1001 cartas para chegar até você escrita por Liliquinha


Capítulo 3
Capítulo 3 - O que eu quero




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Relendo a última carta, Mônica se pegou pensando na diferença entre necessidade e desejo. Será que ela entendia a distinção entre os dois? A fome e a vontade de comer talvez formassem o par que exemplificaria bem essa dicotomia. Resolveu perguntar para a mãe e o pai enquanto tomavam café à mesa naquela manhã de quarta-feira; com mais de uma cabeça pensando chegariam a alguma conclusão...

— Quando é fome, a barriga ronca. – respondeu o pai, focando no óbvio – A cabeça dói, o mau humor bate... O corpo manda sinais para que se arranje algo para saciar a necessidade...

— Mas é exatamente isso que eu sinto em relação ao segundo pedaço de bolo de chocolate. Sempre. – brincou – A boca chega a salivar só de pensar... Então, é necessidade?

— Não, é só vontade de comer. – riu a mãe – Quando é desejo, nada sacia, a não ser aquele item específico. Se fosse fome, qualquer coisa servia. Para o desejo não. Caprichoso demais.

— Então, o desejo é um menino mimado que quer o que quer quando quer, e a necessidade é uma menina que contenta com o que tem... – concluiu Mônica.

Dona Luísa concordou com um sorriso e Seu Souza olhou-as confuso, perguntando-se como é aquilo de repente virara a guerra entre sexos. A filha os beijou no rosto e se despediu para ir para a aula. Ela precisava andar para espairecer. Por mais que refletisse, não entendia muita coisa em relação às cartas, mas agora pensava sobre a razão daquela frase que ele colocou. Por quê? O que o autor queria dizer? Perguntou-se como em uma aula de literatura.

Mônica foi à escola com bom humor, mas pensativa. Pegou-se olhando para o lado, procurando a silhueta de DC, mesmo que só o veria de relance. Nada. Ele parecia um fantasma que se materializava em sala de aula, onde via-o sentado na cadeira do fundo, prestando atenção na matéria como o aluno exemplar, algo que não era exatamente o que se esperava dele. Ela riu e desviou o olhar de onde ele estava. Ele não podia distraí-la assim...

No final da aula, procurou-o novamente, vendo-o de relance sair pela porta, alheio a todos os outros. Pensou em chama-lo, mas não teria nada pra dizer. Nada que ele fosse responder diretamente. O pensamento de Mônica dispersou-se quando o trio de amigos veio puxá-la. Permaneceram no pátio do colégio um pouco depois da aula conversando. Não seria demorado, cada um seguiria seu rumo, mas era bom aproveitar o tempo com eles quando podiam: Cascão ia para o treino, preparando para o campeonato regional; Magali ia para a padaria estudar com Quim enquanto testavam receitas.

— Ele tem um ótimo método de me ajudar com História e Matemática. – gabou-se Magali, fazendo os outros três rirem – O quê? Meu namorado é muito bom em Matemática. A confeitaria exige que ele se preocupe com as medidas exatas e as proporções corretas, por isso ele focou em aprender direitinho. Tomou gosto e ficou bom nisso.

— E qual é a desculpa para ele ser bom em História? – provocou Cascão.

— Simples. Ele gosta de História.

— Ótimo, eu bem que podia melhorar minhas notas e comer uns pãezinhos. – concluiu o rapaz pegando um dos biscoitos que ela estava comendo.

— Ei! Esse plano infalível é meu, tira os olhos.

Mônica observava os amigos. Por incrível que pareça, Joaquim tinha mais coisa acontecendo do que só ser o filho do padeiro e faze curso de gastronomia, continuar o legado do pai. Ele tinha interesses além da profissão, o que era engraçado de pensar, considerando que a turma parecia focar em só uma característica, como se cada um fosse uma coisa só. No entanto, pessoas de carne e osso tem multitudes. Talvez olhar para eles tempo demais tenha os deixado um tanto... Rasos... O Cascão é mais do que o garotinho que não gostava de banho e curte futebol. A Magali era mais do que a menina que gostava muito de comer. O Cebola era mais do que trocar as letras e fazer planos infalíveis...

Será que pensava nisso por causa da diferença entre necessidade e desejo? O que isso tem a ver? De certa forma, nada. Contudo, se for analisar, será que cada um tinha essa distinção bem definida? O que cada um queria e o que realmente necessitavam? Agora estavam na idade de pensar no futuro, o que aconteceria quando ficassem adultos... Considerar o que estava de fato no destino de cada um é também pensar nos seus desejos mais profundos e nas realizações, não só profissionais, mas de vida em geral. Pensando bem, será que seus amigos sabiam qual era o destino de cada um ou se estavam presos na zona de conforto?

Magali repetia que precisava estudar bastante para o vestibular de Nutrição, porque era seu destino. Como ela havia falado outra vez, não haveria outra profissão para ela que não no setor alimentício e Biologia era sua matéria favorita... Por quê? Mônica se viu perguntando naquele dia. Os três a olharam deixando-a encabulada. Parecia ter feito a pergunta alto demais.

— Por que o quê? – perguntou Cebola com uma das sobrancelhas arqueadas.

— Só estava pensado... Bem, o Cascão ama futebol. – os olhares confusos se intensificaram, Mônica os ignorou para concluir o raciocínio – Ele treina diariamente, se esforça o máximo nisso. Mesmo esportes sendo sua paixão, ele não deixa de preferir futebol. Mesmo que ele optasse por fazer a faculdade de Educação física, ele não seria feliz fazendo outro esporte. E por isso que a gente diz que o destino dele é o futebol...

— Espero que sim. – respondeu Cascão com um largo sorriso. Mônica continuou:

— E talvez seja destino, porque ele faz de tudo para realizar o desejo... Ele não está só contente de fazer o que fazia antes... O Cebola! Ele tem paixão pela tecnologia e pelo mundo digital, e isso o faz querer seguir na área, ser programador, talvez. Outra profissão na informática... Na infância, ele só se interessava por planos infalíveis, mas isso não vai ser sua futura profissão...

— Acho que planejamento e estratégia são pontos de convergência entre os dois, não? – sorriu Cebola parecendo querer confortá-la. – Destino tem muito a ver com o que você quer fazer do futuro.

— É, talvez... De qualquer forma, Cê, você transformou seu destino para ser algo que você queira no futuro. Não está preso na zona de conforto, fadado a sempre repetir algo que você fazia na infância... E você, Magali? Por que sua profissão tem que ser do ramo alimentício? Porque você sempre gostou de comer, só por isso? Comer é bom, mas não é porque gosto de bolo e de brigadeiro que eu quero ser confeiteira... – Magali parecia refletir, mas não estava triste. Talvez já tenha tido essa conversa antes com outra pessoa – Será que é seu destino ou você só não quer sair da zona de conforto?

— Oi, DC? Por acaso trocou de corpo com a Mônica? – Cebola encarava-a com um sorriso.

— Ei, não aproveita da situação, não? Não vai espiar a Mônica sem roupa, ok?!

— Cascão! – Ele levou uma cotovelada tanto da Magali quanto do Cebola. Mônica corou com o pensamento.

— Não é nada disso! Desculpa, Maga. É só que você é boa em tantas outras coisas, tem outras qualidades, não queria que tivesse que se contentar com um destino que é só confortável... Você é sensível, daria uma boa terapeuta, por exemplo. Ou o que você quiser, seu destino não tem que envolver um hábito da infância... O Cascão é que é meio caso perdido e vai ter que se contentar em ser um astro bem-sucedido do futebol. Não acho que ele saiba fazer outra coisa. – Riu. – É que... Sei lá, a gente é mais do que a superfície mostra...

— É... – Magali ficou pensativa por um tempo – Acho que precisamos de uma invasão alienígena urgente, assim a Mônica não tem com o que preocupar com destino e zona de conforto... – Magali riu – Fica tranquila, amiga. Andei analisando minhas opções e até agora, Nutrição é a que eu mais gosto, de verdade...

— Correção, aulas de Biologia... – Cascão não conseguiu nem concluir o raciocínio, levou uma cotovelada da amiga. De relance, ela viu o relógio no pulso.

— Desculpe, galera, o papo está ótimo, mas preciso das minhas aulas extras...

— Vou nessa também. Treino. Falamos mais tarde, careca.

Os dois foram na mesma direção, sumindo ao longe enquanto Mônica os observava afastarem. Cebola a puxou para um abraço reconfortante, no canto do pátio. Era tão bom aconchegar no peito amigo dele, com a mão repousando na cabeça dela, afagando-a com carinho.

— Ei... E aí? Quer me contar alguma coisa?

— Como assim? – ela arregalou os olhos.

— É que esse papo de destino, zona de conforto e ir além da superfície é algo que você não costuma se preocupar. Então pensei que quisesse conversar. Sabe? Dar uma desabafada pode ajudar. – fez uma curta pausa – É o medo do futuro, né? Daqui a pouco o ensino médio acaba, a faculdade chega aí... A gente fica meio nostálgico...

— Nostalgia? Pensando no futuro? – ela deu um risinho singelo.

— É olhando para trás que a gente consegue ver que tipo de estrada estamos trilhando, se é que me entende... O futuro é sempre incerto, não dá garantia de nada, por isso não temos certeza do que vamos de fato encontrar lá na frente. Mas se olharmos a trajetória do que vem do passado até agora, observando nossas escolhas e como elas nos influenciaram até aqui, acho que podemos ter uma ideia mais certo do que encontrar no futuro... – Ela o encarou, com uma confusão no olhar, ele riu. – Eu também andei pensando nisso, no que fazer, com quem estar... – as bochechas dele coraram, com as dela também.

— E chegou a alguma conclusão? – Os olhos dela brilhavam, parecia que ia ser agora... Ele riu com uma fungada do nariz.

— Não, só especulações. Nenhum plano concreto. O que é bom, porque meus planos “infalíveis” não costumam dar certo.

Ela riu.

— É, às vezes é melhor deixar o futuro acontecer naturalmente. Nada de forçar as coisas com planos mirabolantes. Não é a chegada que conta, mas a jornada, não é o que dizem?

Ela concordou com um sorriso singelo. Ele a trouxe para mais perto num abraço aconchegante e carinhoso. O braço dele em volta do pescoço dela a confortava.  Ficaram um tempo assim e juntos foram para a direção de casa – morando no mesmo bairro, era fácil acompanhar um ao outro. Dona Luísa os viu chegando da janela da entrada. A filha tinha um sorriso tímido e as faces coradas. Os dois pareciam se acertar de vez em quando, o que era bom. O triste é quando se desacertavam, sempre catastrófico e infelizmente frequente demais. Quando Mônica entrou em casa, a mãe disse que tinha mais uma carta à espera dela em cima da mesa.

— Esse projeto escolar tem disciplina, não? É bem pontual. Você vai ter que fazer algum trabalho com isso?

Ela riu sem graça. É... Por uns instantes, ela tinha se esquecido das cartas. Às vezes estar com o Cebola a fazia esquecer do mundo. Foi para o quarto com a carta, mas deixou-a na escrivaninha. Tomou banho, almoçou e sentou-se para fazer a lição de casa. Nada como matemática para tirar a alegria da alma de uma pessoa. E a lição de física não estava menos difícil nem mais interessante... Olhou para a carta ainda fechada no envelope. Era uma interrogação na cabeça dela. O que ele queria escrevendo para ela? Por que estava evitando-a? Ultimamente, DC parecia mais distante que o normal, ou era impressão?

O que aquilo significava afinal? Deveria deixa-lo continuar? Ou pedi-lo para parar? Como? Se ele nem admitia que era ele quem mandava. Por quê? Sinceridade sempre foi sua melhor característica... As cartas não tinham nada demais, era só uma história. Intrigante, ela tinha que admitir. Contudo não eram comprometedoras em nada... Pedi-lo para parar seria um sacrilégio, mas era certo deixá-lo continuar? Que compromisso assumia quando lia uma das cartas? Dava a ele falsas esperanças? De que tipos? Quais promessas fazia lendo as cartas que recebia? Devia terminar a lição de casa primeiro.

Quando terminou, olhou longamente para o envelope. Abriu-o com cautela, encontrando as folhas datilografadas. Se usava a máquina de escrever para que ela não reconhecesse sua letra, por que não usar um computador e imprimir em uma gráfica? Quem no mundo além do contrariado ainda datilografaria?! Ele foi descuidado ao deixar essa pista se queria mistério... Ou melhor... Conhecendo-o, ele queria que ela soubesse que era ele, pelo menos que suspeitasse o suficiente. Para quê? Para ele negar e fazê-la parecer um louca?

Não colocava nome no lugar do remetente, não escrevia em formato de carta. Era uma história enviada a capítulos, ainda que não tivessem marcação de gênero nenhum. Nem eram numeradas como páginas de um livro... Eram só um grupo de folhas soltas, que quando juntas se completavam. Quem faria isso senão o Do Contra? Pensou que iria comprar uma pasta para guardá-las na ordem, assim quando quisesse relê-las... Reler?! Sim, era uma história boa... Por um instante corou pensando em como gostava de receber aquela atenção peculiar, como era bom saber que tinha uma carta a esperando em casa assim que chegasse da escola. E na eventual possibilidade de alguém pegar alguma delas, nada de comprometedor! Ainda assim, tão estranhamente sedutoras... Olhando a folha nas mãos, demorando os olhos a fim de não gastar de uma vez só aquele tesouro, Mônica quis absorver o máximo que pode: a textura do papel, as marcas dos tipos de metal, como a tinta falhava em determinados pontos. O cheiro da tinta e de óleo de máquina misturado a uma fragrância de perfume bem suave: DC perfumou as cartas? O pensamento a fez rir. Conhecendo-o... Isso seria tão inusitado, que não era só provável, era a única explicação possível. Resolveu parar de adiar o inevitável e começou a ler:

***

No dia seguinte, Halam Al-Hakim encontrava-se novamente diante da corte da Princesa. Os olhos dela guardavam uma ameaça travessa e um interesse inegável pelo comportamento condenável do mercador. Como ele ousava estender história? “Pelo terceiro dia, estendo-lhe novamente minha paciência, Halam Al-Hakim, filho de Asmar, neto de Salim, mercador de Zenóbia. Recomendo-o que não abuse de minha tolerância.” “Oh, nobre Princesa Layla Al-Jamila, filha do Sheik Abu Ali Youssef, o próspero, filha das estrelas e da Lua, imploro que me concedei a oportunidade de dar-vos uma história da qual possai gostar, não a condicionando ao tempo, que é insólita medida. Deixai que os personagens vivam suas aventuras maravilhosas, e que possam entreter-vos, ocupando as enfadonhas horas do dia passadas na solidão e no tédio.”

A Princesa riu-se: “Fala de solidão e tédio? Como posso estar só se estou cercada de tantos cortesãos? Como posso me entediar com tamanho luxo e riqueza?” “Perdoai vosso servo, pois eu não saberia vos responder, Vossa Alteza. Sou apenas um mero escravo à vossa disposição. Como poderia um miserável saber o que se passa no coração de uma princesa?” Um dos cortesãos interrompeu o diálogo entre dois antes que a Princesa pudesse retrucar, exigindo que o filho do mercador conte sua história. Halam Al-Hakim ajeitou-se em seu lugar, tomando um gole do chá e comendo uma mordida do pão que lhe ofereceram. A serva da Princesa, ao seu comando, manipulou a ampulheta para que o mercador então prosseguisse:

A viagem de Farhad Al-Naim e seus três companheiros seguiu tranquila, até chegarem ao pé da montanha, percebeu-se o dilema: como usariam as agulhas mágicas? A criança, inquieta e inábil, poderia facilmente atrapalhar-se e cair. O velho não teria a destreza nem a força para suportar a subida. A mulher também não lhe parecia mais capaz que os outros dois. Farhad concluiu que deveria carregar um de cada vez nas costas, escalando três vezes a montanha, a fim de garantir-lhes a segurança. As agulhas pratas mágicas pareciam cobrir as palmas das mãos e as plantas dos pés, permitindo-o agarrar-se firme à superfície lisa da Montanha de Vidro e Gelo. Primeiro carregou a mulher, que do topo poderia ajudá-lo mais tarde, deixando a criança aos cuidados do velho. Depois carregou o menino, sendo ele mais leve que o outro, cansaria menos... Por fim, subiu com o idoso. Estranhou que os três pesaram o mesmo tanto, não sendo mais que uma pluma e não atrapalharam em nada a viagem.

No cume da Montanha, a entrada do enorme Palácio de Cristal era protegida por dois gigantescos ursos de pedra. Os três visitantes temeram as figuras, que tinham carrancas assustadoras. Farhad, indiferente ao semblante das esculturas, dirigiu-lhes a palavra: “Ursos de Pedra do Palácio de Cristal da Fada Jandira Al-Nour, deixai-nos entrar, porque vossa nobre senhora nos aguarda.” Responderam em uníssono: “Farhad Al-Naim, filho de Nerum, neto de Samael, sapatareiro de Girah, es convidado esperado da Majestosa Fada de Gelo, por isso entrai. Aqueles que vos acompanham estão sob sua proteção. Entrai sem medo.”

Os maciços portões se abriram dando passagem ao grupo. No salão de entrada, os cristais brilhavam por todas as partes. O chão de brilhantes soava como o tilintar do vidro a cada passo que davam. Tons azuis, roxos e brancos preenchiam o salão, que era amplo e circulado por altas colunas de mármore branco com sutis rajados em tons cinzas. O lugar era frio, apesar de estranhamente aconchegante. O trono da Fada encontrava-se de frente para a entrada principal. Na parede de trás dele, havia uma bela rosácea de vidro. Formada por várias cores, era a única janela a dar passagem aos fracos raios de sol que iluminavam e coloriam o ambiente. O lustre de cristal indicava o centro da sala. Os azulejos do chão compunham inúmeras flores circulares que formavam uma flor gigante, de uma geometria exata e artística.

A Fada Jandira Al-Nour ergueu-se de seu trono para recebe-los e permaneceu imóvel, tal como faria uma estátua de mármore. O corpo esguio dela assemelhava-se ao das colunas a sustentarem o palácio. Era uma mulher alta de pose altiva. Os olhos azuis dela guardam uma doçura e uma frieza ímpares. Os leves panos de seu vestido e seus longos cabelos loiros eram as únicas coisas a dançar ao sabor do leve vento. O restante parecia congelado.

Ao encontraram-se diante da Fada, os quatro visitantes ajoelharam-se em respeito. Dirigindo-se a eles, a voz de Jandira Al-Nour soou como o vento do norte, gélido e suave: “Queridos convidados, sede bem-vindos, fazei da estadia aqui agradável tempo. Moçoilas de Cristal, preparai para os convidados adequada refeição. Cuidai bem do que precisarem. A vós, caros convivas, descansai e recuperai-vos das horas de extenuação.” Inúmeras fadinhas de luz branca aproximaram dos convidados, ofereceram-lhes onde sentar, o que comer e beber. Serviram vinho de orvalho, pão chato de nuvem e geleia de calêndula. Depois serviram chá de camomila branca e menta fresca. Sentaram-se em suaves almofadas e aproveitaram o tempo para descansarem e fartarem-se da refeição oferecida, sentindo-se revigorados de imediato. A Fada os observava, paralisada.

Depois de devidamente instalados e confortáveis, a Fada novamente dirigiu-lhes a palavra: “Caros hóspedes, agora que estais bem alimentados e repousais, peço-vos que me dizei o objeto de vossa busca que trouxera cada um de vós até mim. Despejai neste salão os anseios mais profundos de vossos corações, não omitindo angústia ou desejo que guardais.”

Por respeito, o primeiro a falar foi o mais velho: Abu-Araam Mamede Al-Burhan, filho de Said, neto de Mohamed, vindo das falésias do Siequr: “Na vida de um velho, as angústias são tantas que não faço mal de omitir uma ou outra que a memória já me fez esquecer. É melhor mesmo que o vento do esquecimento leve-as. Vivo um drama na casa onde moro, qual não posso chamar de minha. É uma velhice humilhante que não me traz prazer algum... Na juventude, quando a força e a saúde me acompanhavam, fiz tanto quanto pude. Juntei riqueza suficiente para bem viver. Ainda que fosse pouco, bastou para criar sem fome o único filho e para dar um lar seguro a uma esposa satisfeita. Era um homem contente. Depois de crescido, o menino tomou rumo na vida, tal como fazem os passarinhos ao largar o ninho. Não me amargou a distância, que essa tempera com saudade e torna mais doce o reencontro. No entanto, não apenas procurou alcançar voo; não tinha pretensão de voltar a ver quem lhes cuidou das raízes. Para aliviar o peso da consciência, e não ser acusado de largar os pais ao léu, largou a mãe e o pai aos cuidados de um primo vizinho. Em surdina, fez acordo com o primo e com poucas moedas comprou a paz de espírito. Manda dinheiro de tempos em tempos, não faz mais que agradar os olhos de fora e apaziguar a culpa da consciência pesada. A mãe morrera de desgosto, chorando por ter amamentado o filho que na velhice a desdenhou. Sofro com essa rejeição, Venerável Senhora, mas nada me dói mais que depender de quem de mim não quer cuidar. O primo e a esposa não fazem mais do que o mínimo, forçados pela obrigação e pelo dinheiro. Quisera eu ter ainda a juventude para poder trabalhar como antes e não depender da parca esmola que me manda o ingrato filho. Que o remorso caia em seu coração! Rogo a praga, já que pouco se importa comigo. Para ele, vivo ou morto, sou igual. Enquanto pude, fiz tudo por ele. Nada me dói mais e amarga tanto o coração que ver o desprezo onde estou. Tratando-me como estorvo e dura obrigação, o primo pouco se importa com o modo como vivo; para ele basta que eu viva, que é o suficiente para ainda receber sua comissão. Colher ingratidão onde plantei tanto amor, receber tanto desprezo de um parente que sempre tratei com amabilidade... Se venho até Vossa Majestade Fada Jandira Al-Nour, é porque meu coração tem um pedido, ainda que não esteja certo de qual seja. Imploro que me ajudai a aplacar a dor de minha vida, a dar sentido a esta mesquinha existência. Qual o valor de um pai a quem seu filho despreza, evitando visitá-lo? De que vale um homem que não trabalha, e, portanto, não pode se sustentar? Ambos são inúteis e como lixo devem ser descartados... No entanto, não é ainda um homem cheio de sonhos cuja vida estende o tempo para que esteja ao lado de quem ama? Dizei, grande Fada, que sabeis como mitigar tamanho sofrimento de um miserável velho. Consolai-o com alguma solução.”

Com lágrimas nos olhos, o velho Mamede, interrompeu a fala. Todos presentes mantiveram-se calados, comovidos por sua dor. A Fada Jandira Al-Nour demorou um pouco antes de falar-lhe, em silêncio absorvia seu pesar e considerando a gravidade de suas palavras. Por fim, disse: “Abu Araam Mamede Al-Burhan, filho de Said, neto de Mohamed, que solução posso vos oferecer? Se me pedes a força e a saúde da juventude, com pesar devo lembrar-vos que há muito foram perdidos. O tempo que corre na ampulheta da vida não tem dono a quem reclamar e cobra seu preço: cada ano de vida custa a saúde da mocidade, a força da juventude, a beleza da flor da idade, são essas as moedas com as quais se paga por uma vida tão longínqua quanto a vossa. Não posso livrar-vos da dívida que assumistes e que agora o tempo cobra. Vossas palavras transbordam de dor e humilhação por uma vida tão ingrata. Cuspis maldição contra vosso único filho, querendo que o remorso lhe bata à porta e que veja o quanto maltrata o pai. Assim percebendo a grave falta, há de fazer qualquer coisa para remediar o erro antes do suspiro final. Pedis a morte como se a máscara de morto fosse dar a vós a visão que mais quereis: as lágrimas pesadas da ingrata prole enquanto pede que o tempo de vida do progenitor fosse estendido para refazer o rumo do destino... Não posso vos dar o amor de vosso filho, cabe a ele dar-vos. Não suponho que o remorso lhe assombre, já que com esmolas alivia a consciência. Nem posso garantir que nos fúnebres arranjos consigais ver o arrependimento na face dele, dado que o amor de uma vida inteira é pago com tanta ingratidão em tão poucas moedas. Dizei-me: que pedido posso eu realizar de vosso coração? Não vejo outro modo de aplacar vosso sofrimento e cessar a dívida com o tempo senão o descanso da morte. Refleti e dizei-me se isso realmente vos satisfaria. Enquanto pensais, ouçamos o que tendes a dizer, Soraya Al-Jamile, o lírio de Nefared. Confidencia-nos o que teu coração pede que te trouxe até mim.”

Ao escutar seu nome, a bela mulher, agora tendo no rosto as marcas do tempo e de lágrimas, exclamou com o coração aflito: “Ó, Fada Venerável Jandira Al- Nour, trouxe-me até vós um desejo tão antigo... Ó, Abu-Araam Mamede Al-Burhan, vossa angústia salga-me os sonhos e faz-me chorar... Chorais o filho que não vos ama, enquanto meu maior desejo é ter filhos que abençoem a meu marido e a mim. Não sabeis o quanto compadeço-me de vós e espero que consigais aplacar vosso sofrimento. Um pai que tanto ama não merece sofrer... Quanto a mim, de moça supôs que tinha o mundo aos meus pés e que para sempre assim seria. Tive pretendentes demais para desdenhar, juras de amor infinitas das quais me ri. A súplicas deles enchiam-me orgulho e cegavam-me ao ponto da crueldade: desprezei e humilhei quem me oferecia amor e prometia-me o mundo. Na mocidade, pouco me importei com as responsabilidades, ocupei-me em divertir e deixar-me seduzir pelos prazeres da boa vida proporcionada pelo dinheiro de meu pai. Quando o Alto quis que passássemos pela provação, perdemos não só a riqueza, mas também o prestígio e os falsos amigos que se aproveitavam de nossa boa fortuna. Nos tempos de pouca sorte e de muito penar, de nada valia minha beleza: os pretendentes, que muito se ofereceram, sumiram. Não havia mais promessas de amor, pois ninguém queria uma esposa falida, cuja fama era de egoísta e cruel esbanjadora. Agora me rechaçava e desenhava a quem antes humilhei. Uma boa alma acolheu-me no tempo de infortúnio: o generoso viúvo Abrão Al-Naif, filho de Duram, comerciante de Terah. Em passagem por Nefared, pediu-me em casamento, oferecendo pagar todas as dívidas da família. Para remediar meus anos de egoísmo, não hesitei e prontamente aceitei sua proposta. É para mim um bom marido por quem tenho enorme respeito e gratidão. Acolheu-me apesar da má reputação, sem exigir nada, a não ser fidelidade e companhia. Com resignação, aceitei a benção que recebi do Alto, cuidei que meu marido estivesse sempre satisfeito, que jamais se arrependesse da decisão. Com os anos de convivência, segredou-me que era contente com a primeira esposa e nutriam amor de juventude um pelo outro, só não foram inteiramente felizes pela falta de filhos. A mim, nunca cobrou; há muito aceitou que sua vida não seria agraciada com uma criança para chamar de sua e consolou-se com a vida simples que tem. Fiz de minha missão trazer ao mundo um filho para satisfazê-lo. Contudo, fui incapaz, nesses anos todos de casados, de realizar seu único desejo. Nada tenho a pedir a não ser um filho bom que complete a felicidade merecida de meu bondoso marido.”

Ao terminar o relato, todos compadeciam de sua tristeza e entendiam o seu apelo. Esperaram atento o que diria a anfitriã. Dirigindo-se à mulher, a Fada Jandira Al-Nour pôs-se a dizer: “Soraya Al-Jamila, tens o coração resoluto e pedes com determinação. Aparentas não carregar contigo as mágoas do passado. Vives para a felicidade do marido e isso consola-te e redime-te. No entanto, teu coração pesa. No casamento, não encontras realização. Desejas um filho para cumprir o que de ti é esperado e dar ao marido o bem que lhe é mais caro. Na criança, projetas uma imagem positiva da qual possas te espelhar: impões ao filho nem nascido que seja a concretização de um sonho, para que assim ele te compense os defeitos e salve-te, fazendo-te merecedora das graças que recebes constrangida. Percebeste tardiamente que a roda da fortuna é inconstante, que a beleza física se esvanece com o tempo e que os prazeres efêmeros não te preencheriam o vazio da alma. Reclamas de um desgosto que te assola o coração, mas ele me parece mais preenchido de vergonha, humilhação e ressentimento. A sorte adversa não te fez humilde, apenas te humilhou. Sendo uma mulher tão linda, estavas acostumada a estar sempre acima dos outros e assim pisar neles. Na flor da idade, vangloriaste da beleza e dispensaste orgulhosa aqueles que aos teus pés prostraram. Como sofreste ao ser rejeitada! A queda para ti foi bem mais alta e mais sofreu teu orgulho. Não poderias cobrar de teus pretendentes que te aceitassem inferior, quando havia os recusado por não estarem à tua altura. Percebeste logo que não poderia esperar gentil retribuição ao desprezo contínuo ao qual os submeteste. Tua consolação foi encontrar alguém que te aceitou tão baixa, repudiada até por quem julgavas inferior; mas é também teu castigo: resignada tens de aceitar o pouco que te oferece. E novamente a sorte te sorriu: a vida doméstica libertou-te de erros do passado e encontraste contentamento, mas nunca foste feliz. Tens respeito, mas não amor. Em tudo que fazes, procuras reparar o mal que fizeras; e quando não és recompensada, a culpa te assombra. Resignaste ao destino e casaste com quem pudesse te ser útil. No entanto, um ninho vazio é a dor do pássaro. Pedes uma criança que traga ao teu lar a felicidade que agora falta, mas isso não cabe a ela trazer. Como poderia um ninho tão seco ser um lar feliz para uma criança? Exiges dela descomunal esforço. Por isso, pergunto a teu coração resoluto, Soraya Al-Jamile, o lírio de Nafared, estás certa do que me pedes? Reflita antes de me responder. Enquanto isso, escutemos o pequenino Mahir. O que teu coração pede, criança?”

Acanhado, o menino hesitou em falar. Diante da Fada Jandira Al-Nour, sentia-se pequeno e tímido. Não seria eloquente como os anteriores, nem saberia se portar corretamente diante da autoridade à sua frente. Com simplicidade ímpar e o coração repleto de esperança, o órfão a quem chamavam de Mahir, o esperto, disse à Fada Jandira Al-Nour seu desejo: “Querida Fada, nada mais quero do que crescer logo. Não sou feliz sendo um pequeno órfão, morando na rua, dependendo da caridade de estranhos para comer. Quero crescer e me tornar independente. Assim serei forte e tudo suportarei. Terei um trabalho e dinheiro para comprar tudo o que eu quiser: comida e casa. Por favor, Senhora Fada, me faz grande.”

As palavras do pequeno soaram tristes a todos que escutaram, ainda que tivessem ar de esperança. Elas tinham a ânsia do desespero, a força da necessidade e o medo do fracasso. Com cautela, a Fada pensou bem no pedido da criança, e com um tom compreensivo lhe respondeu: “Pequenino Mahir, queres crescer de uma vez os anos que serão teus para conquistar... Por que adiantar o tempo se ele vem a poucas parcelas para que seu preço não seja insuportável de cobrar? Não me cabe acelerar teus anos, criança, já deténs o futuro nas mãos, aos poucos irá conquistá-lo. Não vieste a mim para somente manipular o tempo. Não queres simplesmente fugir da infância, queres deixar para trás tua frágil forma, como se mais velho conseguirias resolver todos os problemas que agora tens. Infelizmente, terei que te desiludir: por acaso esqueces de tantos adultos que na rua moram, vivendo à mercê da caridade alheia? A idade avançada não lhes poupou de triste augúrio, nem os tornou mais capazes de sobreviverem a condições tão miseráveis. Pobre Mahir, inocente, não queres a maioridade, teu coração almeja segurança. Estás cansado de tanto sofrer sem a proteção de um adulto. Comove-me teu pedido, é triste como uma nuvem implorando para se tornar uma rocha por temer que os ventos a carreguem por caminhos tortos ou desfaçam-na. Os mais velhos aqui bem sabem que a vida exige que se endureça para sobreviver a um mundo tão hostil, ainda assim ninguém desejaria para ti que perdesses a doçura tão cedo. Criança, sentes-te ao léu neste mundo que não te acolhe. Teu desejo é para mim o mais penoso, ainda que o peças com riso e a pressa infantil. És o que tem mais a perder e o que mais desejar. Tens a vida pela frente, mas teu destino é o mais incerto...”

O tempo esgotado da ampulheta fez o mercador calar-se. A Princesa Layla Al-Jamila discretamente limpa as lágrimas do rosto, recompondo-se do transe que a narração. Com a voz embargada pela comoção, diz ao contador: “Halam Al-Hakim, mercador de Zenóbia, novamente a ampulheta lhe interrompe a história, por isso mais um dia lhe concedo que a termine.”

***

Diante do enigma dos personagens, Mônica sentia os olhos marejados. Como a Fada lhes daria o que pediam? E o pobre menino... Será que a Fada Jandira falava dele quando alertou o sapateiro sobre a diferença de desejo e necessidade? Ele queria ser forte para enfrentar tudo, mas, na verdade, precisava da proteção de alguém... Voltou à sua realidade, pensando na conversa com os amigos e principalmente o que o Cebola disse sobre o destino.

Teria sido muito dura com Magali? Ela não entendeu de onde veio aquilo, mas de certa forma era algo do qual precisava conversar. Mandou para ela uma mensagem no celular, pedindo desculpas e perguntando se estava tudo bem. A resposta dela foi: “Não foi nada, amiga. Tá td bem mesmo. Juro. Pode ser que o destino que eu escolhi é o mais próximo da minha zona de conforto mesmo, ainda assim ele não me faz menos feliz. Estou bem feliz com ele. Mais tarde a gente se fala?” Mônica respondeu contente que sim.

Conversando com o Cebola, concluiu algumas coisas. O destino tem muito a ver com planos que queremos para o futuro e o quanto estamos dispostos a fazer acontecer, arriscar. Bem diferente do destino fatalista, escrito na pedra, que de certa forma ia de encontro com permanecer na zona de conforto, aceitando passivamente as coisas. Até a escolha de “não escolher” é uma decisão em si e tem suas consequências. Será que ela se incomodou com a escolha da amiga por que ela tem vivido à sombra de sua própria zona de conforto? Se os outros integrantes da turma sabiam bem o que gostariam de fazer no futuro, como queriam conduzir seu destino, será que Mônica também sabia? Será que ela conhecia a si mesma a fundo, conseguindo distinguir nitidamente suas necessidades de seus desejos? Ou ela prefere se deixar levar pelo destino, aceitando o quão confortável é a passividade?


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