Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 51
Capítulo LI




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― Tem certeza de que você está bem? ― Irina perguntou, tentando novamente tocar o rosto do irmão mais novo e vendo-o se afastar dela. 

― Eu estou bem ― Ezequiel respondeu, remexendo-se na cadeira em que estava sentado e indo mais para a ponta. Uma cópia de A Divina Comédia estava aberta em seu colo, sobre a manta que cobria-lhe as pernas, e já tendo sido percorrida metade da jornada pelo inferno, de tanto tempo que ele estava lá. 

Diferente de sua aparência habitual, de quando costumava ficar à vontade em casa com a família, Ezequiel parecia um pequeno lorde em seu conjunto de veludo azul-ciano, os cabelos escuros finalmente domados para o lado e um pouco oleosos com o pó. Provavelmente ordem da mãe, que não queria nada menos que o impecável para receber em sua casa todos os Salazarte que viviam em Tantris. 

Irina e Matias ousavam dizer que ainda era um pouco cedo para realizarem um jantar de oficialização de noivado, afinal, fazia apenas dois dias desde que o caos completo atingira os Salazarte e Matias ainda se recuperava do ferimento ― que quase a fizera ter um colapso ao vê-lo sangrando e desmaiando na sua frente ―, porém Beatriz conseguira organizar o jantar entre as duas famílias em tempo recorde, tendo provavelmente boa parte dele já arquitetado, e, segundo seu noivo lhe contara da última vez em que se viram, era típico do pai usar ocasiões como aquelas para fingir que estava tudo bem. Quem diria que Leônidas e Beatriz teriam algo em comum...

― Será que está quase na hora deles chegarem? ― Ezequiel questionou, tentando desviar o assunto de si. 

― Acredito que sim... ― Aproveitando-se do momento em que ele voltou novamente os olhos para o livro, ela colocou a mão em sua bochecha. Estava um pouco mais quente do que esperava. E Ezequiel um pouco mais pálido do que o normal, parecendo um anjo feito em mármore com sua beleza quase doentia. ― Você está com febre. 

― Eu tomei um pouco do último preparado do Dr. Salazarte antes de descer, deve começar a fazer efeito logo mais ― ele retorquiu, erguendo os olhos escuros para a irmã. ― Não quero estragar a sua noite. 

― É a sua saúde...

― E é o seu jantar de noivado, Irina! ― Ezequiel a interrompeu, erguendo a voz no meio da biblioteca onde apenas os livros os assistiam das várias prateleiras. ― Você e o Matias merecem e não vou tirar isso de vocês. 

Ela suspirou, deslizando as costas da mão na bochecha do irmão em um carinho. Ainda numa temperatura que a deixava preocupada. 

Surpreendentemente, Ezequiel reagira bem à notícia que o pai trouxera, de que a doença que o afligia era fruto de uma maldição. Ele podia tentar suavizar, dizendo que se sentia um personagem de uma história de ficção, de uma tragédia macabra e de que era um alívio finalmente entender o que se passava com ele, porém... Irina e Antônio sabiam a verdade. E o comportamento ainda mais taciturno dele evidenciava isso. 

Beatriz continuava a rir e tratar tudo aquilo como uma loucura, enquanto Isaac parecia enfrentar uma briga interna entre seu lado cético e o que queria acreditar que aquela história era verdade, e Estevão fora o que melhor recebera a notícia, pois já tinha consciência de que possuía uma maldição em seu sangue. E o único que não planejava formar uma família. 

Quanto a Irina, o pensamento ainda era difícil de aceitar. Talvez nunca conseguisse, e tudo que restava era conviver com aquilo. E com o medo crescente de que o irmão poderia partir a qualquer momento. 

― Poderíamos remarcar, se você não estiver se sentindo bem ― ela tentou argumentar ―, tenho certeza que os Salazarte compreenderiam. 

― Eu não vou tirar isso de você ― ele insistiu, sequer parecendo o mesmo Ezequiel com aquela expressão séria demais. ― E não vou partir com você após o seu casamento, é melhor assim. 

Irina suspirou, deixando sua mão cair para o braço da cadeira dele. Quem diria que teria um de seus raros desentendimentos com Ezequiel justo naquela noite...

― Nosso pai não pode ficar tanto tempo em casa e não quero deixar você sozinho com os dois.

― E eu não quero atrapalhar sua vida de casada! ― ele exclamou, sem querer fechando o livro em seu colo sem marcar a página. ― É o momento de você ser feliz, não de continuar cuidando de um moribundo. ― Ela abriu a boca, indignada com o que ouvira dele. ― Você sabe que isso é verdade. E nenhuma mulher se mudaria para a casa do marido com o irmão mais novo apoiado no braço. 

― Eu não vou deixar você aqui! ― ela quase gritou em desespero. 

― E eu não vou embora com você!

Interrompendo a discussão, a porta da biblioteca foi aberta, cortando a atenção deles para Isaac, que somente coçava o queixo liso. Ele olhou de um para o outro, em uma análise muda. 

― Nossa mãe mandou chamar os dois. ― Ezequiel de pronto se levantou com o anúncio, deixando livro e cobertor sobre a cadeira e saindo da biblioteca sem sequer olhar para trás. Isaac fitou a irmã com uma pergunta muda e não obteve resposta, tendo que esperá-la dobrar o cobertor e deixar o livro sobre a cadeira vazia enquanto segurava a porta. ― Eu avisei que ele não receberia bem essa notícia.

Irina deixou a biblioteca para trás e partiu pelo corredor junto do irmão mais velho, Ezequiel já estava fora de vista. Ela não se dignou a responder e teve seu passo interrompido pela mão que segurou seu braço.

― Você confia tão pouco em mim ao ponto de sequer querer deixar nosso irmão aos meus cuidados? ― ele inquiriu, soltando-a assim que viu-a virar o rosto em direção.

― Você sabe que eu não conseguiria ficar em paz sem saber como ele está. ― Usou como defesa. No fundo, sabia que estava sendo um tanto egoísta, além de, claro, Isaac estar perfeitamente correto na leitura que fazia de sua atitude. ― Está tudo arranjado para que seja assim.

Irina recomeçou a caminhar e a Isaac coube segui-la.

― Sim, e ainda lhe falta o mais importante, que é nosso irmão concordar com o que você quer fazer. ― Em alguns passos, cruzaram completamente o corredor, alcançando o salão principal onde os empregados ainda corriam de um lado para o outro antes que o tempo para acertar os últimos detalhes acabasse. ― Você sabe que pode visitá-lo sempre que quiser.

― E não vou poder estar aqui quando ele acordar de um pesadelo no meio da noite ou fazer companhia durante o dia, você sabe disso.

― E o que te faz pensar que a vida com os Salazarte será exatamente como você quer?

Irina pressionou os lábios, incomodada com a discussão. Sua salvação para evitar uma exaltação de qualquer uma das partes foi ouvir a voz de Estevão e Beatriz tomando forma conforme se aproximavam da sala de visitas.

― Irina é minha irmã e este é o jantar de noivado dela, ela quem deve decidir se quer que eu saia ou continue aqui, Sra. Gutiérrez ― Estevão ironizou, a voz soando mais encorpada quando alcançaram a porta aberta da sala de visitas.

― E esta é a minha casa, queridinho, e eu estou te dizendo: fora! ― ela gritou e os dois filhos restantes entraram na sala. Ezequiel estava encolhido em um dos sofás, ao lado do pai que assistia a discussão. O rubor de Beatriz era parcialmente escondido pela maquiagem pesada, tornando-a ainda mais chamativa em seu largo vestido rosado, ocupando o centro do cômodo. ― Vá se juntar com a sua laia!

Estevão gargalhou, batendo palmas ainda à porta da sala. Os outros irmãos pararam logo ao lado.

― Não é mesmo uma mãe exemplar? Sorte a minha que sou filho de chocadeira e não preciso mais chamá-la de mãe.

― Estevão ― Antônio se levantou, os olhos escuros fitos nos filhos recém-chegados. Mesmo que o pivô daquela briga também parecesse ter acabado de entrar, pegando a todos de surpresa ―, contenha-se, por favor, esta é a noite de sua irmã e não crie um clima ruim, por ela. ― Ele recebeu um murmúrio de “desculpe” e, passando um braço pelo ombro do segundo filho, trouxe-o para mais perto de si. ― E quanto a você, Beatriz, lembre-se de que Estevão também é seu filho e continua fazendo parte dessa família, quer você queira ou não.

Isaac passou por eles e foi em direção à mãe, tentando fazê-la se sentar, algo que conseguiu com algum esforço.

― Ele é seu filho, Antônio, não meu. Não foi isso que ele mesmo acabou de dizer? ― ela soltou cheia de sarcasmo, liberando suas lamentações sobre o filho mais velho ao seu lado.

Antônio soltou Estevão, recebendo-o com um abraço.

― Fico feliz em vê-lo aqui ― disse ao se soltarem.

― Eu também, pai ― Estevão retorquiu com um sorriso.

Os olhares dos dois se voltaram para Irina, ainda parada em frente à porta como espectadora da cena. Antônio a interceptou antes que partisse na direção de Ezequiel.

― Você está ainda mais linda essa noite, cariño mio. ― O pai depositou um beijo em sua bochecha.

― Nisso eu concordo plenamente ― Estevão se intrometeu rindo e puxou-a para um abraço rápido. ― Matias é um sortudo desgraçado por tê-la como esposa. ― O pai o repreendeu com um “shh” pela linguagem. ― Mas eu sequer disse um palavrão, estou me contendo.

― É melhor que fiquemos atentos em Ezequiel essa noite ― Irina informou, finalmente manifestando-se com palavras. ― Ele estava com um pouco de febre antes de virmos para cá.

Antônio virou o rosto na direção do filho caçula, que os assistia encolhido no sofá. Ao lado, Beatriz ainda dava toda sua atenção a Isaac.

― Os Salazarte acabam de chegar. ― O mordomo veio para anunciar.

― E o que está fazendo aqui que não está os recebendo? ― Beatriz se pôs de pé, afofando o tecido que amassou quando sentou-se e caminhando para perto da porta. ― Vá logo, homem! ― Ao vê-lo se afastar, ainda gritou uma última vez. ― E certifique-se de que o jantar seja servido daqui a cinco minutos. Não quero deixá-los esperando demais ― declarou para ninguém em especial e os três parados ao lado da porta foram obrigados a encaminhar-se mais para dentro do cômodo. 

Isaac havia pulado para o assento ao lado de Ezequiel, com quem iniciara uma conversa. O irmão mais novo ainda parecia alheio e Irina teve qualquer aproximação interrompida pela chegada dos convidados. 

Beatriz iniciou com uma recepção efusiva, cumprimentando a cada um dos membros da família Salazarte e, após Antônio guiar as apresentações dos membros de sua família ― e citando Estevão, que acenou para as garotas Salazarte quando seu nome foi mencionado, para desespero de Beatriz, que conteve a fúria muito bem ―, o grupo dividiu-se em grupos menores para conversas. 

Antônio e Leônidas ficaram próximos a uma das janelas ― em um diálogo que Irina poderia supor sobre o que era, principalmente ao julgar a expressão sisuda do pai ―, Beatriz guiou as garotas para o outro sofá, iniciando um falatório interminável, para pavor de todos os quatro que a ouviam ― Matilda tensionava a mandíbula de um jeito quase preocupante, sequer disfarçando seu descontentamento ― e Matias veio para perto de Irina e Estevão. Os dois bruxos trocaram um aperto de mão caloroso, já que Matias não estava apto para receber abraços, o braço esquerdo preso em uma tipóia. 

― É um prazer finalmente conhecê-lo, Matias ― Estevão começou ―, porque eu admito que estava curioso para saber quem era o alvo dos meus ciúmes por ficar roubando minhas oportunidades de me provar um cavalheiro valoroso para minha irmã. ― Os dois riram e Irina segurou a risada, o som morrendo antes de sair ao ver Ezequiel ainda encolhido no sofá e o olhar perdido em direção a uma das janelas. Estevão seguiu o olhar dela e, no mesmo instante, pareceu compreender o que se passava. ― Eu vou ficar de olho nele a noite inteira, não se preocupe ― ele sussurrou para ela. ― E temos um médico disponível, caso qualquer coisa aconteça. ― Em seguida, voltou-se para o futuro cunhado com um sorriso. ― Vou deixar os dois sozinhos, porque imagino que mal estejam aguentando ficar longe um do outro de tanta paixão ― finalizou com um riso e um tapinha no ombro bom de Salazarte. 

Os dois assistiram Estevão afastar-se e Matias deu dois passos para o lado, aproximando-se mais da noiva.

― Algum problema com Ezequiel nesta noite? ― ele questionou, provando que ouvira as palavras do pintor. A mão dele imediatamente segurou a dela. 

― Estava com um princípio de febre e preocupo-me que hoje seja uma daquelas noites. ― Ela sentiu sua mão ser afagada e, em um breve instante onde todas as atenções não estavam neles, Matias depositou um rápido beijo em sua bochecha. 

― Deixarei meu pai de sobreaviso. ― Irina voltou o rosto na direção dele no mesmo instante, pronta para contra-argumentar. ― É preciso.

― Obrigada ― ela murmurou, recebendo um sorriso em resposta. Seus lábios responderam com outro e envolveu a mão dele com a sua. ― Como está a dor hoje?

― Perfeitamente tolerável.

― Mesmo? ― ela devolveu com outra pergunta, já tendo identificado que Matias era um pouco como ela, sempre tentando suavizar suas próprias dores e problemas. Físicos ou não. 

― Basta que eu tome cuidado com o ombro e está tudo bem. 

O mordomo apareceu outra vez na porta aberta e as conversas que tomavam o ambiente foram morrendo aos pouquinhos com o aviso de que o jantar estava pronto para ser servido. 

Os minutos que se passaram foram mais amenos do que Irina poderia imaginar, como se todos fossem uma família se encontrando para jantar em uma ocasião especial, como deveria ser. 

Antônio ocupara a cabeceira da mesa, Beatriz a cadeira à sua direita e Leônidas a da esquerda, deixando os filhos espalhados em seus assentos e Matias à sua frente. Os assuntos se concentraram desde temas comuns do Submundo, como quem assumiria o posto de Líder do Conselho — numa eleição acirrada em todos os encontros e que terminara em empate, precisavam de uma forma de decidir se ficariam com os vampiros ou os lobisomens —, passaram por elogios à comida, promessas de que os Salazarte retribuiriam as gentilezas com um convite para que os Gutiérrez os visitassem em outro jantar e, após  terem terminado a sobremesa, retornaram para a sala de visitas.

Os homens, com exceção de Matias, reuniram-se no sofá para insistir no assunto política, até passar por mundanos e como os bruxos pareciam estar um pouco mais aliviados entre eles ― mesmo que nunca pudessem relaxar ―, Matilda parecia estar pagando por todos os seus erros tendo que ser obrigada a ouvir a tagalerice de Beatriz e concordar que certamente aceitaria o convite dela para participar de soirées na casa de suas amigas, onde seria muito bem vinda, e Meredith e Ezequiel entraram numa disputa no xadrez, que estava mais favorável para o lado dela, já que ele continuava a parecer aéreo demais. E pálido. Irina continuava a dar-lhe olhares de esguelha envoltos em temor.

― Pela rapidez com que esse jantar foi organizado, pergunto-me se manteremos o ritmo para a cerimônia de casamento ― Matias comentou, atraindo sua atenção para ele. Os dois estavam parados de frente para a janela e de frente um para o outro, mantendo uma distância respeitável.

― Algum motivo para a pressa? ― ela questionou, um sorriso brincando pelos lábios. Ainda podia ver as costas de Meredith se olhasse por cima dos ombros dele.

― Você não tem?

Foi obrigada a segurar uma risada com a réplica.

― Confesso que tenho apreciado a ideia de podermos passar mais tempo juntos sem termos que ouvir nenhum tipo de comentário sobre estarmos nos vendo demais.

Meredith parou de coçar a cabeça e moveu uma peça no tabuleiro. O movimento de Ezequiel veio pouco tempo depois, como se não estivesse pensando muito.

― Estando casados teremos todo o tempo que quisermos para passarmos juntos. ― Ela deixou o jogo de xadrez de lado novamente, vendo que ele a observava com um sorriso. E finalmente feliz, sem a sombra de preocupação que parecia envolvê-lo toda vez que se encontravam. As olheiras também começavam a abrandar.

― Então tenho que compartilhar com você a ansiedade para nos casarmos logo. ― Eles compartilharam risadas e a atenção de Beatriz recaiu rapidamente sobre eles, um sorriso de canto se formando. Um sorriso de triunfo.

Irina odiava pensar que a mãe se sentiria vencedora em um plano arquitetado não para benefício de Isaac, mas para satisfação própria, porque, no fim das contas, era apenas aquilo que os filhos eram para ela. E por aquele mesmo motivo que Ezequiel era sempre relegado às sombras e Estevão chutado para longe da família.

Meredith fez outro movimento no tabuleiro e Matias voltou o rosto para trás por um instante.

― Avisei meu pai de que Ezequiel talvez precise de cuidados esta noite.

Irina focou-se no noivo outra vez, observando-a com os olhos azuis carregados daquela preocupação. Ainda havia um motivo para trazer preocupação a ele.

― Ele parece ter piorado durante o jantar ― ela murmurou. À mesa, sequer se importara em ser discreta nas suas observações a Ezequiel, sentado ao seu lado. Ele percebera em poucos minutos, evitando cruzar qualquer olhar com ela durante o jantar.

Matias somente afagou sua mão, demorando mais do que o habitual para oferecer-lhe qualquer palavra de conforto. Até mesmo ele, com um otimismo que a encantara de início, estava perdendo suas palavras de encorajamento. 

— Estaremos à disposição para ajudar no que for preciso — ele reassegurou, tão diferente da esperança que sempre tentava transmitir. 

Não adiantava mais os sonhos, não adiantava ir em busca de mais nada. Restava apenas a esperança de mais um dia. 

Ezequiel se pôs de pé, trocando algumas palavras com Meredith, e Irina fixou os olhos nele. Seus movimentos lentos e um giro lânguido o fez voltar-se em direção à saída. Matias acompanhou sua linha de visão. 

— Eu volto logo — ela anunciou, recebendo um aceno de cabeça. 

Irina retirou-se da sala em passos ligeiros, sendo assistida pelo noivo e tendo seus movimentos observados pela mãe, que conseguia falar sem perder o fio da meada. Chamou o nome do irmão, que parou ao pé da escada para o segundo andar. Alguns empregados ainda andavam por todos os lados e ela quase correu até ele.

― Eu vou me retirar um pouco mais cedo. Estou com sono por causa do preparado ― Ezequiel informou, virando o corpo na direção da irmã. ― Volte para eles, eu apenas vou dormir um pouco.

Irina estendeu uma mão em direção à bochecha dele, que se afastou somente após alguns segundos, parecendo ter demorado um pouco para raciocinar o que acontecia. As pálpebras de Ezequiel pareciam pesadas ― ele realmente não mentia quanto ao sono ― e gotas de suor começavam a se formar na testa, além de um tique nervoso que mais se assemelhava a um calafrio. Nos breves segundos em que pôde sentir a temperatura dele, alarmou-se de imediato com o calor.

― Você está quase ardendo em febre! ― ela exclamou e ele subiu alguns degraus. ― Irei chamar o Dr. Salazarte.

― Não! ― ele devolveu no mesmo tom, tremendo mais um pouco. Talvez não fosse apenas calafrios causados pela febre. ― Eu não posso arruinar a sua noite, não hoje, não... ― Ezequiel foi falando de forma quase embolada, parecendo quase em confusão.

― Deixe que eu subo com nosso irmão! ― A voz de Estevão anunciou um pouco atrás deles e foi se aproximando em uma corrida ligeira. ― Há quanto tempo não passamos uma noite juntos, não é? ― ele brincou com um sorriso. ― Chame o Dr. Salazarte. ― Irina foi capaz de ouvi-lo sussurrar e assistiu-o guiar o irmão caçula para o andar superior com uma mão em suas costas.

Ela engoliu em seco e voltou para a sala de visitas.

 

 

O corpo morno de Irina era envolto pelo abraço quente de Estevão e a respiração ritmada de Ezequiel embalada pelo silêncio do quarto.

Os Salazarte já haviam partido há longas duas horas, após o Dr. Salazarte ter subido até o mesmo cômodo em que Estevão e Irina se encontravam sentados ao divã, assistindo o irmão dormir, e o medicado com uma mistura que ele conseguira tirar dos preparados que tinha em mãos e de ervas que correram para arranjar. Ezequiel dormia serenamente desde então.

O jantar entre as famílias fora encerrado de forma abrupta e, por mais que Beatriz tenha praguejado ― em um linguajar que Estevão ironizou não ser digno de uma dama ― sobre como seus planos tinham dado errado, mesmo que a noite tenha sido um sucesso até aquele ponto, ela foi solenemente ignorada por todos, que se concentraram em Ezequiel.

Perto da meia-noite, já com a febre estabilizada, a casa dos Gutiérrez semi-adormeceu. Os empregados haviam se retirado, assim como Beatriz e, bem mais tarde, Isaac e Antônio. Ou ao menos aquilo era o que o Sr. Gutiérrez tinha dito, pois a luz avermelhada visível pela janela de seu quarto provava o contrário.

― Quem diria que teríamos uma noite dessas outra vez ― Estevão comentou com uma risada baixinha, a irmã encostada contra seu ombro.

― Obrigada por não ter ido embora.

― Sabe que não precisa ficar me agradecendo por isso. Eu amo vocês.

As palavras dele se perderam no silêncio da noite alta e Irina as respirou junto do ar morno do quarto. Fedia a ervas e medicamento.

― Eu também ― ela confessou, pegando o irmão de uma forma um pouco inesperada.

Os dois caíram novamente para um silêncio, envoltos por pensamentos e pelo sono que não vinha de jeito nenhum. A porta foi lentamente aberta, sem ruído e apenas percebida pelos sentidos em alerta dos irmãos. Uma faixa de luz foi projetada para o chão e o tronco de Antônio apareceu pela greta.

― Pensei que tivessem ido dormir ― ele contou, entrando no quarto e fechando a porta com o mesmo cuidado que usara para abri-la. 

― Eu pensei que o senhor tinha dito que iria dormir ― Estevão retorquiu, sendo obrigado a deixar a irmã ir.

O pai foi junto da chama da vela para a cama de Ezequiel e Irina acompanhou seus passos.

― Disse que iria me deitar, não que iria dormir ― o Sr. Gutiérrez respondeu, a frase que normalmente soaria divertida saindo um tanto sarcástica. Ele tocou o rosto do filho caçula. ― A febre voltou a subir.

Irina pegou o pano que estava sobre a testa do irmão mais novo e o embebeu com o conteúdo de um copo de barro sobre a mesa de cabeceira. Estava quase na metade.

― O Dr. Salazarte disse que estaria estabilizado por hoje... ― Estevão relembrou as palavras do médico, levantando-se do divã e caminhando até o pé da cama.

― Ele deveria estar...

― Os delírios ― Irina interrompeu a fala do pai ―, se os delírios começarem...

Ezequiel virou-se de forma brusca, quase fazendo o pano úmido cair de sua testa. A irmã o colocou de volta.

― Mas o Dr. Salazarte não teria ido embora se houvesse riscos... ― Estevão tentou começar a argumentar com a razão.

― Deixe-me... ― Ezequiel murmurou e virou parte do rosto contra o travesseiro. ― Deixe-me ir...

Irina deixou que o irmão e o pai tentassem dialogar através dos olhares. Somente recolocou mais uma vez o pano sobre a testa de Ezequiel e sentiu a garganta apertar. Havia começado, mais uma vez.


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