The One That Got Away escrita por Polaris


Capítulo 2
Papanasi


Notas iniciais do capítulo

Segundo capítulo da história!

Vou ressaltar mais uma vez que as postagens ainda não tem cronograma definido, mas provavelmente vão ser em quartas-feiras.

Por enquanto é isso!
Espero que gostem



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Parte 01 

Jane

        ✧♡✧

03 de março de 1941

...e não posso dizer que não fiquei surpreso quando me confidenciou tudo aquilo no telhado de casa. Claro, era minha irmã quem ela procurava naquela tarde, já que me odiava com todas as forças — ainda que ficasse linda enquanto me fuzilava com seus olhos brilhantes cor de caramelo.

De qualquer forma, fico feliz em tê-la encontrado antes. Se não fosse por isso, jamais teria percebido que Barbara Harris era a mulher mais extraordinária deste mundo.

✧♡✧

O VENTO GELADO DA MONTANHA SOPRANDO EM SEU CORPO poderia congelá-la em poucos segundos se ficasse parada por muito tempo. Mas não era por isso que sentia aquele frio incômodo na espinha. Ela olhou para os colegas que faziam os últimos preparativos antes da missão. Partiriam em breve. 

E tinha um péssimo pressentimento sobre tudo aquilo.

— Apreciando a vista ou tentando não virar picolé? — ouviu uma voz rouca chamando-a — é um lugar horrível e mesmo assim não é o pior que já estivemos.

 Ela se virou franzindo o rosto.

— Como consegue fazer piada numa situação dessas?

— É melhor do que enlouquecer olhando para o penhasco, não acha?

Ela suspirou.

— Acho que você tem razão, mas é que — hesitou, levando uma mão ao peito— deixa pra lá, é besteira.

Sentiu dedos grandes e calejados tocando em seu rosto. Ela se forçou a olhar para os olhos cristalinos e calorosos do homem à sua frente em busca de conforto.

— Ei, o que foi?

— Algo parece errado — ela suspirou— Não sei explicar o que é, mas talvez seja melhor cancelar a missão.

Ambos sabiam que cancelar a missão não era uma opção naquele momento.

— É nossa única chance— ele a lembrou.

— Eu sei, droga — ela rebateu — só que é tão perigoso e nós já perdemos tanto.

— Vai dar tudo certo — um sorriso brotou nos lábios dele. Deus, como amava aquele sorriso — você vai estar na cobertura. Não tem com o que se preocupar.

Ela olhou para o penhasco e depois para a corda que estava amarrada na cintura dele, torcendo o nariz. Quem teve essa maldita ideia afinal? Era loucura.

 — Não é comigo que estou preocupada, idiota.

— Venha aqui — sussurrou ele, puxando-a para perto e enlaçando os dedos em sua cintura. Quentinho e reconfortante, como sempre — sei que não é o que gostaria de ouvir, mas vou ser cuidadoso.

— Promete?

Ela enlaçou os braços finos no pescoço dele, se forçando a olhar diretamente em seus olhos azuis, esperando resposta. Odiava a ideia dele precisar correr tanto perigo naquela maldita engenhoca, mas como não havia outra solução, precisava ouvir as palavras da boca dele.

— Está na hora— alguém gritou atrás dela — o trem está vindo.

Ele então se afastou um pouco.

— Preciso ir agora — disse, puxando algo de dentro de seu casaco, um colar, e colocando no pescoço dela — mas quero que fique com isso.

Ela o olhou, confusa.

— Você não pode deixar sua dogtag comigo. Usamos ela para...

— Identificação ou para o caso de alguém encontrar meu corpo estirado na neve — ele completou, tentando fazer uma piada (não funcionou) e apertou-a mais forte contra seu próprio corpo — e é por isso que você vai me devolver assim que a missão terminar. Eu vou ficar bem. É uma promessa.

Ela sentiu o coração dando cambalhotas no peito e fechou os olhos, sentindo o calor dele espalhando cada vez mais pelo seu corpo. Desejou poder ficar mais um pouco em seus braços, com aquele aroma amadeirado reconfortante preenchendo-a. 

— Patife... 

— Eu amo você, doçura — disse ele e depositou um beijo em sua testa.

Ela abriu e fechou a boca algumas vezes, sem reação.

Era a primeira vez que ouvia essas palavras dele. Não sabia como reagir ou que dizer, mas sabia muito bem o que sentia sobre aquele homem. E queria dizer, queria gritar para que todos ouvissem, para que ele ouvisse. Só que não conseguia, as palavras estavam entaladas em sua garganta.

Diga de uma vez, apenas diga, droga.

Eles se conheciam há tanto tempo e mesmo assim ela nunca imaginou que um dia se sentiria assim. Não por ele. Tinham jurado que tudo aquilo seria casual e que não havia sentimentos. Pura mentira. Ela tinha se apaixonado por ele há tempos, só não percebera até aquele instante. E não sabia como, não sabia o porquê, apenas sabia que não poderia viver em um mundo sem aquele sorriso, sem o calor de seus braços ou suas ridículas piadas mórbidas.

Então por que não conseguia dizer aquilo tudo a ele? Por que parecia tão difícil? Eram apenas três palavras. Três malditas palavras, que simplesmente não conseguia clamar.

Se negou a abrir os olhos quando sentiu que seu corpo começava a esfriar, o barulho dos passos dele diminuindo e as vozes dos outros homens ficando cada vez mais eufóricas. Era hora de partir. Covarde, sua maldita covarde. Precisava dizer aquilo, ele merecia saber.  Até que finalmente:

— Eu te amo também, patife — desabafou, baixo como uma prece. Estava guardando seus sentimentos a tanto tempo, que era um alívio finalmente dizer as palavras.

Abriu os olhos, esperando encontrá-lo atônito — talvez tanto quanto ela ao fazer aquela descoberta.

Só que já era tarde demais, ele tinha partido. Suas palavras foram completamente engolidas pela fúria dos ventos da montanha, e não o alcançaram a tempo. Estava completamente sozinha naquela imensidão de marfim. E por alguma razão, aquilo a matou por dentro.

✧♡✧

 

Bucareste, Romênia,

Terça-feira, 25 de maio

2015

04:50am

 

JANE ABRIU OS OLHOS, SOBRESSALTADA.

—Foi apenas outro pesadelo— repetia ela, enquanto recobrava os sentidos. Seu peito subia e descia descontroladamente e grossas gotas de suor escorriam de sua nuca. 

Àquela altura, já deveria estar acostumada.

Não havia muito que pudesse fazer a respeito,  já que os médicos asseguraram que aquilo era perfeitamente normal, dadas as circunstâncias. Ainda que fosse irritante. Muito irritante.

Desde que se entendia por gente — o que, para ela, eram cerca de três anos —  tinha esses… pesadelos. Pesadelos incrivelmente realistas e abstratos que a mandavam para um lugar desconhecido, com pessoas estranhas, mas ao mesmo tempo, familiares. Só que quando acordava, não conseguia lembrar de nada. E aquilo a frustrava.

Era como se os rostos das pessoas estivessem cobertos por uma névoa que a impedia de enxergar com clareza e as vozes fossem distorcidas e distantes demais para chegar até seus ouvidos. Ainda assim, tinha algo que ela se lembrava claramente: um par de olhos azuis, afiados e expressivos, que transmitiam uma sensação de calor e aconchego.

Não saberia explicar direito o porquê ou como, mas sabia que eram masculinos. E próximos. De alguém muito importante, porque Jane sempre sentia aquele vazio irracional ao acordar e esquecê-lo de novo e de novo. 

Ela não sabia nada sobre seu passado. Nada. Era como se sua vida fosse uma folha em branco e todos os arquivos anteriores tivessem sido queimados. Não sabia se tinha parentes. Sua idade verdadeira. Se era casada. Deus, sequer sabia seu nome completo — Jane era um apelido. Ela se sentia um fantasma, uma sombra da pessoa que tinha sido antes.

Soltou um grunhido e olhou para o despertador na cabeceira. Não era hora de se levantar, mas também não conseguiria voltar a dormir, então apenas calçou o par de tênis que estava largado embaixo da cama e pegou o primeiro casaco que viu pela frente antes de disparar para o lado de fora do apartamento.

Bucareste era uma cidade tão aconchegante e acolhedora que Jane nunca deixaria de apreciar suas ruas e prédios de todos os tamanhos e formas. Ela gostava também do apartamento simples e daquela região tranquila, relativamente longe da agitação do centro comercial. Mas também não era como se soubesse por onde esteve antes. O único motivo que a fazia ter certeza de que não nasceu na Romênia, era seu sotaque, classificado por Anton como definitivamente americano. Isso e o fato de que não sabia uma única palavra em Romeno — antes dele ensiná-la, claro.

Ela cruzou a rua, ainda vazia pelo horário, e entrou no prédio da academia. Era grata a Anton por isso também. Como dono do lugar, e praticamente o único amigo de Jane, lhe dera uma cópia das chaves, afinal, era ela quem geralmente abria e fechava o estabelecimento e às vezes aproveitava a conveniência para treinar quando perdesse o sono — o que infelizmente, acontecia bastante.

Anton, um senhor de oitenta anos, foi quem a encontrou desorientada nos fundos da academia, três anos antes, e a acolheu em sua vida. Veterano do exército norte-americano, ele decidiu voltar para Bucareste, cidade natal dos avós, depois da aposentadoria forçada em 1993. Mas apesar da idade e limitações, ele era a pessoa mais alegre e ativa que conhecia e um dos poucos que de fato a entendiam.

A situação era simples e deprimente. Jane sofria de amnésia dissociativa. O motivo, segundo os médicos, após uma semana irritante de exames, era inconclusivo — quadro que apesar de incomum, não era completamente impossível. Isto é, poderia ser qualquer coisa. Um trauma reprimido; uma concussão depois de uma noite de bebedeira — embora soubesse que não estava bêbada naquela noite—; Uma maldição de bruxa — as bruxas existiam, não existiam? Fosse como fosse, estava convencida de que havia alguma coisa muito errada com ela, embora não soubesse o quê. 

Suspirou profundamente, pendurou seu casaco na cadeira da recepção e continuou andando em direção a pequena salinha quase escondida nos fundos, obstinada a socar o saco de pancadas mais próximo. Gostava daquilo, a adrenalina. A fazia esvaziar a mente e descarregar as frustrações. 

E aquele pesadelo havia sido mais intenso que o normal.

Como sempre, não conseguia lembrar direito o que acontecera, mas ela parecia conversar com alguém, aquele homem de sempre provavelmente. Acreditava que eles estavam falando sobre alguma coisa que não entendia e ela se sentia estranhamente bem naquele lugar, naquela presença, talvez fosse alguém realmente importante. Mas então, ele sumiu e depois... Ela não fazia ideia do que acontecia depois, mas não parecia bom.

Sabia que era aquele homem, porque se lembrava claramente daqueles olhos azuis calorosos e de um sorriso que arrepiava cada parte de seu corpo. Mas pensar nele fazia seu peito pesar uma tonelada. O que havia sido para ela? Será que ele ainda a procurava? Qual seria seu nome?

Jane, no entanto, por alguma razão não conseguia nutrir esperanças. Era como se pensar nele trouxesse uma lembrança mórbida à tona; como se algo em seu subconsciente dissesse que jamais o veria outra vez, e aquilo doía como o inferno. O que tudo isso significava, afinal?

— Merda — ela murmurou. 

Os socos se intensificaram. Jane batia e batia naquele saco, como se pudesse fazer a dor sumir, como se pudesse esquecer daquilo, mas não conseguia. Era incapaz de lembrar, mas também não conseguia esquecer totalmente. Seu peito subia e descia freneticamente, assim como as batidas descompassadas de seu coração confuso. Quando finalmente parou para respirar e limpar o suor, se surpreendeu com as lágrimas quentes escorrendo de seus olhos.

— Noite difícil?

Ela sussurrou um palavrão. 

— Alguma já foi fácil?

Não se virou. Ao invés disso, ajeitou a postura e voltou a golpear o saco, com as pernas desta vez. Não queria preocupá-lo. 

— Quer conversar?

— Não tem muito o que conversar Anton— exclamou ela, mordendo o lábio inferior. Então respirou fundo, virou o quadril e chutou o saco com tanta força que sentiu a perna arder ao passo em que o baque surdo do impacto reverberou pela sala — apenas o de sempre. Expressões vazias e melancolia. Não consigo me lembrar de nada.

— Nenhum rosto?  Tem certeza? — ele insistiu — tenho um amigo que está de passagem na cidade. Ele fazia os retratos falados da polícia em Berlim. Se estiver fresco em sua mente, podemos tentar outra vez.

Jane suspirou.

— Agradeço o esforço, de verdade Anton. Mas da última vez, o desenho ficou parecido demais com Van Johnson.

Anton lançou aquele olhar sereno de sempre e ela torceu o nariz, lembrando da ocasião. As primeiras semanas foram as piores. Se sentia como uma criança no primeiro dia de escola. Tudo era novo e estranho. Coisas simples como pessoas, roupas, tecnologia e até a comida estava muito além de sua compreensão. Levou meses para se acostumar, e ainda havia diversas coisas que não conseguia entender direito — mesmo que aquela altura estivesse bem com aquilo.

Mas naquela época, a agonia de não saber quem era e onde estava quase a levou à loucura. Passou meses procurando formas de resgatar suas memórias. Psicanálise, terapia e até a hipnose tinha recorrido, sem muito sucesso. Sempre que se aproximava de alguma resposta, perguntas ainda piores surgiam. 

Anton passou por ela e sentou-se na cadeira de metal enferrujada no canto da sala, olhando-a com uma expressão divertida que a fez desviar o foco por um instante.

— Bom, você tinha passado a tarde toda assistindo ao Turner Classic Movies. E aquele homem não é do tipo que se esquece fácil.

Jane começou a rir.

— Deus, Anton!

— Ora, estou mentindo por acaso?

 — Não... sim. Quero dizer, eu não estava pensando...

— Naquele rostinho bonito? — disse ele, sugestivo — Não a julgo. Quando tinha sua idade, também gostava dos filmes dele, mas meu favorito sempre foi o Richard Beymer.

Jane não estava corada de vergonha, mas era quase isso. Ele então começou a rir também. Provavelmente dela. 

—  Velho depravado.

— Pelo menos você está sorrindo — disse ele, ajeitando a perna — Sabe que é como uma filha para mim, não sabe Jane?

Ah ela sabia. E não existiam palavras que expressassem sua gratidão.

— E como alguém que se importa, não gosto de vê-la sofrendo assim — Anton continuou — sei que a situação é complicada, mas não pode desistir.

— E passar a vida toda atrás de algo praticamente impossível? — Jane confessou. Estava cansada daquilo— Já não sei mais se é possível recuperar minhas memórias, Anton – ela deu com o punho no saco, como se aquilo mudasse alguma coisa. Um pouco de areia escapou da lateral, mas ignorou —Os médicos disseram que elas voltariam em algum momento — não terminou a frase, mas sua expressão consternada dizia muito — Isso me faz pensar, e se for melhor assim? Quero dizer, talvez esteja na hora de seguir em frente.

Por um instante, Anton não disse nada. Então:

— Pode haver alguém procurando por você em algum lugar, Jane. Não pode desistir —ele fez uma careta quando viu a areia escorrendo no chão — mesmo com sua tendência em destruir meus sacos de pancadas.  

 Jane entendeu a indireta e interrompeu o golpe seguinte.

— Está querendo se livrar de mim? — ela ironizou — Juro que posso consertar o maldito saco.

— Não me livraria de você nem se quisesse. E não mude de assunto.

Ele tinha razão (em partes). Cedo ou tarde precisaria encarar o passado, mas isso jogaria em sua cara uma verdade cruel que estava tentando a todo custo evitar. Ela virou a cabeça novamente quando sentiu que as lágrimas voltariam a escorrer de seus olhos.

— Estou aqui há três anos. Três malditos anos. Ninguém nunca me procurou. E não estou mais perto de descobrir quem sou do que naquela época.

Agradecia o otimismo dele, mas precisava aceitar: não tinha nada nem ninguém para voltar. Estava sozinha no mundo.

Anton então se levantou com dificuldade — Jane já se cansara de repreendê-lo por forçar a perna boa, mas aquele homem era de uma teimosia incontrolável — e pousou uma mão em seu ombro, do mesmo jeito que fez da primeira vez em que se encontraram. Ela sorriu. Talvez não tão sozinha assim.  

De um jeito estranho, tinha sido como amor à primeira vista. Jane estava completamente perdida e assustada, em um lugar estranho. Sua cabeça girava e a última coisa que se lembrava era de estar caindo. Ela cambaleava pelo beco praticamente implorando por ajuda, se sentindo mais perdida do que nunca, já que as pessoas pareciam não entender — ou sequer se importar — com o que dizia. Então aquele homem com um aparelho estranho na perna e expressão gentil apareceu, perguntando se estava bem, em inglês antes que desmaiasse pela segunda vez.

Ele podia simplesmente ter deixado Jane no hospital mais próximo e ir embora, ela era uma mulher desconhecida, afinal. Só que Anton não fez isso. Enquanto estava em recuperação, ele a visitava sempre que possível, trazendo um sanduíche de pastrami e um sorriso que a fazia se sentir menos miserável.

Quando teve alta e não tinha para onde ir, ele ofereceu um dos apartamentos que alugava. Arrumou-lhe um emprego na academia. Mais que isso, Anton a ensinara o suficiente de romeno para que conseguisse pelo menos comprar leite no mercado ou conversar o básico com as pessoas.

Jane nunca entenderia por que ele gostava dela, mas retribuía do jeito que podia. Como quando passava horas ouvindo sobre os tempos de juventude dele. Sobre o falecido marido — embora nunca tivessem se casado oficialmente— e como tinham sido felizes juntos. Quando ela o ajudava com a academia, seja arrumando pesos ou ensinando boxe para as mulheres do bairro. Quando suas romãs acabavam e ela “secretamente” comprava mais na feira, junto com os seus cogumelos desidratados favoritos.

Não sabia se era estranho, mas o considerava como sua pessoa favorita. Não porque ele era basicamente a única que conhecia — talvez um pouco — mas porque ele havia se tornado sua família, ou ao menos o mais perto quanto possível disso. Por isso, ela aceitou o toque e suspirou, se sentindo melhor. Menos vazia.

— Não perca as esperanças, querida. E mesmo que esteja certa, ainda estarei aqui por você.           

— Obrigada Anton.

— Mas pare de tentar estragar os sacos de pancadas. É difícil arrumar um conjunto decente hoje em dia.

— Em primeiro lugar: não cheguei nem perto de estragar — Jane levantou uma sobrancelha — não é minha culpa se você gosta dessas velharias.

Clássicos, Jane, Clássicos — Anton deu um tapinha em seu ombro antes de completar: —e já vi pugilistas de dois metros mais delicados do que você.

— Isso é ruim?

— Claro que não — disse ele — Está com fome? Porque estou sentindo uma vontade incontrolável de comer papanasi e tenho quase certeza de que Lana já abriu a loja.

 Ela concordou. Estava faminta.

✧♡✧

Quarenta e cinco minutos mais tarde, Jane e Anton estavam sentados na aconchegante sacada da cafeteria da esquina. Ele demonstrava — pela milésima vez— como pronunciar corretamente a palavra ameixa. Isso porque embora o romeno de Jane fosse razoável, seu sotaque era carregado demais. O que não era exatamente um problema, mas incomodava saber que algumas pessoas não a entendiam direito. Além disso, precisavam de uma distração até que os pedidos ficassem prontos.   

Aparentemente, aquele era o café mais frequentado do bairro. A papanasi de Lana era divina. Era a favorita de Anton — e depois de sentir o gosto daquele bolinho frito, fofinho, recheado com nata caseira e coberto com uma geleia de ameixa que derretia na boca pela primeira vez, tinha se tornado a favorita de Jane também.

Pruná.

—Quase. Prună — corrigiu Anton, mexendo os lábios lentamente para que ela conseguisse entender o movimento — tente pronunciar o “ă” como se fosse um “e” átono.

Prună — repetiu ela — Prună. Agora está certo, não está?

Ele acenou.

— Muito bom. Continue assim e logo não vai mais precisar de mim para pechinchar na feira.

— Mas eu preciso de você —disse Jane, com um sorriso torto no rosto— Jamais conseguiria escolher as batatas certas sozinha.

Anton a olhou como se não tivesse gostado do elogio.

— Ou o queijo — ela continuou — sempre acabo com o mais salgado da leva.

— Isso porque você não tem paciência para escolher direito. E odeia cozinhar.  

— Eu não odeio — ela se interrompeu ao lembrar de todas as vezes em que quase incinerou a cozinha do apartamento enquanto tentava fazer sanduíches. Foram várias — talvez um pouco. Em minha defesa, aquela torradeira é muito confusa.

Houve um som agudo, algo parecido com deboche.

— A torradeira é confusa?

— Ela esquenta demais — ela argumentou — o pão quase sempre acaba queimado.

— Me lembre de mandar uma carta ao fabricante mais tarde.

Jane soltou um grunhido.

— Não seja tão condescendente. Teve uma vez que chegou a acionar os alarmes de incêndio, foi vergonhoso.

 — Deus Jane — Anton explodiu em risadas, provavelmente tentando entender como fizera a façanha — você provavelmente é a única millennial que entende menos de eletrodomésticos que alguém da velha guarda.

Ela o analisou, pensando em uma resposta. Após alguns instantes, chegou à conclusão de que ele não havia falado nenhuma mentira, era mesmo péssima em lidar com qualquer tipo de tecnologia, por isso agradeceu quando ele desviou o olhar para a pequena televisão acoplada na parede, ligada no canal de notícias.  

Passou os minutos seguintes olhando para os carros e ônibus que passavam freneticamente pela rua e para as pessoas que retiravam os pedidos no balcão, saindo da loja em seguida, apressadas demais para retribuir o agradecimento entusiasmado de Lana, se perguntando se algum dia tinha sido como elas.

Honestamente, Jane sentia como se não tivesse vocação alguma. Não sabia cozinhar, era lenta demais com o computador da academia e a única coisa que conseguia fazer direito além de estragar o equipamento de boxe de Anton, era equilibrar três halteres de dez quilos na mão — habilidade que embora impressionante, não era algo a se dizer durante uma entrevista de emprego.

O que diabos fazia da vida antes disso?

Como foi parar em um subúrbio romeno? Quais seriam suas habilidades, se é que tinha alguma. Ela suspirou. Eram reflexões exaustivas demais para se fazer no meio da cafeteria, com Anton por perto, então achou melhor se virar para a televisão também.  

Era o noticiário local. Alguma coisa tinha acontecido e aquilo captou totalmente sua atenção. Jane não conseguia entender direito as palavras ditas pela repórter, abafadas pelo som de conversas das pessoas nas mesas próximas, mas as imagens mostravam explosões e prédios caindo.

— Outra cidade destruída? — disse Lana, chegando na mesa equilibrando uma enorme bandeja nas mãos — Soube que desta vez foi em Sokóvia.

A imagem mudou. Além de civis correndo, era possível ver robôs voando pelas ruas, destruindo tudo ao seu redor. O que era aquilo? E por que parecia... estranhamente familiar?

— Pelo menos os Vingadores estavam lá — completou Anton casualmente, enquanto pegava sua xícara de café — ou o estrago poderia ter sido muito maior.

Jane não prestou atenção na resposta de Lana. Não prestou atenção em mais nada na verdade. Seus olhos estavam completamente vidrados naquela televisão, nos vingadores. No Capitão América lançando seu escudo; a Viúva-negra e o Gavião-arqueiro derrubando alguns robôs; o Hulk fazendo... o quer que estivesse fazendo; E o Homem de Ferro. Ele planava no ar, fazendo manobras arriscadas, enquanto derrubava os robôs com aquela coisa que saia de sua mão.  

Era estranho. Já tinha o vira antes na televisão, com aquela mesma armadura, mas por alguma razão, ao vê-lo em ação daquela vez a fez sentir incomodada, como se o visse por um novo ponto de vista. O que não fazia o menor sentido, porque ele estava como sempre, exceto por...

...Pelo capacete.

A falta dele, na verdade. A princípio, não havia nada demais. Apenas um homem branco, moreno e de olhos castanhos usando um traje que o fazia parecer uma torradeira ambulante e que, francamente, deveria ser a coisa mais brega que vira na vida. Mas aquele pensamento, misturado com o cenário caótico transmitido na televisão, invocaram uma memória fortuita.

—Ainda não entendo qual a necessidade dessas malditas penas. O objetivo não era discrição?

—Estilo, minha cara. Pense por esse ângulo: do que adiantaria ser uma das maiores mentes do século, se ninguém souber? Não teria a menor graça. Com você é a mesma coisa.

— Você é um idiota.

— Alguns me chamariam de gênio.

Jane ouviu seu nome algumas vezes, como se alguém estivesse perguntando sua opinião sobre alguma coisa. Ela apenas sorriu e concordou, pouco se importando com o assunto, queria tentar recuperar mais alguma coisa. Para sua frustração, no entanto, a matéria tinha terminado. E a memória se foi, tão repentina quanto veio.    

— De qualquer forma, estamos bem por enquanto — Lana murmurou antes de dar-lhe as costas — se precisarem de mais alguma coisa, estarei no balcão.

O cheiro da papanasi e a fumaça do café recém passado fizeram seu estômago roncar. Ela então começou a comer ainda meio atordoada enquanto respondia mecanicamente as perguntas triviais de Anton. Como está a comida? Me passe o açúcar, por favor ou será que vai chover mais tarde? Só que a única pergunta realmente importante para Jane naquele instante era:

Mas que diabos foi isso?


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Notas finais do capítulo

A titulo de curiosidade: A Papanasi (Papanași) é um doce romeno, basicamente uma massa frita ou cozida tradicional, em geral servido com compotas. Em alguns momentos da história pretendo colocar pratos da culinária local, é uma forma minha de aproximar a história do local onde se passa. Espero que gostem.

Por enquanto é isso.
Até logo!



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