Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 53
Capítulo LIII




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Matias virou a página do livro, mas retrocedendo ao invés de prosseguir. Precisava reler mais de uma vez o mesmo parágrafo e não porque estivesse com sono, ainda que fosse algum horário depois da uma da manhã, pelo que o relógio informara. A questão é que não podia deixar de se preocupar com os Gutiérrez. 

Irina sempre lhe dissera sobre como eram aquelas noite com Ezequiel, os delírios, a febre, o corre-corre, a vigília à cabeceira dele e o medo de que ele talvez não fosse viver para ver mais um amanhecer. Daquela vez, pudera sentir ao menos um pouquinho do que ela passara em tantas noites ao longo dos últimos anos. 

Gostava muito de Ezequiel, arriscava dizer que poderiam desenvolver um belo laço de amizade, sem considerar que em breve seriam cunhados. Ele era alguém agradável, com muito a se conversar ― quando se conseguia deixá-lo à vontade ― e uma alma gentil. Adoraria poder conhecê-lo mais, porém, ao considerar a brevíssima experiência que tivera naquela noite... Entendia os temores de Irina. E sequer podia imaginar como seria viver com eles em seus ombros por tanto tempo. 

Leu o parágrafo outra vez e teve certeza que ouviu alguma agitação vinda do corredor. Esperou por alguns instantes, vendo uma luz passar por baixo da porta e ir se afastando, junto de passos não tão suaves para uma madrugada. Fechou o livro e marcou a página, deixando-o sobre sua mesa de cabeceira e tirando de lá a vela. Em posse dela, abriu a porta e viu o corredor vazio. 

Quando ainda pensava se avançaria para ver se encontrava alguém ou se retornaria para o quarto, seu pai veio apressado pelo corredor. 

― O que aconteceu? ― ele questionou, andando alguns passos em direção à porta aberta do quarto do pai. 

― Antônio está lá embaixo, Ezequiel piorou ― Leônidas respondeu e sumiu para dentro de seu quarto em trajes de dormir. 

Matias sequer hesitou em sua próxima ação, anunciando para o pai que iria junto. 

 

 

A viagem para a casa dos Gutiérrez foi tão rápida que a única coisa que de fato tiveram tempo foi para ouvir um relato de Antônio sobre o estado do filho. A febre de Ezequiel havia cedido por cerca de mais de uma hora e ele adormecera, contudo, a situação voltara a piorar com a junção de delírios e espasmos do corpo. O último, segundo o Sr. Gutiérrez, nunca havia sido presenciado antes.

A carruagem dos Gutiérrez parou e, no mesmo instante, os homens foram pulando um atrás do outro, Matias tentando acompanhar os passos dos dois bruxos à sua frente. As portas de entrada foram escancaradas quando ainda subiam os degraus da frente e não pararam até alcançarem o segundo andar. Isaac e a mãe estavam parados em frente à porta do quarto de Ezequiel, confabulando entre si.

― Dr. Salazarte, que tamanha gentileza... ― a mulher começou, enrolada em um robe sobre as roupas de dormir.

Beatriz foi solenemente ignorada e Isaac abriu a porta do quarto, deixando os três recém-chegados entrarem. O filho mais velho dos Gutiérrez permaneceu sob o batente e Leônidas seguiu para a cama do doente, que dizia palavras que pareciam desconexas nas frases que formavam. Estevão abraçava a irmã ao pé da cama e Matias ocupou o outro lado dela, deixando que Antônio seguisse o médico para a lateral da cama.

― Saiam todos ― o Dr. Salazarte ordenou.

Isaac prontamente guiou a mãe para longe dali. Matias passou seu braço bom pelas costas da noiva e olhou para Estevão, numa muda pergunta se a guiariam para fora.

― Eu vou ficar ― ela respondeu pelo irmão. ― Eu sempre fico. 

— Fiquem o menos possível de pessoas no quarto — Leônidas orientou, sentando-se à beira da cama. 

Antônio olhou para os três. Estava claro que ele não queria sair dali. 

— Eu vou dar uma volta lá fora enquanto isso — Estevão murmurou para os noivos —, volto aqui assim que puder — finalizou com um beijo na bochecha da irmã. — Cuide dela, Matias, por favor — dirigiu-se para o cunhado e, após trocar um aceno de cabeça com o pai, afastou-se e saiu do quarto, fechando a porta no processo. 

Usando o braço bom, Salazarte puxou Irina mais contra si. 

— Ele vai melhorar. — Deu um beijo demorado em seu rosto e manteve-se perto dela para continuar a sussurrar-lhe no ouvido. — Vamos fazer o possível para isso. 

O Dr. Salazarte segurou o pulso de Ezequiel e puxou o pano úmido com o preparado e suor para sentir a temperatura. Balançou a cabeça, parecendo entrar brevemente em seu estado de conversar consigo mesmo. 

— Tentei todos os preparados que conheço para amenizar o sofrimento dele, Antônio — o médico informou para o pai do rapaz, que assistia à cena passando nervosamente a mão sobre o queixo liso. — Não há mais nada que possamos fazer. 

O corpo de Ezequiel espamou outra vez e Leônidas o segurou. 

— Tem de haver algo que possa ser feito! — Irina exclamou e Matias tentou contê-la em vão, pois ela caminhou até parar às costas do médico. — A Terra é a culpada por isso estar acontecendo, a magia Dela tem que ser capaz de fazer alguma coisa! 

— Eu venho tentado encontrar formas de amenizar os sintomas de seu irmão nesses últimos meses — Leônidas começou a argumentar —, mas é apenas isso que posso oferecer. Não há nada que eu possa fazer enquanto ainda há resquícios da magia da Sombra no sangue de vocês. 

— Não é ele quem Ela deveria levar! — ela estava a ponto de gritar no meio do quarto, o peito subindo e descendo dentro do corpete do mesmo vestido que usara durante o jantar. Matias apressou os passos até ela, mas Antônio já havia alcançado a filha. — Ezequiel é inocente, passou a vida inteira… 

— Cariño mio, Leônidas não tem culpa do que está acontecendo — ele tentou tranquilizá-la, envolvendo-a em um abraço. — Ele irá tentar amenizar os sintomas de seu irmão… 

— E tudo se provará inútil! — Irina explodiu mais uma vez, engolindo uma longa respiração e afundando o rosto contra o ombro do pai. 

Matias a alcançou, fazendo outra proposta próxima ao seu ouvido. 

— Você precisa de um pouco de ar… 

— O javali! — A atenção deles foi trazida para Ezequiel, que outra vez espamou e precisou ser segurado pelo Dr. Salazarte. — O javali retorna à Terra e a garça retornará para debaixo das asas dos seus. 

— Irei tentar produzir mais um preparado para abaixar a febre, mas não há nenhuma garantia de que irá funcionar para alguma coisa — Leônidas explicou, soltando seu paciente e abrindo a valise. — É a única coisa que podemos fazer, além de pedir por ele à Mãe Terra. 

Irina se desvencilhou do pai e do noivo, passando a mão no rosto para secar uma lágrima do canto dos olhos enquanto dava uma risada, que soava um tanto cínica naquele momento. 

— Ela nunca nos ouviu. 

— Leve ela para baixo e tente conversar um pouco, por favor. — Antônio se aproximou do futuro genro e sussurrou-lhe. — Irei ficar aqui com seu pai. 

Matias assentiu e, para cumprir com o orientado, colocou uma mão na curva das costas de Irina, que andava um pouco longe do pé da cama, para guiá-la para longe dali.

― Vamos tomar um pouco de leite quente ― ele sugeriu, retirando a mão das costas dela para tocar na maçaneta ―, podemos trazer um pouco para Ezequiel, quando ele acordar.

― Ele não costuma acordar tão cedo quando isso acontece ― ela respondeu de forma seca, mas deixando-se ser guiada.

Quando a porta foi aberta, Isaac, que estava logo ao lado, sobressaltou-se e Estevão, parado em frente, lentamente ergueu os olhos dos próprios sapatos.

― Como ele está? ― o filho mais velho inquiriu e a mãe foi se aproximando do campo de visão.

― O Dr. Salazarte tentará abaixar a febre, porque Ela não nos permitirá fazer nada além disso ― Irina soltou e passou os braços ao redor de si, abraçando-se. Matias fechou a porta atrás deles e novamente envolveu-lhe os ombros. ― Não há mais preparados que ele possa tentar.

― Mas tem que haver algo em algum lugar... ― Estevão começou.

― Nós sabíamos que essa hora iria chegar ― Isaac o interrompeu. Todos esperavam no escuro do meio da madrugada, sem sequer a mínima chama de uma vela para quebrar a escuridão.

― Pare com isso! ― Estevão desgrudou-se da parede e se aproximou do irmão com apenas dois passos. ― Por que você sempre tem que fazer isso com ela? Não pode ser alguém decente por algumas horas e oferecer um pouco de consolo para sua própria irmã?

― E por que eu esconderia a verdade dela? ― Isaac devolveu no mesmo tom, não aceitando baixar a cabeça para ele. ― Você sabe como Irina prefere ouvir a verdade...

― Querido, não dê ouvidos a ele. ― Beatriz tentou puxá-lo para longe, inutilmente.

Matias foi empurrando Irina para o lado sem nem perceber, temeroso de que poderia ter de intervir entre os irmãos.

― Então por que ficar dando falsas esperanças a ela? ― Isaac continuou, sua voz sobrepujando a da própria mãe.

― Porque é o mínimo que você pode fazer! ― Estevão gritou no meio da escuridão.

Matias soltou a noiva e tocou no ombro do pintor, na intenção de silenciosamente afastá-lo para longe do outro.

― Ela vai terminar destruída se você continuar enchendo a cabeça dela com isso! ― Isaac berrou, erguendo o corpo por um instante na hora da fúria.

Com o volume das vozes, o ruído da porta sendo aberta perto deles sequer foi ouvido.

― Vocês poderiam deixar as brigas para outra hora? ― Antônio colocou a cabeça para fora pela abertura, a voz saindo quase rosnada. ― Leônidas está conseguindo fazer a febre de Ezequiel baixar e ele precisa de paz para descansar.

A porta foi subitamente fechada, da mesma forma que fora aberta, deixando a tensão pairando no ar feito fumaça de pólvora após o disparo de uma pistola. Irina se desvencilhou de Matias para entrar no quarto outra vez e ele a seguiu.


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