a mãe por não ter se esforçado na apresentação... A mãe paciente olhava-o com uma expressão indecifrável, ela queria uma resposta, mas os dois sabiam que tinha uma certa e uma errada. Ele prometeu que iria pensar, era uma decisão que precisava refletir antes de dar uma resposta. Ele não queria, mas contrariar a Dona Keiko podia ser uma decisão um tanto perigosa. E, de verdade, não era má ideia. O Japão era bonito, tinha terremoto e o monte Fuji. E as cerejeiras eram lindas, até o Do Contra não podia negar. Mas era longe! O que podia ser bom. Como também poderia ser horrível e assustador.

— Não é bom ficar com a cabeça baixa. – disse Nimbus entrando no quarto sem ser convidado.

— Meu quiropata não tira férias? – Dc estava deitado, deixando a cabeça pender na beira da cama – Não é bom trabalhar 24/7, precisa descansar a cabeça; além do mais, a medicina chinesa recomenda pelo menos trinta minutos diários de ficar com a cabeça baixa para o sangue chegar até o cérebro.

— Acho que você não pensa direito por isso: sangue demais no cérebro. – o irmão riu, sentando ao lado do caçula.

— É. É uma explicação plausível. – levantou para apoiar na cabeceira. “se ele continuasse falando disso...”, pensou – e o que o te traz às minhas maravilhosas acomodações?

— Mamãe falou do intercambio para o Japão...

— É, ela gosta de expor suas ideias a quem estiver disposto a ouvir.

— ... E disse que você ia pensar sobre o assunto.

— E estou pensando... Não viu agora a pouco? – encarou-o incrédulo – É uma mudança e tanto... Mesmo que eu saiba o suficiente da língua e tenha parentes para ajudar na adaptação, isso não torna o processo fácil. Facilita, mas é uma coisa bem difícil e não posso simplesmente dizer que sim, nem que não... – Nimbus o encarava espantado.

— É a coisa mais sensata que já te ouvi dizer...

— É, não sou só um rostinho bonito, quem diria, né? – riu para ele mostrando os dentes.

— E voltou a ser idiota... Era só o brilho de uma lâmpada fraquinha...

— Ei!

— E você acha que quer ir?

— Querer... Não sei...

— Está com medo? – negou com a cabeça – Não quer deixar uma pessoa especial para trás? – Nimbus abriu o sorriso e semicerrou os olhos. “Que sorriso mais idiota...”

— Não pensei nisso... – “Mentiroso...”

— Mentira! – olhou para o mais velho fingindo-se de ofendido – É claro que pensou nela. É o que você faz o dia todo!

— Eu faço muitas outras coisas além disso.

— Então admite que faz “isso”. – Aquele sorriso irritante de novo. Será que Nimbus tem um poder mágico de fazer o sorriso dele ser mais desagradável que o normal? Provavelmente.

— O que interessa é que eu preciso decidir se quero fazer o intercambio ou não. – Levantou-se espreguiçando e depois puxou o irmão, empurrando-o aos poucos para fora do quarto – Por um lado, vantagens profissionais, mudança de ares, nova cultura para conhecer e contrariar, novas pessoas para irritar, possiblidades infinitas... Pelo lado bom, eu não vou acompanhar de camarote o melodrama romântico de amigos de infância...

— Só vi vantagens...

— É... – ficou cabisbaixo – e é por isso mesmo que eu não sei se quero.

— Quer um conselho?

— Claro! – disse fechando a porta com um largo sorriso. Ela bateu de leve, fazendo um delicioso barulho. Melhor de tudo, Nimbus estava do lado de fora e ele sozinho no quarto, em paz...

— O camarote fica bem perto do palco, quem sabe você não pula lá para dar uma palinha? Tentar um novo papel antes de sair de vez do teatro? – ouvi-o falar da porta antes de se afastar da porta. Odiava quando ele estava certo.

Ele não se sentia atraído pelos palcos, estar na coxia era bem mais seu estilo. No entanto, era um lugar de onde via os atores em cena protagonizando sua melodramática história de amor, fazendo juras eternas... Enquanto ele aguarda o intervalo para tentar a sorte com ela nos bastidores... De verdade, era um plano infalível... Por isso, tinha que tentar alguma coisa.

Em casa, Mônica lia a carta seguinte, que ela encontrou na caixa de correio, assim que chegou da escola:

***

Halam Al-Hakim novamente ajoelhava-se diante da Princesa e sua corte. A Princesa Layla Al-Jamila o encara com um olhar de cumplicidade, mas também inquisidor. Uma serva terminava de servi-lo o chá torrado e um pão chato, um pedaço de conserva e uma carne. Do que lhe foi servido, comeu apenas uma mordida do pão e um gole do chá. Aguardou então que a serva virasse a ampulheta para continuar a narração interrompida:

No salão da Fada Jandira Al-Nour, três convidados já tinham feito seu pedido à Fada. O velho Abu Araam Mamede Al-Burhan requeria hesitante algo que aplacasse seu sofrimento de pai rejeitado e velho desprezado; Soraya Al-Jamila implorou que a Fada lhe desse um filho para realizar o sonho do marido; por último, o pequeno Mahir pediu para ser adulto forte. A Fada Jandira Al-Nour refletia sobre o que pediram enquanto saboreava um gole de seu chá de anis estrelado e rosas. Interrompendo o silêncio contemplativo, Soraya Al-Jamila pediu a palavra:

“Vossa Majestade Fada Jandira Al-Nour, penso que à luz de todos os pedidos, uma solução inusitada ocorreu-me: Diante de vós, há uma mãe que pede um filho e uma criança que pede a proteção de um lar para assegurar seu futuro... Pois, meu marido afeiçoou-se a Mahir quando fizeram paragem em nossa casa, nem bem o desconhecia. Vi em seus olhos o brilho, e supôs que o menino lhe trazia à tona o desejo de ser pai. Ao invés de ficar feliz, senti inveja e mais ímpeto tive para fazer a viagem até vós. Queria trazer para ele a mesma alegria que tomou conta da casa triste, queria dar-lhe um filho que como Mahir tivesse o riso infantil a ocupar cada canto vazio de nossas almas. Agora vejo que talvez nossos pedidos já tinham sido atendidos pelo destino...” Em seguida voltou-se para a criança que estava a seu lado e perguntou-lhe: “Pequenino, aceitarias se tornar filho meu e de meu marido? Estou certa de que ele ficará imensamente feliz e sentir-se-á honrado, como agora também me sinto.” Os olhos de Mahir brilhavam enquanto ela falava, porém hesitou incerto se poderia concordar com a proposta oferecida. Olhou receoso para a Fada em busca de respostas. Jandira Al-Nour lhe sorriu em concordância e dirigindo-se à mulher, disse:

“Soraya Al-Jamila, tua proposição alegra-me como se acendesse mil estrelas novas no céu da meia noite. Mahir, o esperto, somente a ti cabe a resposta para o dilema. Se queres aceitar, abençoarei teu destino, iluminando tuas escolhas. Se não te agradas a proposta, recusa, que ninguém te fará mal algum. Responde apenas o que teu coração falar.” A criança pôs-se prontamente a esclarecer o mal-entendido: “Fada, Senhora, nada me faria mais feliz do que chamar alguém de mãe e de pai. Se posso aceitar mesmo, não tenho motivo para recusar. Se me querer de verdade, Senhora, serei para você e seu marido o filho que sempre sonharam.” Com lágrimas, os dois se abraçaram consolando-se mutuamente, como se quisessem apagar as mágoas do passado e encontrar no aconchego um porto seguro. “Nada me faria mais feliz, Mahir, do que chamá-lo de filho.” Respondeu Soraya Al-Jamila.

Abu Araam Mamede Al-Burhan que há poucos passos estava dos dois limpou uma teimosa lágrima que lhe caiu do rosto. Estava satisfeito pelas duas almas que se encontravam felizes e juntas fariam uma bela jornada. Em seu coração, abençoava a mãe que encontrara por caminhos tortos seu filho; e estava contente pela criança que seria acolhida por um lar que a amaria e pelo qual seria eternamente grato. Sentiu-se triste, porém, por seu próprio destino miserável. Voltando-se para ele, a Fada Jandira Al-Nour disse: “Abu Mamede Al-Burhan, vosso coração não encontra consolo onde estais. A amargura de vossa alma não encontra felicidade alguma agora na velhice. Em vão, buscais amor onde não está disponível. Por vós, sofro. De vós, apiedo-me. Como gostaria de vos oferecer exatamente o que vosso coração pede! No entanto, tudo que posso oferecer é uma proposta que não vos soará inusitada: Se o sono da morte vier para vós, poderá trazer o remorso à face de vosso filho, onde depois vereis o amor, quando renascerdes como filho dele. Será para vós a oportunidade de ser amado e acolhido por ele, assim como desejaríeis nesta vida. Quisera eu ter o poder de dar-vos o amor e carinho dele ainda no papel de pai. No entanto, asseguro que vos abençoarei e protegerei para que na nova vida encontreis o que procurais.  A vós, que vos pareceis? Concordais com tal solução? Satisfaria vosso coração de alguma forma? Pedi, que vos atenderei.”

Os olhos do velho fixaram na figura da Fada e grossas lágrimas rolaram em seu rosto, apesar de um sutil sorriso esboçar em seu rosto enrugado. Mamede soluçou por causa de seu pranto há muito tempo contido e deixou-se chorar copiosamente por algum tempo. Em seguida, encarou novamente a Fada dizendo: “Oh, sábia Fada Jandira Al-Nour, Vossa Majestade ofereceis-me excepcional proposta! Meu coração não encontrará satisfação alguma nesta vida. Não podereis me devolver a juventude nem a força, nem vos cabe dar-me o amor do filho que me desdenha. Portanto, nada mais me resta que experimentar nova vida. Coube a vós ler meu coração de maneira tão singular, que de outra forma eu jamais entenderia. Dispondes algo que eu nunca pediria, por não saber possível. Aceito! Que a morte de um velho indesejado sirva de aprendizado à ingratidão recebida! Já que o amor do filho o pai não recebe; no papel de pai, Araam Al-Hajar deverá amar o filho e cuidar de todas suas necessidades, passando pela provação que passei. Aceito! Oh, como sou grato a vós, Fada bendita!”

A Fada Jandira Al-Nour, satisfeita com todas as soluções propostas, sorriu aos convidados com os olhos a brilharem como estrelas. Direcionando-se às Moçoilas de Cristal, ordenou-as que preparassem a carruagem de nuvens que os levaria de volta para seus lares. Solicitou-as também que separassem alguns presentes: a Abu Araam Mamede Al-Burhan, deu um relógio de cristal. Era um mágico presente que serviria para dar-lhe corda quando estivesse cansado demais de esperar os minutos finais. Bastaria dar a corda nos minutos que quisesse ser seus últimos, que seriam a contagem regressiva, aproximando-o da hora de fechar os olhos para a eternidade. Devia atentar-se: Somente ele poderia usá-lo para sua própria despedida e uma única vez – uma vez dada a corda, não teria como reverter. O relógio dissolver-se-ia até a forma do nada. Se ele quisesse respeitar o curso natural, bastava que nunca usasse o relógio, seu tempo de vida seguiria sem alteração. Um beijo da Fada em sua fronte era um sinal para quando viesse o Anjo da Morte o levar, saberia para onde guiá-lo na vida seguinte, tendo sempre sua proteção. À Soraya Al-Jamila, entregou uma garrafa de mel, para lhe adoçar as mágoas, e segredou que em um solo fértil e bem cuidado, nascem flores, não devendo se esquecer jamais que tanto o broto quanto a árvore precisam de atenção. À Mahir, deu-lhe uma caixinha de brinquedo, de onde sairiam os mais maravilhosos com os quais o menino desejasse brincar. E assim partiram satisfeitos retornando para suas casas na aconchegante carruagem de nuvens.

Farhad Al-Naim ainda se encontrava no salão principal, quando os outros já estavam longe. As Moçoilas de Cristal serviam-lhe mais vinho de orvalho, cuscuz marroquino com castanhas, um assado com tâmaras e figos, tajine de legumes, compotas doces, pão chato, frutas variadas... Farhad comeu até se empanzinar. Enquanto a Fada lhe observava tomando apenas o chá. Terminada a refeição, a senhora comandou que as servas levassem para a cozinha os pratos e trouxessem um chá digestivo para que conversassem com calma.

Enquanto deliciavam-se da bebida quente e doce, a Fada dirigiu-lhe a palavra: “Farhad Al-Naim, filho de Nerum, neto de Samael, sapateiro de Girah, aqui te chamei e aqui estás não porque tinhas um desejo a pedir-me; mas porque tenho algo a cobrar-te: há muito adquiriste uma dívida comigo, e és somente tu quem podes dar-me o que meu coração mais almeja. Estás aqui, porque preciso que remedeies a grave falta que cometeras em vidas passadas...”

Ele a interrompeu: “Esperai um momento, por favor, Ó Fada Venerada! Ó, perdoai-me, Vossa Majestade confundis-me. De que falta estais falando? O que posso ter feito a vós, ó Fada Maravilhosa?! Não me condenais por um erro do qual não me recordo. Antes, desanuviei as brumas do esquecimento e reavivai minha memória para que ao menos possa compreender o peso da culpa e assim conquistar lealmente o vosso perdão. Por obséquio, dizei-me o crime que cometi contra vós.”

“Falaste sabiamente, Farhad Al-Naim, não seria justo te condenar nem posso te exigir reparação alguma sem antes explicar os laços que nos unem e como cruelmente arquitetara nosso infortúnio há tantas eras passadas. Escuta que te direi sobre as vidas que tiveste, sobre suas muitas mortes e principalmente dos encontros que tivemos, assim compreenderás tudo...” As Moçoilas de Cristal serviram o chá aos dois antes de posicionarem próximas, mas de forma a permitirem-nos a privacidade da conversa. Fada Jandira Al-Nour tomava fôlego para a narrativa que iniciaria, pensando cautelosamente por onde começar sobre as inúmeras vidas do homem Farhad Al-Naim. Começou então assim:

“A primeira vez que nos encontramos, vieste até mim porque tinhas um desejo e teu coração clamava desesperado. Andaste longa viagem, estenuosa demais para tuas pequeninas pernas...”

E com isso, o mercador calou-se, respeitando que o tempo da ampulheta acabara. A Princesa encarava-o com uma espécie de raiva silenciosa. Com um sobressaltado, disse-lhe: “Halam Al-Hakim, devo novamente lhe estender o tempo, dado que a ampulheta não parece lhe oferecer o suficiente. No entanto, pergunto-lhe, mercador de Zenóbia, por quanto pretende alongar sua história?” O jovem hesitou por um instante e sorrindo sorriu a ela: “Vossa Alteza, Princesa Layla Al-Jamila, não sou eu quem estendo, são as personagens que vivem suas aventuras. Perdoai-as tanto quanto deveis perdoar o curto tempo que a ampulheta consente. Não pretendo alongá-la mais do que me for necessário, só tenho o tempo que vós me ofereçais.” Curvando o corpo, agradeceu e despediu-se.

***

Por fim, Mônica também se perguntava o quanto ainda se estenderia a histórias, quantas cartas a mais ainda teria... Pensou também nas vidas passadas do sapateiro e no futuro do contador de histórias. E não podia negar, pensava sobre seu próprio destino e para onde seu coração queria levá-la. Cada um ganhou de alguma forma o que pediam, ainda que não exatamente o que queriam. A narrativa era tão confusa e se ela devia aprender alguma lição, qual era? Só uma pessoa podia respondê-la.


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