Além do Tempo escrita por Ahsoka Tano


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Quis aproveitar a volta á minha era "Loki" e escrever uma história curtinha sobre ele e uma personagem original! Os acontecimentos se passam depois do fim da segunda temporada da série de TV. Espero que gostem!



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Quando me entreguei aos braços do sono, eu sonhei com o diabo. 

Não foi um pesadelo dessa vez. No lugar da chacina de explosões devoradoras de mundos, houve apenas bonança. Um silêncio profundo substituiu o choro e os gritos de angústia que costumavam ecoar naquele espaço. Embora incerta sobre minha localização exata, suspeitava estar no inferno.

Não um inferno de fogo, como papai costumava pregar nas missas de Domingo, mas algo inteiramente diferente: um rochedo envolvido por uma árvore luminosa e colossal. Seus incontáveis ramos estendiam-se, flutuando no vazio cósmico infinito, irradiando um brilho esmeralda.

Era impossível associar aquilo com qualquer coisa que eu tivesse visto em vida. Milhares de cordas flutuavam e enroscavam-se no céu, tão longas que perdiam-se no horizonte, sem um começo ou fim. Pulsavam como se fosse um coração, emanando vida em meio áquele limbo hostil. A névoa densa flutuava ao meu redor, cobrindo partes do chão irregular, e de repente senti frio. Abracei o próprio corpo e inspirei o ar devagar, consciente o suficiente em pensar que tinha esquecido a janela do quarto aberta mais uma vez.

Depois de meses sendo atormentada pelo mesmo pesadelo, esta era a primeira vez que tudo parecia relativamente calmo, inerte, adormecido. Pude escutar, ao longe, o rugido ocasional de algo que lembrava trovões, mas eles ressoavam de um lugar muito além do alcance da minha visão.Deixei que meu subconsciente me conduzisse através da neblina, sabendo exatamente para onde ir, e avancei até alcançar as escadas de pedra irregular. 

Subi os degraus em um ritmo constante, sem nunca perder o fôlego ou me sentir cansada. Meu corpo parecia flutar, leve em meio á energia densa de um ar que precede a tempestade. Senti a ansiedade crescer dentro do peito, e apesar de não haver sinal de verdadeira ameaça, algo ali me deixava extremamente desconfortável. 

Parte disso vinha da minha clara impotência naquele reinado obscuro. A falta de clareza me enchiam de uma expectativa alarmante. O tempo parecia se esticar e dobrar caprichosamente, desorientando meus sentidos. Continuei pelo o que poderiam ser horas - ou seriam dias? Meses? Anos? Talvez apenas segundos, se parar para analizar. Com uma crescente impaciência, acelerei o passo, saltando os degraus de dois em dois. Meu olhar se fixou nas cordas que se entrelaçavam ao meu redor e percebi que, embora formassem um emaranhado aparentemente caótico, todas convergiam e emanavam de um único ponto, localizado no ápice da escadaria.

Mas nada disso era novidade, é claro. Tinha atravessado esse purgatório inúmeras vezes. Ainda não entendia o seu significado, mas tinha duas certezas nessa vida: Uma é a de que todos morrem. A outra é que o diabo está sentado no fim desse caminho. 

E então, finalmente, eu o avistei. Inicialmente, era apenas um ponto distante, mas sua forma foi se tornando mais definida à medida que eu me aproximava. Grandes chifres escuros se erguiam majestosamente da diadema em sua testa, e seus cabelos negros e lisos desciam suavemente sobre os ombros. Ele estava vestido com trajes verdes elegantes, complementados por uma longa capa que se estendia atrás dele. Segurava as cordas com mãos firmes sobre o apoio do seu trono, os nós dos dedos destacando-se em branco devido ao esforço contínuo. Tudo nele permanecia como eu lembrava, exceto por sua expressão facial – um semblante sereno, olhos fechados, cabeça levemente pendendo para a frente. Adormecido.

Eu fiquei ali por algum tempo, observando-o a uma distância segura. Ele sempre estava acordado em meus pesadelos, expressão fria e afiada, lábios apertados como se contesse algo dentro de si. Nunca tivemos uma conversa; ele parecia eternamente alheio à minha existência. Seus penetrantes olhos de jade estavam constantemente fixados em algum ponto distante no horizonte, como se estivesse absorto em algo invisível para mim. Contudo, na maioria das vezes, esses pequenos detalhes se perdiam na tempestade de cenários, sons e imagens que me assolavam cada vez que mergulhava neste pesadelo. Eram raros os momentos de calmaria, nos quais eu podia realmente vislumbrar o homem – o diabo – ali sentado.

A curiosidade inflamou-se em mim, ardente como chamas sobre carvão. Avancei lentamente, o coração pulsando alto nos ouvidos, as palmas das mãos úmidas de expectativa. O medo dele era algo do passado, superado há muitos sonhos, quando me habituei à sua figura - e por ele nunca ter realmente captado minha presença. No entanto, havia algo em sua aura que ainda agitava profundamente o meu ser. As palavras de meu pai, lendo um versículo da Bíblia em Ezequiel, ecoaram em minha mente, impactantes como na minha infância: “Lúcifer era perfeito em sabedoria e formosura, seu brilho era vívido e reluzente”.

Eu poderia confirmar isso, sim senhor. 

Os traços eram refinados, as maçãs do rosto altas e bem definidas criavam sombras suaves sobre a linha do maxilar, e a expressão desacordada dava-lhe um ar mais jovem. Não parecia exatamente relaxado, já que ainda havia um pequeno vinco entre as sobrancelhas, como se estivesse em um estado constante de preocupação. Seus ombros largos eram realçados pelas roupas, que delineavam sutilmente as ondulações de seus músculos. Era desafiador determinar sua altura exata, mas a proporção de seus braços e pernas indicava que ele era notavelmente alto.

Embriagada pelo torpor do sono, afastei a leve pontada de culpa que ameaçava brotar em meu peito. Me perguntei o que meu pai pensaria ao saber que eu estava observando, com grande interesse, aquele que parecia ser o próprio antagonista de Deus. Certamente eu seria punida. Talvez iria parar nesse mesmo lugar depois de morrer, condenada ao inferno pela eternidade.

Eternidade com Lúcifer. Não parecia tão mal assim.

Abafei o riso, condenando meus próprios pensamentos. Dei mais dois passos em sua direção, agora perto o suficiente para notar as linhas de expressão em sua pele.  Meu coração falhou uma batida ao sentir o calor que emanava dele. Escutei sua respiração profunda ritmando o movimento do peito, e engoli em seco. Aquilo parecia perturbadoramente real. Eu senti a súbita e incontrolável vontade de tocá-lo e confirmar se a textura de sua pele era tão humana quanto parecia. 

Ergui os dedos devagar, avançando um mílimetro por vez, os olhos nunca deixando seu rosto. A qualquer movimento, eu recuaria e alertaria meu lado consciente, na esperança de estar em um sonho lúcido e voltar para o conforto da minha cama. Já havia feito isso outras vezes, poderia repetir o processo. Mesmo com a boca seca e o leve tremor nos membros, eu me conveci de que nada de ruim poderia realmente acontecer comigo ali. Eu estava segura do outro lado. 

Minha mão flutuou sobre a sua. Tão perto, tão fácil. Tranquei a respiração, apertei os lábios em uma risca. Finalmente, minha pele encostou na dele, repousando ali por uma fração de tempo. Foi como levar uma descarga elétrica, mas em câmera lenta - primeiro a sensação formigante e surpreendente do que parecia, de fato, uma mão humana, e em seguida uma onda de energia que subiu pelo braço e se espalhou pelo corpo. Era quente, macia, e havia de fato uma veia pulsante ali. Eu deveria estar apavorada, mas fui acometida por uma estranha sensação de alívio. Como se meu cérebro tivesse se convencido de que aquele era apenas um homem comum cochilando, completamente seguro.

Minha opinião foi dilacerada em um só golpe quando a frequência de sua respiração mudou e suas pálpebras se abriram. 

Eu afastei a mão como se me algo a queimasse. A entidade endireitou sua postura, piscou devagar e virou-se para mim. Pela primeira vez em meses, ele realmente me viu. Admirar o verde das íris á distância e ser engolida por elas eram coisas completamente diferentes. Senti minhas pernas vacilarem e pensei que fosse cair, mas mantive-me milagrosamente de pé. O tempo mais uma vez pareceu pregar uma de suas peças naquele lugar amalidiçoado, e estendeu-se pelo que pareceu uma eternidade. Ele me avaliava com uma expressão que oscilava entre o espanto, desconfiança e certa tristeza. 

Ah sim, foi possível identificar tudo isso em seu rosto. Incrivelmente expressivo. 

Dei alguns passos para trás, as palavras presas na garganta. Agora seria uma boa hora para acordar, mas eu não sabia mais como fazer isso, para meu próprio horror. A figura se levantou e prendeu as pontas das cordas em uma espécie de coldre em volta da cintura. Ele era ainda mais alto do que eu havia imaginado, a grandiosidade de sua presença ampliada pela diadema de chifres que lhe servia de coroa. Caminhou em minha direção com passos calculados, estudando-me com atenção. Quando falou, foi mais um pensamento em voz alta que algo dirigido a mim. Sua voz soou rouca e profunda, desacostumada ao uso.

— Curioso. 

— D-desculpe. Eu não queria acordá-lo. – balbuciei, arrependendo-me  imediatamente pela escolha infantil de palavras. Não me lembrava da última vez em que me senti tão intimidada por alguém. 

O homem – ou anjo caído, ou o que quer que fosse –  abriu um sorriso lento e felino, afundando meu estômago. 

—- Perdoe meus modos, querida, mas não me lembro de você. 

— Eu não entendo... 


—- Fomos amigos? – A cada passo que ele dava em minha direção, eu recuava, trêmula.. - Ou seríamos inimigos? – ele inclinou a cabeça, um brilho malicioso em seus olhos. - Ou quem sabe, amantes?

Franzi a testa em perplexidade, e ele acrescentou, sorrindo de canto:

— Bem, eu certamente eu devo ter feito algo terrível para provocar essa reação. 

— Não somos amantes! - rebati, incrédula. - Eu não te conheço!

— Ora, vamos lá, eu não tenho o dia todo para esses joguinhos. - ele fez uma pausa, erguendo uma sobrancelha com ironia, antes de continuar. - Bom, na verdade eu tenho, mas isso não vem ao caso. 

— Você está delirando.

— Delírio, realidade... no fim, tudo é uma questão de perspectiva, não acha?

Ok, ele soava perigoso. Instável, para dizer o mínimo. Resolvi que o melhor a se fazer seria entrar no seu jogo e não demonstrar medo. Inspirei fundo e parei de me afastar, fincando os pés no chão. Torci para que ele não reparasse no tremos das pernas. 

— O que você quer saber? 

— Finalmente -  fez um movimento abrangente com as mãos, como se uma plateia o observasse. - Pode começar dizendo aonde nos conhecemos.


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