TARTARÚ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 6
Capítulo 6




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Carregava um caixão no fundo do carro, um álbum com fotos de defuntos maquiados, e outro com decoração de velórios já realizados, ordenando que Bira fosse ao volante. Partiram com o mostruário para Mata de Curvelo, onde entrariam numa briga renhida para vender seus serviços. O patrão sacolejava no banco do carona perdido em pensamentos. Tinha que achar uma maneira de administrar a fortuna de Carmelita. Ela lhe devia aquilo. Teria um conversê olho no olho com o advogadinho. Queria mesmo era trocar a gratidão de Benedita pela procuração dos bens, se ele sobrevivesse à doença venérea que iria contrair logo mais. Quando pensava na reforma que faria na tapera da louca, colocando grades nas portas e janelas, viu os despojos do acidente e pediu pra parar. O pau de arara que havia se chocado com uma vaca, capotou, atingindo um caminhão do circo que estava montado em Cabrueira e se mudaria em breve para Amparo. Além dos quatro infelizes passageiros do pau de arara, que morreram na hora, e da vaca partida ao meio no asfalto, estavam internados dois vendedores de pipocas, um palhaço, a moça da bilheteria e o homem que limpava as fezes dos animais. Corria a notícia que havia bichos selvagens à solta pela mata, que viajavam na traseira do veículo.

— Patrão, você acha que tem leão solto por aí? – Perguntou Bira, preocupado com a possibilidade do animal aparecer em Robledo.

— Qualquer coisa a gente repete o plano dos cachorros.

— Mas será que esse bicho vai se contentar com carcaça?

— Se não contentar, eu amarro o Dr Benevides na veraneio como isca – Sugeriu, distraído, analisando a banda da vaca que tinha menos estrago

— Bira, bota essa banda de carne dentro do caixão. Prometi comida boa para as raparigas. Vão comer bife a semana toda – Anunciou, se abaixando pra pegar os sapatos de um palhaço.

O homem obedeceu, encaixando os quartos traseiros da vaca acidentada dentro da urna funerária, e rindo do chefe calçado com os sapatões e imitando Boca de Ouro.

— Acho que é mais ou menos o tamanho dele, você não acha? – Olhou pro capanga que evitou responder, sabendo que era uma piada feita de um chefe pra outro maganão. Ele sabia o seu lugar. Viu os sapatos serem arremessados longe.

— Vambora que dinheiro tá difícil.

Quando entraram em Mata de Curvelo, uma vila que padecia dos mesmos problemas que Robledo, mas ao menos tinham prefeito e delegado, logo viram o carro da funerária de Cabrueira.

— Mas que merda, esses urubus têm o faro apurado para desgraças! – Praguejou, saltando do carro antes que ele parasse, já na porta de uma família enlutada.

Na sala, com o tamanho do banheiro da sua casa, ele se esgueirou por entre os curiosos até chegar na viúva, já cercada por Bento, o seu concorrente.

— O que você quer aqui? Já fechei negócio aqui com a Dona Matilde – Expôs numa voz solene, enquanto abraçava a senhora de idade. Aquilo não fazia parte do pacote, mas era um artifício que funcionava. Chorar o defunto como parente de sangue.

Ele aceitou um cafezinho de coador que lhe serviram, e viu que pelo grau de intimidade de Bento com a viúva, ele devia ter oferecido consolo à viúva por um ano inteiro pra conseguir vender aquele caixão. Já saía da casa quando Bento lhe avisou.

— Já passei por outros dois também e já assinei contrato. A irmã do quarto defunto ainda tá pensando na minha proposta. É a última casa da segunda rua. Fale com Dona Edite.

— Você acha que sou homem de migalhas?

— De jeito nenhum, é que ela me pediu um negócio esquisito que avisei que não fazia. Mas você do jeito que é destemido é capaz de topar – Falou numa seriedade atípica para um cabra bonachão, devido ao papel que desempenhava ali no momento de dor da sua cliente.

Resolveu ir até lá pra ver se era alguma piada de mal gosto de Bento. Sabia que tinha se atrasado com o enterro do macaco e o negócio do testamento. Também era sabedor que a qualidade dos caixões de Bento era melhor que as suas. No último embate, ocorrido há poucas semanas, pelo cadáver de um adolescente que havia perecido depois de uma pedrada, ele conseguiu convencer a mãe do rapaz que a madeira fina das suas urnas tinham um propósito. Como o corpo do menino não tinha hematomas, parecia que ainda estava vivo. E quando Bento já estava puxando o contrato para ser assinado, ele se abaixou no ouvido da mãe chorosa e lhe cochichou algo que a fez enxugar as lágrimas e mudar de ideia.

— O que você falou no ouvido dela, patrão? – Perguntou Bira, divertido, enquanto dirigia.

— Disse que Deus está acima dos médicos, e que se de repente aquele menino acordasse depois de enterrado, conseguiria arrebentar o madeirame da minha urna, feita daquele jeito exatamente com esse pensamento. Depois era só cavar pra cima.

— Meu Deus, o patrão têm uma lábia danada de boa

— Ele pode tá querendo se vingar me dando um cliente de lambuja. Aquilo nunca foi de abrir a mão nem pra dar um cravo de defunto de graça.

Na casa daquela mulher com o irmão morto na colisão, as coisas eram diferentes. A senhora distinta os recebeu, vestida numa camisa de seda marrom abotoada até o pescoço, com os cabelos amarrados no alto da cabeça num coque raro de se ver por ali, uma saia preta justa que mostrava que mesmo do alto dos seus cinquenta e poucos anos, ainda tinha muita lenha pra queimar. Como queria que Donana envelhecesse daquele jeito! A mulher distinta ainda calçava sapatos que só se encontrava em lojas da capital. Uma lavanda suave emanava da sua pele leitosa.

— Podem entrar cavalheiros, vocês devem ser da funerária a qual o outro rapaz me falou. Não lhes desejo bom dia, por absoluta falta de motivos. Peço desculpas.

Ali lhe fora servido chá em xícara de louça e biscoitos amanteigados. A casa não era grande, mas era senhorial, como a da fazenda de Rosa. Na parede havia uma sequência de imagens da família sentados em um sofá. Aproveitando o olhar de Conde fixo nos retratos, Dona Edite entrou no assunto.

— O senhor percebeu que esses retratos são tirados nesse mesmo sofá em que estão sentados? – Ambos deram uma olhada no móvel e tornaram a atenção a ela – O meu irmão era embalsamador na capital. Quando uma pessoa morria longe do local onde seria enterrado, ele preparava o corpo para uma viagem que poderia ser longa demais para um cadáver resistir até o funeral. Era muito bom nisso. Vejam os retratos. Naquele primeiro, notem aquele senhor de barba branca sentado no meio de nós, os filhos, segurando uma bengala e com expressão sorridente. Ele está morto.

Conde e Bira se levantaram ao mesmo tempo para ver mais de perto. Parecia vivinho e com saúde.

— Benício fez esse trabalho aí. Assim como o de mamãe, de vovó e de Aristóteles.

Procuraram Aristóteles no último retrato, mas só haviam três mulheres.

— Aristóteles é o gato que está no meu colo com os olhos brilhantes e o rabo enrolado para cima.

— Excelente trabalho, Dona Edite – Elogiou, sabendo o que viria a seguir.

— Preciso que vocês preparem o corpo do meu irmão para um retrato nesse sofá aí. O corpo está aí no quarto de visitas. Enrolei em várias redes e cobri com gelo. Não há tempo de enviá-lo para a capital por conta da rigidez cadavérica, como o senhor já deve supor.

Lembrando da quantidade de defuntos que já tinham colocado as nádegas ali, fizeram menção de sentar novamente, mas logo desistiram.

— Bom, não somos tão bons quanto ele, mas posso garantir que a senhora terá o seu retrato. Claro que essas coisas não são baratas, e o corpo...o seu irmão já tem algumas horas de morto não é?

— Há apenas duas horas. Ele agonizou muito, não conseguiria chegar no hospital. Preferi que ficasse. Era o que ele faria se pudesse me dizer. Dinheiro não é empecilho – A frase foi dita com firmeza, e ele julgava que empecilho devia ser algo parecido com “problema”.

Foram para os fundos da casa, num cômodo onde repousava o morto. A despeito de algumas marcas roxas na cabeça e ombros devido ao trauma do acidente, estava bem preservado.

 - Preciso que vocês deem um jeito de me devolver o corpo, vestido e maquiado, amanhã, para que ele fique de pé, atrás do sofá. Tiramos o retrato e em seguida o enterramos. Sei que não ficará igual a um serviço da capital, mas só quero perpetuar a tradição familiar.

Ao invés de se sentir ofendido, Conde viu a oportunidade de ganhar mais dinheiro ali com um morto do que Bento com três.

— Ainda bem que trouxemos um caixão de amostra – Falou sem lembrar da metade da vaca que estava cozinhando no calor ali dentro.

 - Vocês podem levar ele do jeito que está e me consigam o melhor caixão que tiverem. Não demorem a devolvê-lo por favor. E tragam a conta que pagarei em dinheiro.

Colocaram o caixão já ocupado no banco traseiro e Benício no porta malas, pegando a estrada para começar o milagre. Passaram pelo local do acidente levantando os vidros do carro por instinto, para o caso de realmente ter um leão à solta. Nunca tinham embalsamado nem um rato. Mas a oportunidade falava mais alto. E foi com esse senso de oportunismo que ele entregou a encomenda ao sócio.

— Não sei se tenho formol o suficiente.

— Turíbio pode conseguir.

— Não temos tempo. Logo ele vai enrijecer. Preciso tirar todo o líquido dele e injetar formaldeído. Farei o que puder. Trouxe as roupas?

— Que merda! Sabia que tinha esquecido de alguma coisa. Podia voltar lá, mas ela ia pensar que somos incompetentes – Olhou para Nego Tito e disse – Entre no quarto de Cândida e traga o paletó completo do advogado. Aquele filho de uma égua não vai precisar. É do mesmo tamanho do defunto.

Com a noite chegando, tinha que assumir o seu bar. Sacino quebrava o galho na sua ausência, mas as meninas se sentiam mais seguras quando ele estava por perto. Era o início da folga de dois dias, e os homens que trabalhavam durante a semana nas fazendas vizinhas voltavam pra casa pra ver a família e se divertir um pouco. Safira tinha ensaiado um espetáculo de cancã baseado no seu homônimo Francês. Reclamava que não tinha verba para comprar os costumes que poderiam dar um ar mais profissional à apresentação.

— Pra quê roupa? Pra quê roupa? Quanto menos roupa, maior o faturamento!

Como estavam desfalcadas de Cândida, ela também subiria no palco. Ele checou as geladeiras cheias de cerveja e os tonéis de pinga. Havia limão, umbu, carambola e manga para acompanhar o aguardente, e umas tiras de linguiça defumada para petiscar, fornecidas pela venda de Derico. As meninas completariam a refeição dos esfomeados que tinham algum dinheiro no bolso. Mandou dar um banho em Muriti e Balduíno para servirem às mesas, enquanto Nego Tito e Bira ficavam como seguranças no ambiente. Sacino, por sua vez, ficava saltitando atrás do balcão servindo as bebidas.

O primeiro cliente foi Boca de Ouro, acompanhado de Rubão, seu segurança. Apesar de saber que teria prejuízo com aquela mesa, que certamente poria a despesa na conta do negócio que estavam fazendo, vislumbrava o lucro mais adiante. Deixaria o defunto pra Tuti embalsamar e daria um pulo na fazenda de Sinhá pra ver a quantas andava a colheita.

Aos poucos o bar foi sendo ocupado pelas caras de sempre. Duílio, que andava com o peito inchado como se fosse gente importante, mas era só um pau mandado do Coronel Tadeu; Zé Aquino, irmão de Damião serralheiro, que veio lhe dar o recado que os bancos da igreja ficariam prontos em alguns dias; alguns amigos de Bira; uns gatos pingados vindos de Amparo, atrás de discrição; e uma pequena turma da terceira idade que saia da igreja direto pra lá, avisando em casa que iam jogar baralho. Só esqueciam de dizer que era no puteiro. E apostado.

— Sacino, você conhece aquele rapaz? – Inquiriu, apontando para um tipo franzino, com um maxilar pronunciado e olhos fundos, que entrou um pouco perdido no lugar a meia luz.

— Vi chegando no pau de arara de Cabrueira agora de tarde. Quem estava na praça esperando por ele foi Tancinha, filha de Dona Mocinha.

— Então é desse cabra feio aí que ela tá fazendo tanta questão. Tenho que levantar a ficha dele. Aqui nesse pedaço de chão eu tenho que saber quem entra e quem sai, quem nasce e quem morre – Vaticinou, dando a volta no balcão e indo de encontro ao moço.

— Boa noite cidadão. Uma mesa pra tomar um trago de uma pinga artesanal, enquanto aprecia as nossas meninas dançarem?

— Sim, por favor, gostaria sim – Retrucou meio sem jeito, típico de quem estava perdido.

— O moço é de onde? 

— Sou da capital. Vim comprar flores aqui pra vender lá.

— Ah! O moço é do ramo funerário?

— Não, não. Sou só um vendedor de flores. Vendo nos bares da cidade, para casais apaixonados.

— Aqui as únicas flores que tenho pra te vender são aquelas ali – Disse, acomodando o rapaz numa mesa, apontando com os beiços para o palco, justo no momento em que a música começa e suas meninas abrem a noite sob aplausos, assovios e alguns apupos mais assanhados.

— Vim só beber e comer alguma coisa, e saber se tem algum quarto vazio.

— A gente ajeita alguma coisa pra você. Sacino, traga a cerveja da casa pro cliente aqui e uma dose da nossa “pinga fogo”!

Jogou um pouco de conversa fora com os clientes mais chegados até chegar na mesa de Boca de Ouro. A jazida que o homem tinha dentro da boca refletia as luzes do teto enquanto falava.

— Quero ver se você ajeita tudo no menor tempo possível. Ainda tenho que beneficiar as folhas para colocar o produto no mercado.

— Amanhã mesmo vou fiscalizar o trabalho dos meus homens e se precisar acelerar a colheita, contrato mais uns braços pra ajudar.

O traficante olhou satisfeito seu fornecedor de matéria prima e completou – Quem pintou aqueles quadros pendurados no meu quarto?

— Mandei colocar aquelas coisas ali pra tapar os buracos no reboco da parede.

— Quem pintou aquilo tem muito talento. Gostaria de negociar?

Parecia que a maré estava virando a seu favor novamente. Fez uma mesura balançando a cabeça para os lados.

— Não. Na verdade tenho muito apreço pelas obras, não estão à venda.

— Que pena. Gostaria de colocar preço em todas elas, são incríveis. Uma coisa contemporânea, meio naïf, com toques surrealistas. O cara entende muito do ofício. Queria muito conhecê-lo.

Conde pensou na cena. Aquela árvore de natal da caatinga, na beira da cova de um macaco, chorando as pitangas com uma tela em branco nas mãos. “Pinte só mais este, por favor!”

Não havia nenhum resquício de brincadeira naquela proposta.

— Vou consultar a minha esposa a respeito da venda. Quem sabe se o valor anima a gente a se desfazer de algo que nos traz tantas lembranças boas! – Mentiu, achando que o seu nariz adunco havia crescido mais um pouco. Pediu licença e foi até os quartos dos fundos. 

Abriu uma brecha da porta e viu Cândida mandando ver em cima de um Benevides exausto com a falta de prática naquele exercício. Tinha que providenciar uma muda de roupa pro salafrário. Assim que estivesse contaminado, colocaria a ampola de penicilina em cima da procuração a ser assinada por ele. Mandaria o Professor Natalino, que lhe devia, fazer uma nos seus termos. Depois que se registrasse no cartório de Cabrueira, liberaria o doutor, rebocando Carmelita de volta pro hospício.

A noite transcorreu sem grandes problemas, exceto um dos velhos da igreja que se urinou quando Esmeralda sentou no seu colo, e Safira reclamando do tamanho do instrumento de Rubão, o segurança do traficante. Ganhou do patrão uma pomada de aroeira para ela passar nas partes.

— Aquele miserável acabou comigo. Se amanhã ele me procurar de novo, vou inventar que tô de coceira – Disse, tomando uma dose de uísque cedida pelo patrão, sentada num banco do balcão, com o bar vazio e as portas baixas.

— Antes de você dormir, vá ver Cândida. Bote aquele infeliz pra dormir no chão do quarto vazio. O outro eu aluguei para um rapaz da capital - Ordenou, enquanto puxava a fumaça de um dos seus charutos caros. Só sai de lá quando tiver mijando pus.

Ela deu uma tragada no seu cigarro enquanto mexia a bebida no copo com a ponta da unha, soltou a fumaça em direção ao teto e contemplou – Você acha que ninguém vem atrás dele? Dessa ave agourenta?

— Se entrar aqui na minha cidade, vai ter o mesmo destino.

— Cândida, a arma perfeita! – Desdenhou.

— Tenho tirado leite de pedra. Lucrar com uma gonorreia é para poucos.

— Verdade. Vou tomar um banho e ver as meninas. Amanhã tem mais. Só preciso dar um descanso a madame aqui – Falou, dando um tapa na virilha e pegando a pomada no balcão, rebolando o corpo coberto por um maiô devasso cheio de balangandãs coloridos. Conde tinha uma bunda daquelas em casa, portanto não lhe chamava tanta atenção.

Apagou o charuto na metade e o guardou numa caixa de madeira encerada. Pensou em passar na funerária para ver o trabalho de Tuti, mas estava cansado. Dispensou seus homens e foi pra casa. Ainda distante, avistou aquele troço na sua porta, às três da madrugada. As velas em círculo bruxuleavam, cercando uma galinha preta que sangrava pelo pescoço. Era uma macumba. Pensou ter visto a galinha se mexer no meio do bozó, e logo caiu fora dali, entrando em casa pela porta dos fundos, deixando de ver quem estava dormindo no seu sofá.


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