TARTARÚ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 11
Capítulo 11




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Com a mente já desanuviando, começou a cumprir a sua penitência ainda no carro, tentando dissipar da cabeça a visão de Janjão em cima de Lulu, com o padre atarantado sem saber o que fazer. Nada poderia ser feito para solapar o instinto animal. A não ser arrancando-lhe de vez os bagos. Quando já ia pelo sexto pai nosso, a imagem do pastor alemão engalanado como um coroinha subindo no altar com o turíbulo na boca, logo no início da missa, espalhando o fumacê do incenso sem saber se tossia ou cumpria o seu dever, o fez interromper a expiação. Concluiria em um lugar mais calmo. Pisando os pés na calçada do bar, sabia que ali não seria esse lugar.

 

— Sêo Conde, é pro senhor – Disse Cândida, lhe estendendo o telefone, enquanto meia dúzia esperavam na fila de cabeça baixa para não encará-lo e não confundirem seus rostos cansados, com impaciência com “o homem”.

 

— Cadê minha filha seu traste?

— Boa Tarde ainda se usa, Corina. Os ares da capital não andam lhe fazendo bem?

— O único bem que você me faz é se separar de Donana. Não sei que diabos ela viu num rebotalho humano como você.

— Seus elogios sempre me encantam, mas o meu tempo é valioso demais para ouvir o chacoalhar do seu rabo murcho, sogra querida.

— Me chamando de cobra, Francisco?

— Não faria isso com as coitadinhas. Sua filha já deve tá batendo na tua porta. Espero que ela não volte envenenada – E bateu o telefone no gancho com alarido, assustando Duílio, logo atrás, que estava ensaiando em voz alta o que dizer pro Coronel Tadeu, sobre outro cavalo morto na sua fazenda.

— Foi cobra? – Perguntou Conde, que não pode deixar de ouvir o monólogo.

— O veterinário examinou mas disse o nome de umas doenças que num entendi. Me mandou dizer pro patrão, mas não decorei na mente aqueles nomes esquisitos. Vou dizer que foi cobra mermo.

 

Sua raiva de veterinários só crescia. Pra que enfeitar as falas com aquela gente simples? O povo entendia de dor nos quartos, espinhela caída, queimação no bucho, quebrante. Bicho não falava, então não precisava enfeitar, mostrar sabedoria, superioridade. Síncope cardíaca era só um coração que tinha se estrebuchado e pronto!

 

Entrou no escritório com cuidado para não assustar sua hóspede, que entrava naquele momento pela janela com galhos secos para completar um ninho em fase inicial de construção. Pensou em mandar Sacino arrancar umas touceiras de capim e trazer, mas a ave podia não gostar da intromissão na escolha do material. Voou para dentro e examinou o ovo como se a ter certeza que estava intacto. Lançou-lhe um olhar recriminatório e começou a trabalhar, no exato instante em que se assustou com o movimento brusco do cuco, que alardeava com estridência. Conde chegou a mover a arma do coldre, mas achou que aquela atitude poderia confundir a cabecinha da bichinha.

 

Viu na sua mesa o material de pintura de Juninho. Esticou um papel em branco e abriu as tampas das tintas, colocando um charuto aceso na boca. Seria possível um macaco ter mais talento do que ele? Meio sem jeito começou a pincelar sem pensar muito, uns retângulos dentro do outro, cada um de uma cor diferente até não ter mais espaço para mais um. Levantou a sua obra, ficou de pé, levou-a até próximo da janela, coçou o queixo e cogitou perguntar a alguém o que enxergavam ali. Desistiu quando ele mesmo viu. Uma enorme cova com vários níveis. O primeiro amarelo, era a boca sedenta da morte; o segundo, azul, o estômago da besta que mastigaria seus restos pútridos; o terceiro, verde, a sala de espera dos que poderiam seguir para os braços do Senhor, ou cair no pequeno quadrado preto, de onde seriam cagados no esgoto junto com os seus desafetos redivivos.

 

Acordou do seu transe com a cabeça de Safira sacudindo uma chave.

— Ele entrou assim mesmo. Está lá dentro. Quer vir?

Demorou-se um pouco a entender do que se tratava, e guardando o papel numa gaveta, saiu.

— A chave continua comigo, mas ele está no quarto.

— Alguém vai precisar me explicar umas coisinhas agora mesmo. O último que tive que arrombar uma porta pra entrar, hoje tá comendo capim pela raiz - Disse, contrariado.

 

Tomou uma distância curta, pôs o ombro na frente, e parte em direção a porta, que se abre de súbito, puxada pelo Romeu. O rapaz viu Conde passar que nem um foguete, parando com estrépito na parede oposta.

 

— Era só bater na porta sêo Conde. Tenho feito isso por todo o dia, abrir portas – Disse, em uma espécie de transe, fazendo uma mímica no ar, como se tivesse nadando.

Recuperando-se do inesperado, analisou o estado geral do rapaz e viu que ele não estava em si. Será que estavam todos sifilíticos ali? 

— Você tá doido homem? Do que é que você tá falando? Afinal que diabos são essas flores estraçalhadas aí na mesa. Não eram pra vender?

— Sim, mas não vendo exatamente as flores. Vendo o leite que elas me dão. São como vacas com pétalas, mas enquanto os dos bovinos clareiam o café, esse aqui clareia a mente.

— Safira olhou pro patrão, que estava ficando impaciente, vendo-o agarrar o Romeu pelo pescoço e fazendo-o sentar na cama, quase engasgando o homem.

— Calma, por favor, gasp, gasp! Eu posso explicar!

— Acho bom cabra safado, senão você só vai ver flor em cima do seu caixão!

— Eu extraio um líquido leitoso das papoulas. Deixo secar até virar um pó. Esse pó chamamos de ópio. Um narcótico.

— Esse tal de narcótio quer dizer o quê?

— Narcótico. É uma droga hipnotizante, como o cigarro de epadu.

— Agora entendi. E deve ser caro, eu imagino.

— Muito caro. E proibido também – Revelou, ainda passando pelo processo de alienação, enxergando o quarto povoado de rolos voadores de abrir massa sendo sacudidos na sua direção.

— Isso eu já sabia. Tudo o que não presta e é proibido eu tenho interesse – Aquela frase o levou a pensar se poderia passar o dinheiro falso adiante. Deixou para que Tuti analisasse a questão – Pois você vai me contar tudo tin tin por tin tin sobre o seu negócio, que a partir de agora se chama “nosso”. Assim que eu me der por satisfeito com as suas explicações e tiver certeza que você não tá me escondendo nada, aí viramos sócio, Caso contrário...- Ameaçou, vendo o Romeu de Tancinha protegendo a cabeça com os braços e mãos, vendo os rolos de massa virem pra cima dele.

— Eu conto, eu digo tudo, eu explico qualquer coisa, mas não me batam com isso – Implorou, encolhido num canto da cama, com a cabeça baixa. Apontando para o teto num frenesi alucinado.

— Esse troço parece ser bom mesmo hein, Safira?

A mulher que estava mais acostumada com taras de homens velhos fingindo infantilidade, balbuciando gugu dádá e mamando nos seus peitos, e ainda ganhava por isso, jogou a toalha.

— Perto disso aí, aquele cigarrinho que a gente fuma de vez em quando, parece xarope de groselha – Disse, vendo o homem pegar no sono em posição fetal.

— Passe o ferrolho pelo lado de fora. Mais um que vai ficar em cativeiro até começar a fazer dinheiro. Traga comida e água – Ordenou, se abaixando pra pegar um pé de cabra, com o que ele imaginou que a porta fora aberta. Se a vontade de usar aquele troço fez ele abrir aquela porta sem chave, então o que ele seria capaz de falar quando sentisse muita falta.

 

Lembrou de limpar a mesa e levar os despojos da droga para o seu escritório. Passou no quarto de Benevides e abriu um pouco a porta.

— Já apreciaram a minha deserção, capitão? – Perguntou, debaixo da cama, colocando somente a cabeça pra fora – Que língua vocês falam por lá? Me dê um disco pra eu tocar o hino do seu país, quero aprender. Serei um patriota – Disse, batendo uma continência desajeitada.

 

O homem estava ficando no couro e no osso. A comida trazida se perdia no prato já coberto de baratas. Ele notou que o advogado percebera seu olhar de reprovação.

— Em tempos difíceis temos que repartir o pão – Baixava a voz, com os olhos arregalados, observando os insetos passearem sobre a sua refeição.

 

Conde saiu sem muita esperança que aquele traste conseguisse assinar o seu nome, ou até mesmo que lembrasse de como se chamou um dia. Seu hotel estava virando um hospício. Entrou no quarto onde Boca de Ouro ficou hospedado e viu as paredes nuas. O filho da mãe tinha roubado os quadros do macaco. Pensou se cobria ou não aquele orifício no reboco com a sua obra dos retângulos. Ou colaria as notas falsas até cobrir cada centímetro daquela parede para não deixar esfriar a vontade de se vingar. Ficou satisfeito com a ideia de decoração exótica e foi ver o filho. Bateu na porta de Esmeralda.

— Já vai!

Ele era um homem experiente o suficiente pra saber que aquele “já vai” dito de uma maneira abrupta com barulhos ao fundo o fazia acreditar que tinha gato na tuba. A porta se abriu com a moça ainda subindo a alça do vestido. A cara de Juninho era de um pinto saltitando no lixo. O menino se virou para a moça colocando um dedo na boca e fazendo um chiado. Ela ficou sem graça, mas logo recuperou o seu jogo de cintura, dizendo: - Não dá nadinha de trabalho, patrão.

 

— Se o que achava que eles tavam fazendo era sacanagem, e ela não encarava como trabalho, era sinal que não seria cobrado pelas aulas. Deu um sorriso maroto e disse pro filho que podia ficar mais um pouco com a sua cuidadora, enquanto ele mesmo cuidava de umas coisas antes de irem pra casa.

 

Como não abria o bar no início da semana, Safira, Cândida e Bernadete ensaiavam um número de dança intercalado com piadas curtas, sob os olhares dos seus homens, que estavam ali para receber seus pagamentos e os bônus pelos extras. 

 

Sacino, por vender trinta por cento a mais de bebidas no bar: - Patrão, andei fazendo uns cochichos na saída da igreja. Falei do carteado, das coxas das meninas e da melhor cachaça de alambique da região. Não tem erro promover jogo, mulé e pinga!

— Só não deixe cair nos ouvidos do padre, senão ele não batiza Juninho e aumenta a minha penitência na próxima confissão.

 

Bira, por arrecadar quase o dobro das esmolas na semana, em relação à última feira de Cabrueira.

— Depois que o circo for embora, já tô pensando em botar os homens na porta da igreja, é a mesma coisa, com a diferença que no centro do picadeiro têm um padre e não um palhaço – Explicou o homem com a amargura conhecida quando falavam de religião. Sua avó era uma beata ferrenha que tinha morrido de cólera, acreditando que o remédio para a sua enfermidade era a fé.

 

Nego Tito, por ter derrubado em um dia as oito jaqueiras que virariam os bancos da igreja na serraria de Damião, e por ter feito o Fusca de Benevides funcionar, o que era um carro a mais na sua frota. O toco de baobá era um azougue nessas matérias. Falava pouco e sabia que o patrão era justo com quem cumpria bem o seu ofício.

 

Depois as meninas vieram receber o seu quinhão, lembrando os nomes de todos que tinham levado pro quarto para o chefe calcular. Deixava o controle nas mãos delas. A diversão estava no fato de ouvir os detalhes de alcova.

— Quando ele arriou as calças ficou tão preocupado onde guardaria a arma que a outra pistola quase não funcionou – Ria, Bernadete, de Bento, que de vez em quando aparecia, quase no fim do expediente, quando os frequentadores já estavam bêbados e julgava que a chance de lembrarem dele era muito pequena.

— Mas eu nem sabia que ele andava armado.

— Acho que só bota na cintura quando vêm pra cá. Pensa que aquilo deixa ele mais macho, mas duvido que saiba usar. Quase não sabe usar a que ele tem no meio das pernas – Disse, fazendo o chefe rir. Só assim afastava um pouco as tribulações.

 

Cada vez mais o escritório se tornava um oásis, e a sua cadeira ia ficando confortável ao ponto de lhe chamar para um cochilo. Mas a sua curiosidade com relação àquela flor era perturbadora de tal maneira, que polvilhou um punhado daquele pó no seu cachimbo, esticou as pernas por cima da mesa, e aproveitou a penumbra do cair da tarde para tentar entender o que era todo aquele alvoroço do Romeu por causa daquele rapé albino.

 

Por um momento, realizou que não tinha passado o trinco na porta, mas tampouco conseguiu mover qualquer músculo atrás do intento, apesar de insistir que não era de bom tom fazer qualquer estranho participar das suas experiências sensoriais. Fitou a porta por um longo tempo e logo transformou-a em uma tampa de caixão. Ele a via pelo lado de dentro. Estava apertado. Suas pernas não podiam se abrir que logo tocavam nas bordas da madeira. O ar era rarefeito e pensou ter ouvido algo atrás de si.

— Francisco o que deu na tua cabeça de morrer antes de mim? – Era Donana, chorando logo acima da sua cova – Você deixou muitas coisas por serem ditas. Verdades doloridas. Com quem vou desabafar agora? Com mamãe?

Ele queria consolá-la e ao mesmo tempo saber o que não teria tido tempo de ouvir saindo da boca da esposa. Mas mortos não falavam.

— Agora que só resta de você a carne que logo ficará podre, posso dizer tudo o que sempre tive vontade e você nunca me deu oportunidade. Assim tenho certeza de que não vou ser interrompida, como você sempre fez para não ouvir a verdade.

Ele apurava tanto os ouvidos, que o rastejar dos vermes que chegavam para lhe banquetear atrapalhavam a sintonia.

— Vou começar dizendo que mainha tinha razões para não gostar de você e lhe fazer chupar aqueles limões pra te dar a minha mão. Antes de me apaixonar por você eu falava mal da sua pessoa o tempo todo em casa. Um paspalho que dizia um palavrão a cada frase na escola. Você ficou famoso por aprender o que não prestava antes dos outros idiotas, e assim tinha chance de ensinar eles e ganhar esse ar superior. Até eu caí na sua lábia! Aqueles limões foram pra desinfetar a sua boca porca que me fez apanhar várias vezes quando repetia inocente as suas bobagens, como um papagaio treinado. Mas quanto mais aquele cinto de couro velho marcava as minhas costelas, mais eu te queria. E de repente me vi uma seguidora da tua seita. Como Benedita.

 

A luz que entrava pelas frestas da tampa bruxuleava, e uma pingueira ganhava contornos de uma vazamento mais sério quando Donana passou a chorar.

— Sabia que você fala alto quando sonha? A maioria das vezes é com a sua mãe. Parei de insistir em entrar na igreja com você quando soube pela sua boca o quanto ela me queria bem, não é? Cair morta depois de dizer o “sim” no altar?

Ele sentia o cheiro do cio dela, mas não teve uma ereção. Encostou as falanges descarnadas no baixo ventre e só sentiu um oco. Tentou bater na tampa, mas não saiu da intenção. Viu uma mulher de véu negro, de semblante triste, entrando no seu hotel, cruzando o salão movimentado, cheio de homens envoltos numa cortina de fumaça de cigarro, barulhos de gargalhadas embebidas pelo álcool, dançarinas no palco borrifando progesterona com seus movimentos sensuais. A mulher entrava nas dependências do hotel procurando uma porta. Olhava todas atentamente, até ficar satisfeita com uma. Deu uma leve batida e um homem elegante, a abriu com uma mesura cordial, deixando-a entrar. Logo revelou um gramofone, onde pousou uma agulha que emanou os primeiros acordes de uma valsa.

 

Da mandíbula escancarada da sua caveira não saia nenhum som, e antes de se conformar com a sua condição cadáver, ainda teve tempo de ver algo arrebentar a madeira do caixão e uma mão entrar por um buraco lateral.

— Você ainda têm a mim, filho.

 

Acordou do transe, com a rolinha a sobrevoar desesperada a sua cabeça, enquanto cinzas do cachimbo iniciavam um princípio de incêndio sobre um compêndio na sua mesa que discorria algo sobre a condição humana. Estapeou o calhamaço de papel com as mãos, e ainda com as pupilas dilatadas, olhou a porta se abrir. Ao invés de Donana em roupas militares, e uma granada sem pino presa à boca, Juninho entrou sem sentir o cheiro da fumaça de papel queimado.

— Painho, quero Esmeralda pra mim.

O homem sacudiu a cabeça, recolheu os pés da mesa, buscando a rolinha que lhe excomungava pelo fogo, e escondendo os restos do pó mágico na mesma gaveta onde guardava coisas que não queria mais ver por um bom tempo. Embaixo do prato com o ópio estavam os retângulos coloridos pintados. E embaixo deste, um retrato da sua mãe, levando-o a Cabrueira para o enterro da sua avó. Mesmo que ela tenha feito de tudo para suavizar sua relação com a morte, levando-o para tomar sorvete e para o circo, ainda assim, teve que enfrentar a visão de alguém com o mesmo nariz adunco que possuía, frio e fedido, descer a um buraco, de onde nunca mais sairia. O sorvete fora antes do féretro. Logo o chocolate virou tamarindo no seu palato. E o circo fora depois. Logo, o que sua mãe achava que eram lágrimas de um riso solto pelo pum de um palhaço, era na verdade uma lágrima de saudade pelo fedor daquela que sentiria saudades. 

 

Naquela noite, rezou os pai nossos restantes da penitência, não sem antes esquentar um leite e caprichar na canela pra que Juninho tivesse uma boa noite de sono, e ele pudesse aplacar a tormenta de saudades que sentia no seu coração confuso.


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