O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 24
O coração do rei




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Yliel tinha ordenado vigilância máxima em todo o reino de Aurora, encarregando Erdwen das investigações acerca do invasor, porém em algum momento ele parou e observou sua esposa. Ela parecia muito dispersa, olhando para o nada como buscasse respostas ali, além disso não tinha dito uma única palavra desde que confrontou as trevas nos jardins do palácio.

—Erilla, você está bem? – perscrutou ele preocupado, depositando a mão sobre o seu ombro.

—Hum? – desperta de seus devaneios, a rainha fitou o marido e lhe ofereceu um fraco sorriso – Estou sim, querido.

Ele notou que toda aquela agitação no átrio era inapropriada para a conversa que desejava ter, então a conduziu com cuidado pelas escadas e quando finalmente chegaram no quarto, o rei fechou as portas.

—Aqui, sente-se. – pediu, a apoiando até que se sentasse sobre uma das grandes e confortáveis poltronas.

—Obrigada, querido. – agradeceu com outro pequeno sorriso – Sei o que quer me perguntar, mas peço que compreenda, ainda estou buscando respostas sobre tudo isso.

Ele puxou outra poltrona e a colocou defronte, sentando-se e inclinando-se para frente, a observando com preocupação.

—É inquietante saber que invadiram por duas vezes o nosso reino. Porém, dessa vez, até a floresta parece ter sido enganada, pois não nos alertou.

—Não foi isso que aconteceu, querido. – replicou Erilla com certa aflição – A floresta não interviu, pois já tínhamos recebido de bom grado o inimigo.

Yliel ficou boquiaberto por alguns segundos, então meneou a cabeça para os lados inconformado.

—Erilla, ele não é nosso inimigo! – apelou sem para isso ser grosseiro.

—Gabriel? É verdade, ele não é. – concordou, outra vez parecendo dispersa – Mas em seu complexo interior, existe... Mais de um.

—Está insinuando que aquilo era o Rei Negro?

A rainha suspirou como se estivesse exausta.

—Desculpe, querida. É melhor que descanse.

—Não. – se interpôs depositando a mão sobre a perna dele – É de extrema importância que você saiba o que está acontecendo, Yliel. Desculpe, é que... Eu tive contato direto com aquela entidade e nunca, em toda a minha existência, experimentei tamanha maldade. Ainda sinto aquela energia maligna permeando meus ossos, sacudindo meu cérebro e me sufocando.

O rei se levantou, foi até a mesa e serviu uma taça d’água para sua esposa. Quando ela, por fim, bebeu tudo, ele fez o mesmo para si e só então tornou a se sentar.

—Sua luz e as trevas daquela entidade travaram uma batalha perigosa.

—E decisiva. – complementou ela o encarando – Porque se eu não tivesse sido capaz de expulsá-lo, só Nymira sabe qual seria o destino de Gabriel. Aquele não é o Rei Negro, Yliel.

—Impossível. – disse ele confuso – Estou certo de ter visto apenas duas almas em seu interior.

Ela levou uma das mãos ao próprio pescoço, enquanto seus olhos se perdiam na vista através das janelas descortinadas.

—Pretende ir adiante com isso de levar Gabriel ao campo de batalha? – questionou incomodada – Espero que se lembre, ele não é um guerreiro como outrora já foi.

—Ele tomou essa decisão por si mesmo, minha rainha. De alguma forma, se sente culpado pelo que aconteceu com a nossa filha e eu entendo esse sentimento, pois também me sinto assim. – respondeu com certa amargura.

—Vocês não são culpados pelo que aconteceu! – retrucou inconformada – Calendria é a única culpada. Porém, talvez devamos esperar um pouco mais, buscar respostas acerca de tudo o que está acontecendo, agir com a cabeça e não com a espada.

—Eu tenho segurado a fúria de Aurora por tempo demais, minha rainha. Olha aonde isso nos levou! Eles profanaram o dia sagrado, mancharam nossas terras e ceifaram a vida da nossa tão amada filha! – embora irritado, ele não elevou o tom.

—Eu entendo tudo isso muito bem. – disse ela com pesar – Se o que aconteceu hoje tivesse acontecido no campo de batalha, seria um completo desastre, Yliel. Além do mais, ainda existe a possibilidade de Gabriel Eichen tentar dominá-lo e nós dois sabemos que no passado ele já estava distante da sensatez, quem dirá agora!

—Não somos inimigos de Gabriel Eichen. Se ele assumisse seu corpo renascido, só quem perderia seriam os calendrinos.

—Mas ele não é uma ferramenta! – protestou Erilla, pela primeira vez se exaltando – Ele é nosso amigo, Yliel! Ele é o mesmo que nos ajudou no passado, o mesmo que chorou pela morte da nossa filha e que por várias vezes quis desistir de tudo para proteger Aurora, mesmo sem se lembrar de nada.

O rei viu a si mesmo nos olhos marejados da sua esposa e em seguida curvou a cabeça, respondendo em voz baixa:

—Eu nunca quis tratá-lo como uma ferramenta, Erilla. – então segurou nos ombros dela com ambas as mãos – Entendo perfeitamente a importância do nosso amigo, assim como respeito as decisões dele. Além do mais, nós nem ao menos sabemos se...

Ouviu-se dois batuques na porta.

—Entre. – disse o rei em alta voz.

Sylie adentrou o quarto. Embora a elfa já estivesse com olheiras de tanto chorar nos últimos dias, foi visível sua preocupação ao anunciar em voz trêmula:

—Majestade, o senhor Gabriel permanece inconsciente e não sei dizer quanto tempo isso vai durar. Não encontrei nenhum ferimento além daquele em seu pescoço, que possui hematomas notáveis. É como se alguém tivesse tentado estrangulá-lo.

Rei e rainha se entreolharam na mesma hora. Esta última, por sua vez, segurou a mão de Sylie e pediu como quem o faz a uma amiga:

—Sei o quanto você está fragilizada, mas por favor... Cuide dele e também de Heler. Qualquer coisa que precisar, qualquer coisa mesmo, não hesite em nos comunicar, Sylie.

—Estou bem o bastante para cumprir com o meu dever, minha rainha. – respondeu a elfa tentando forçar um sorriso – Além disso, Ada está me ajudando, inclusive eu a deixei cuidando dele e quanto a Heler, fico feliz em informar que já está fora de perigo. Todavia, é de suma importância que ela não sofra emoções fortes, portanto, sugiro que não saiba de nada por enquanto.

Ao amanhecer, Yliel chamou seu filho, o príncipe Sael, e sua filha, a princesa Aelin, para caminharem pela floresta, agraciada pelo clima ameno, muito agradável.

—Ao pôr-do-sol, marcharemos contra os calendrinos. Isso significa que Aurora ficará indefesa, por isso vocês se encarregarão de proteger nosso povo. Contarão com pouquíssimos guardas, pois já é pequeno o nosso número perante as suposições que favorecem os inimigos.

—Tudo bem, pai. Mas nossa mãe estará no controle, imagino. – disse Aelin.

—Sim, a mãe de vocês será a autoridade máxima na minha ausência, como sempre.

—Então... Por que está nos dizendo isso? – indagou Sael, levantando uma dúvida que também pertencia a sua irmã.

O rei suspirou e parou de caminhar, os observando.

—Se o pior acontecer...

—O pior não vai acontecer! – cortou Aelin irritada.

—Por favor, filha. É importante. – apelou o rei elfo, acariciando a cabeça da princesa emburrada – Se não regressarmos, vocês deverão dar forças a sua mãe. Ela já está sobrecarregada depois de tudo o que aconteceu e ainda teve forças para lidar com uma entidade perversa que atacou nosso amigo Gabriel. Caso vosso pai fracasse, cairá sobre vocês o peso das vidas deste reino. Aelin... Sael... Nunca se esqueçam disso, porque eu os amo. A irmã de vocês nos foi tomada de maneira vil e porque eu também a amo, bem como porque amo Nymira, tenho o dever moral de colocar fim a essa maldita loucura de Calendria.

Aelin abraçou o pai com força, desabando em lágrimas irrefreáveis. Sael, embora não chorasse, também abraçou a ambos e em seu rosto estava nítida a tristeza, mas também algo mais; indignação.

—Eu quero ir com você! – disse a princesa o olhando nos olhos – Me deixa ir com você, pai! Sabe o quanto sou forte, posso ajudar e...

—Nada disso.

—Pai! Por que não confia em mim? Por que acha que sou incapaz de lutar? – desesperou-se.

—Justamente por confiar em você e no seu potencial, minha filha, que não desejo levá-la. Você será incrivelmente importante para o nosso povo, para o seu irmão e sua mãe.

—Mas se eu ficar aqui, não poderei te ajudar! – replicou irritada e chorosa – Eu não quero que o senhor vá! Não quero! Já perdi a Leeta, não quero te perder também, papai! Droga, por que não entende?

Ela o empurrou e saiu correndo. Sael fez menção de tentar impedi-la, mas sentiu a mão de seu pai no ombro e logo o fitou confuso.

—Deixe, filho. O que estou pedindo a vocês não é nada fácil e sua irmã precisa refletir. – explicou calmamente.

—Pai... – os olhos verdes de Sael pairaram sobre os azuis de Yliel sem vacilar – Acha que vai morrer?

O vento sacudiu as copas das árvores e balançou os longos cabelos loiros do rei, bem como os prateados do príncipe. Houve um instante de silêncio, mas em nenhum momento a conexão do olhar de ambos foi interrompida.

—Se eu morrer, vou descansar, meu filho. Mas antes disso, muitos outros descansarão junto comigo. Nenhum rei governa para sempre, mas enquanto governa, deve estar disposto a entregar tudo o que tem pelo seu reino, inclusive a própria vida.

O filho abraçou o pai com carinho e não tiveram pressa de cessar.

Durante a tarde, o rei se reuniu na grande biblioteca do palácio com quatro dos seus militares, dentre eles Erdwen. Eles estavam em volta de uma mesa espaçosa feita inteiramente de pedra e, sobre esta, havia um enorme mapa de Eastgreen.

—A defesa deles será um problema, majestade. – advertiu Erdwen, líder da guarda real – Uma extensa muralha que circunda todo o reino.

—Podemos fazer um cerco e impedir a entrada de suprimentos. – sugeriu um elfo de cabelos curtos e negros, tendo no rosto uma expressão absolutamente rígida que combinava bem com sua cicatriz transversal na altura do nariz. Seu nome é Nytarian, líder dos arqueiros.

—O tempo não será um aliado, Nytarian. – alertou Yliel – Um cerco prolongado permitiria que os aliados de Calendria viessem do norte e do leste. Temos que atingir o ponto fraco deles, os portões, mas eles estarão fortemente guarnecidos, sobretudo pelas torres.

Uma elfa de cabelos ruivos deu a volta na mesa e, pacientemente, apontou para uma estreita marca azul ao norte das muralhas. Todos olharam o ponto indicado no mapa, depois se entreolharam, exceto pelo rei que continuou a fitar aquela região demarcada.

—Tem razão, Bellie. Há um rio que vem do norte e abastece Calendria. Nesse ponto, as muralhas estão sustentadas sob a água e é bem possível que em algum lugar, haja alguma abertura para que a correnteza flua até o interior.

—Abertura essa que estará protegida por grades de ferro. – supôs o quarto guarda, um elfo de longa trança castanha, alto e esbelto. Seu nome é Uly. – É uma tarefa para mim, majestade.

—A tarefa é invadir pelo canal, procurar pelas armas dos anões que certamente estarão lá e usar uma delas contra eles… Aquela. Em outras palavras, destruir os portões de dentro para fora. – o rei se dirigiu até o guarda Uly, erguendo ligeiramente o queixo para encará-lo – Eu não possuo o direito de pedir isso a você, ainda que tenha me jurado lealdade, Uly. Será extremamente perigoso.

—Não há lugar seguro em uma guerra, majestade. E como bem disse, eu jurei lealdade ao senhor, algo que se mantém. Este elfo, embora não seja um filho de Aurora, entregará a própria vida como se fosse.

—Você é tão filho de Aurora quanto qualquer um de nós! – replicou Erdwen convicto, ao passo em que todos no recinto concordaram.

—Sendo assim, a tarefa é sua, Uly. Que Nymira ilumine seus passos em meio a escuridão. – proferiu Yliel, voltando-se para a mesa – Atacaremos em duas frentes, mas o inimigo só estará nos aguardando nos portões. Devemos resistir tanto quanto eles. Pareceremos fracos, em menor número e impotentes, o que vai elevar o nível de confiança dos calendrinos, ao mesmo tempo em que aumentará as chances de Uly. Farei questão de chamar a atenção dos mais poderosos para que se apresentem no front, sobretudo de Merlin. Eles não poderão ignorar a minha presença e ainda que estejam protegidos atrás daquele monte de pedras, virão... Lutaremos pelo nosso reino, pela nossa liberdade e para colocar um fim a loucura dos nossos inimigos. Por Aurora! – bradou erguendo Elindora.

—Por Aurora! – replicaram todos; Bellie com o punho direito, Uly com a espada, Nytarian com o arco e Erdwen também com a espada.

Assim que os militares deixaram a biblioteca do palácio, Erilla passou pela porta e a fechou. Yliel a fitou por poucos segundos antes de se voltar para o mapa.

—Deveria conversar com a sua filha. - disse a rainha.

—Não acho que ela concorde no momento. – respondeu indiferente.

—O que está acontecendo com você, Yliel? – indagou ela aflita – Pretende deixar que a raiva o consuma e o cegue?

—Estou ocupado agora, Erilla.

No instante seguinte, o mapa se enrolou e flutuou até a estante de livros, graças ao poder da elfa. Num suspiro longo, o rei parecia ter entendido que não conseguiria escapar daquela conversa.

—Acha que eu não sei? Você está indo para morrer naquele maldito lugar!

—Erilla, não é o momento.

—E haverá outro momento, Yliel? – exasperou-se a rainha, ficando frente a frente com ele – Me responde! Eu perdi Leeta e agora vou te perder também, é isso?

—Pessoas morrem em uma guerra, Erilla! – retrucou friamente.

—Se pensa assim, então vamos todos até lá. Lutaremos todos juntos!

—Isso não vai acontecer!

—E por que não?

—Porque é uma ordem do seu rei! – bradou ele, pela primeira vez elevando a voz.

Os olhos verdes e marejados da rainha não miraram em qualquer outra direção, sustentando o olhar severo do marido. Olhar este que, após alguns segundos, se quebrou para revelar aquilo que ele realmente sentia; tristeza.

—Que seja cumprida a ordem do meu rei.

—Erilla...

A rainha deu meia volta, mas ele a segurou pelo braço e a abraçou por trás, escondendo o rosto nos cabelos alvos da sua amada.

—Eu não posso permitir que vocês morram também, me entende.

—Não acha que está sendo egoísta? Ou me subestima a esse ponto?

—Jamais subestimei você, sabe muito bem disso. Porém, assim que assumi o trono do meu pai, o fiz ciente de que deveria entregar minha própria vida pelo nosso povo.

—Entregue sua vida para sua rainha. – pediu ela baixinho, virando-se para abraçá-lo.

—Já está entregue há muito tempo... – respondeu num sorriso sincero – Desculpe pela forma como eu falei.

—Não peça desculpas pela enorme ferida que queima em seu coração. – ela o olhou e o beijou brevemente – Volte para nós, querido. Volte para mim, por favor.

Yliel olhou no fundo dos olhos dela e ficou em silêncio durante um tempo, até sorrir e dizer:

—Eu voltarei, minha doce Erilla. Prometo que vamos nos reencontrar em breve.

Mais tarde, o rei foi até o quarto de sua filha, a princesa Aelin. Ele bateu na porta por duas vezes e chamou seu nome, todavia ela não respondeu.

—Filha... Por favor, abre. – apelou condescendente.

Após aguardar por cerca de dez minutos, sentado no pé da porta, Yliel levantou-se e sorriu, dizendo:

—Eu te amo, Aelin. Espero que um dia você possa me perdoar.

Então se retirou.

Do lado de dentro, Aelin chorava incessantemente sobre os lençóis atirados ao chão. Chorava a tal ponto que seu rosto já estava vermelho tanto quanto seus olhos azuis e sua trança desfeita, porém o coração em seu peito estava ainda pior.


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