Além do Tempo escrita por Ahsoka Tano


Capítulo 2
Capítulo 2




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— Nós não nos conhecemos. 

— Impossível. – ele me cortou quase que imediatamente. – Se você está aqui, é porque já nos encontramos em algum momento.

— Eu já ouvi falar de você. Em livros e missas. Mas que eu saiba, nossos caminhos nunca se cruzaram. 

— E o que esses livros diziam sobre mim, hum? Histórias de terror para assustar criancinhas, eu presumo? 

— Bom, eu diria que os adultos também tem medo.   

— Claro. - ele bufou uma risada de escárnio.  - E  você? Tem medo de mim?

— Não – Menti, torcendo para que minha voz soasse confiante o suficiente. – Existem motivos pra eu ter?

— Isso varia – disse ele, aproximando-se devagar. – Depende muito do dia. Das circunstâncias – outro passo, a voz aveludada como mel em pedras quentes. Se uma serpente falasse, soaria como ele. – E com o meu estado de espírito.

 Muito perto. Tive de erguer o queixo para manter o contato visual. Era intimidador, mas impossível de ignorar.  Temi que ele pudesse ouvir o retumbar do meu coração daquela distância, e tentei pensar em algo para dizer. 

— E o que te motiva?

Deixei a pergunta escapar e fiquei tão surpresa quanto ele. Estava definitivamente curiosa para aprender a seu respeito, embora não acreditasse que era uma boa ideia ficar dando corda para ele. Talvez porque eu sabia estar segura em um sonho, ou talvez porque ele não parecia realmente ter a intenção de me machucar naquele momento.

— Muitas coisas. – Deu de ombros, vago, e voltou a caminhar ao meu redor. Agradeci internamente por ter mais espaço novamente. – Diga-me o seu nome. Talvez eu me lembre de você.  

— Meu nome é Kyra. E já te disse, você não me conhece. 

— Kyra… Kyra… – ele saboreou meu nome em sua língua, pensativo. Tentei ignorar o frio na barriga que isso me causou.  

—  Por que você insiste em achar que já nos vimos? 

— Por que eu não posso simplesmente ter inventado você na minha cabeça. - explicou impaciente, como se eu fosse uma criança. – Eu só tenho visões de quem eu conheço. – então uniu as sobrancelhas, fitando um ponto distante da escadaria.  - A não ser que eu esteja ficando maluco e inventando pessoas agora… 

Eu arregalei os olhos, surpresa. Então era isso. Ele achava que eu não era alguém de verdade, mas sim um fruto da sua imaginação. O que era bastante bizarro, considerando que aquele era o meu sonho.

— Mas eu sou real. - rebati com o cenho franzido, muito séria. — Eu tenho uma vida, um lar. Quem está no meu sonho é você. E eu não faço ideia do porquê estou sonhando que estou conversando com o diabo, mas eu só –

— Do que você me chamou? – ele me cortou, erguendo o indicador no ar.

Pisquei para ele, insegura, e repeti a palavra com certo amargor na boca. 

— Diabo.  

Levou alguns segundos para que ele reagisse. Piscou algumas vezes, os olhos apertados em minha direção, confusão estampada no rosto. Ele pareceu puxar algo da memória, apontando para mim em seguida.
 

— É um personagem de um livro, não é? Dos Midgardianos? Um… anjo, é assim que chamam?

— Isso é alguma espécie de jogo dissimulado? – eu o desafiei, cruzando os braços. Estava começando a me sentir mais confiante.

— Então você é de Midgard… 

— Eu não sei o que é um Midgard! 

— Terra! Você é da Terra. 

— É óbvio.  

— Nós nunca nos conhecemos. 

Ele disse aquilo como se fosse uma descoberta inacreditável, um sussurro alarmado. Ergueu as sobrancelhas expressivas em choque e pareceu travar uma batalha interna por longos segundos antes de reduzir nossa distância a meros centímetros novamente. 

— Você não está na minha cabeça. - um fogo esmeralda queimou no fundo de suas íris, deixando-me desnorteada. - Você é real.  

— Sei que está tentando me enganar, mas não vai conseguir, Lúcifer.

Ele franziu o cenho e soltou o ar em uma risada exasperada.  

— Eu não sou Lúcifer. Me chamo Loki. 

Deixei minha mão cair ao lado do corpo, perdida por um instante. Loki? Aonde eu já tinha ouvido falar desse nome?  

E então eu lembrei.  

Á alguns anos atrás, eu apanhei um livro de mitologia nórdica escondida da biblioteca da escola. Estava na sessão proibida, já que qualquer literatura não aprovada pela igreja era confiscada. Durante incontáveis noites, mergulhava nas páginas que narravam as proezas de Odin, o Pai de Todos, Thor, o poderoso deus do trovão, e…

— Loki, o Deus da Trapaça?. 

— Não mais. — ele espalmou a mão quando franzi o cenho,  confusa. — Longa história. 

— Eu não acredito em você. São contos de fada! 

— Mas acredita que a muitos anos atrás. Eva foi enganada por uma cobra falante. — ele desdenhou, um sorriso malicioso nos lábios. Eu engoli em seco. — A propósito, não me surpreenderia se me dissessem que se inspiraram nas histórias asgardianas.

Eu não soube o que responder. Ele estava colocando em questão crenças de uma vida inteira. Era difícil simplesmente aceitar. Depois de um momento, balançou a cabeça com um suspiro. 

—– Veja bem, eu não quero alterar as suas convicções. Mas posso te mostrar que estou falando a verdade sobre mim.  

— Como? — o fitei desconfiada. 

— Você me permite?  - E indicou meu braço. Eu devolvi o olhar com desconfiança, sem saber ao certo o que ele planejava.- Prometo que não vou te machucar.

 Iinspirei fundo, perdida em suas orbes súplices. Embora não confiasse nele, não tinha muito a perder. Afinal, aquilo era apenas um sonho. A curiosidade venceu o medo e assenti em silêncio, sentindo minhas pernas enfraquecerem no momento em que ele segurou minha mão, levantando-a à altura dos meus olhos. Quente, macia, muito maior que a minha. Com seu dedo indicador, tocou suavemente uma das linhas na palma e fechou os olhos. A princípio, eu estava confusa, mas logo um arrepio percorreu todo o meu corpo e Loki inspirou fundo.  

Aguardei, meu coração batendo forte dentro do peito.  Era uma experiência nova para mim, mas percebi de imediato o que ele estava fazendo: lendo minha vida, explorando o universo em que eu existia, confirmando que eu era uma pessoa real e não apenas um produto de sua imaginação. Ao mesmo tempo, tive acesso a muitas de suas memórias. O toque de sua mão era surpreendentemente concreto, e com ele vinha uma troca indiscutível de emoções - uma espécie de conexão inesperada e poderosa. Ele deve ter percebido a mistura de curiosidade, medo e culpa que me consumia. 

Eu não vi todos os detalhes do seu passado, mas captei um vislumbre de quem ele era e de como havia chegado até ali. Meu coração se apertou e minha cabeça entrou em um turbilhão de pensamentos. Se aquilo não fosse uma armadilha para me confundir, ele parecia ser a pessoa mais importante do unvierso, mantendo todas as linhas temporais em seu devido lugar. Mas para isso, teve de pagar um preço muito caro - passar a eternidade ali, certificando-se de que as incontáveis vidas não corressem perigo. 

Meu pesar misturou-se ao dele e logo senti uma onda avassaladora de tristeza e angústia que brotava de seu ser, um fardo para o qual eu não estava preparada e que provocou um aperto doloroso em minha garganta.

Ele de repente inspirou com força, como se tentasse não se afogar, e abriu os olhos. Deve ter reparado em minhas feições de angústia, porque pigarreou sem jeito.  

— Desculpe. –  Soltou minha mão com cuidado. – Não era a minha intenção perturbá-la. 

Eu balancei a cabeça, engolindo em seco. 

— Eu não te conheço, mas ninguém deveria se sentir dessa forma. Ou passar por tanto sofrimento. 

Ele esboçou um sorriso melancólico, tingido de condescendência, e desviou o olhar.

— Esse é exatamente o ponto. Você não me conhece – antes que eu pudesse medir o peso de suas palavras, ele voltou á sua postura orgulhosa – Agora, Kyra, imagino que você tenha muitas perguntas. – Afastou-se de costas para mim, e fez um gesto amplo e teatral com as mãos. – E, para a sua sorte, disponho de todo o tempo do mundo para respondê-las.

Eu o observei por um momento. Quis perguntar mais sobre ele, mas decidi começar com algo menos íntimo. 

— Isso é um sonho? 

— Não exatamente. Você está, de fato, dormindo na sua cama nesse exato momento. E sua mente está conectada ao aqui e agora, portanto, podemos nos ver e sentir. Mas é mais do que um sonho: é uma conexão interdimensional. 

— E onde é o aqui e o agora? 

— Ah, essa é um pouco mais complicada. – ele fez um movimento de meia lua com a mão, fazendo surgir duas poltronas de frente para a outra. Meu queixo caiu em choque. – De forma resumida, estamos no fim do tempo. 

— Como assim?

Loki fez um sinal para que eu me sentasse. Eu o fiz, embora achasse a situação bastante absurda. 

— Estamos em um lugar que transcende a compreensão usual de espaço e tempo, e onde as leis da física não se aplicam. – ele me imitou, cruzando as pernas com elegância. – Este é um ponto de convergência, um nexo único para todas as possibilidades do universo, além dos limites do espaço-tempo convencional.

— Multiversos, você diz. 

— Sim. 

— Então cada linha dessa… – Varri os olhos pelas cordas, os ramos daquela gigantesca árvore se espalhando pelo infinito, e como todas terminaram em seu coldre - é um universo diferente?

— São linhas temporais, na realidade. Podem conter milhares de universos dentro delas.  

— E você é o guardião. O Deus do… Tempo?

— Não exatamente. É mais complicado que isso. 

— Está me dizendo que, em algum lugar no tempo-espaço, existe um mundo espelhado ao meu? Com uma versão minha nele?

— Milhares, eu diria. 

Soltei um longo suspiro, levando as mãos às têmporas numa tentativa de aliviar o início de uma dor de cabeça. Ele observava-me, pensativo e enigmático. Seus cotovelos repousavam nos braços da poltrona, as mãos entrelaçadas, ocasionalmente roçando os nós dos dedos nos lábios. 

— Sei que há muito para absorver, Kyra…

— Você não faz ideia. – levantei-me da poltrona, incapaz de me conter. Meu corpo tremia. – Isso vai contra tudo que eu sempre acreditei. Contra meu pai, a igreja, o meu mundo inteiro. Minha vida! - Andei de um lado para o outro, tagarelando em exasperação. - E quanto aos deuses?

— Perdão?

— Quero dizer, existem deuses, aparentemente, mas não somente um. Milhares!

— Bem, sim… 

— Isso significa que não respondo á ninguém? Para quem estive orando todo esse tempo? Quantos anos da minha vida eu perdi… 

Então, algo me ocorreu. Parei á poucos metros de distância, recuperando o ar, e encarei o fundo dos seus olhos. 

— A quanto tempo você está aqui, Loki? 

A pergunta pareceu aintgi-lo como um soco. Remexeu-se na poltrona, inquieto, e uma sombra transpassou o seu rosto antes de responder. 

— Como eu disse, o tempo aqui não existe realmente. 

— Se calculados em anos humanos? 

— Impossível calcular. 

— Uma estimativa?– insisti. 

Ele levantou-se da poltrona de repente. Senti meu corpo congelar por um segundo, temendo ter passado dos limites, mas ele apenas abriu um sorriso e se aproximou mais uma vez.

— Isso não importa agora. O que importa é que você, de alguma forma, conseguiu criar uma conexão interdimensional. Só precisamos descobrir como e porquê. 

— Essa não é a primeira vez. – achei importante adicionar esse detalhe. Ele franziu as sobrancelhas, esperando que eu continuasse. – Eu venho tendo pesadelos á meses. Sonho com uma explosão que acaba com todos os mundos. E com gritos de pessoas, e outras coisas horríveis. Mas sempre termino aqui. O vi dezenas de vezes, mas você nunca me vê. 

Ele me estudou com curiosidade, como se eu fosse a coisa mais incrível do universo. Quando comecei a sentir as bochechas esquentarem, ele falou:

— Kyra, você acha que pode me fazer um favor?

— Eu… 

Mas as palavras morreram em minha garganta. O mundo ao nosso redor começou a esvaenecer, dissolvendo como fumaça. Para mim, não era novidade- significava simplesmente que estava na hora de despertar. Desta vez, entretanto, eu não estava pronta para ir embora. Loki, sem conseguir enxergar o que eu enxergava, segurou meus ombros com cuidado, o rosto tingido de preocupação. 

— Estou acordando. - expliquei, um tom de desculpas na voz.

Ele concordou, seus olhos verdes me fitando com a imensidão e profundidade de oceanos. Finalmente, quando seu toque quase não era mais perceptível, a voz aveludada dele ressoou em minha mente, distante e etérea.

— Você vai voltar?

— Claro.

Não tinha certeza se ele ouviu minha resposta. No momento seguinte, me encontrei de volta na minha cama, com a pele dos ombros ainda arrepiada pela memória de seu toque.


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