Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 49
Capítulo XLIX




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A fazenda dos Tremonti era tomada por um silêncio não visto em muito, muito tempo. Os empregados seguiam sua rotina, cochichando entre si sobre os ocorridos do dia anterior. Nenhum deles parecia entender o que acontecera e murmuravam com estranheza palavras como “magia sombria” e “bruxos”. Saul sabia que teria ainda mais problemas com aquilo, porém, de que importava? Estava perdido e com a corda em volta do seu pescoço pronta para ser puxada e enforcá-lo de uma vez. 

Estava tudo acabado. Tudo por causa do erro de confiar em quem não devia. Nunca devia confiar em ninguém, nem em si mesmo. 

Leônidas o abandonara, Leonardo fugira com a esposa e ― maldito fosse ― ainda contara para Betina tudo o que não deveria. E nem ela estava ao seu lado naquele momento. 

Mas o que ele esperava? Que um anjo em forma de pessoa fosse compactuar com aquilo? Anjos eram feitos de inocência e bondade e nunca, em lugar algum, poderiam compactuar com a maldade encarnada. 

Estava sozinho, como nunca estivera há bons anos. Sozinho com Isabella e seus medos transformados em ameaças. Pois que viessem e tentassem matá-la, aquelas eram as terras dele e ninguém passaria dos limites sem a sua permissão. 

Guardou a pistola na mesma gaveta onde outrora estavam as cartas que trocara com o sogro ― todas queimadas em seu acesso de fúria quando retornara de sua última viagem a Tantris ― e observou o prato de mingau posto sobre a escrivaninha. Ainda soltava vapor, apetitoso e preparado com cuidado pela cozinheira. E pouco sentia vontade de comer uma colherada que fosse.

Trancou a gaveta e se pôs de pé, segurando o prato pela borda, para evitar o fundo pelando. Saiu do escritório ouvindo seus passos pesados ecoando pelo piso de tacos. Pareciam mais altos do que nunca.

Não encontrara ninguém pelo meio do caminho e subiu em silêncio para o segundo andar. Tirou outra vez seu molho de chaves do bolso e procurou a que acrescentara no dia anterior. O quarto de Betina. 

A fechadura foi destrancada com um clique e empurrou a porta para dentro, causando um gemido lento e estridente das dobradiças. Sua esposa estava sentada à beira da janela e somente virou o rosto em sua direção por um piscar de olhos, voltando-se imediatamente para o bordado que tinha em mãos. Tremonti fechou a porta atrás de si. 

― Como está Ana? ― ela questionou de pronto, sem fazer qualquer movimento que não fosse para passar a linha outra vez no tecido. E como se fosse uma mera conversa habitual. 

― Ela está bem. ― Ele caminhou em direção à cama, deixando o prato sobre o colchão. ― Trouxe seu desjejum.

― Eu posso vê-la? ― Betina continuou com perguntas, fazendo-o soltar um “hum?” para que explicasse. ― Eu posso ver Ana? Nem que seja pela manhã?

Tremonti analisou a esposa, que deixou o bordado sobre o colo e voltou-se para ele com olhos assustados. Como ela quase sempre parecia ficar quando estava perto dele. Sua presença intimidava e assustava até mesmo a quem ele queria somente o melhor. Talvez nunca pudesse apagar a maldade pesando sobre seus ombros. Mesmo quem não sabia de nada, sempre iria perceber.

― Irei pensar nisso mais tarde. ― Virou-se, pronto para partir na direção da porta, que trancaria mais uma vez. Assim como a porta que separava o quarto dele do dela, trancada a chave.

― Saul, por favor. ― Com o pedido, ele parou. A mão que ainda segurava o molho de chaves apertou-o mais, fazendo-o sentir o metal frio e gasto. ― Eu apenas queria ajudá-lo.

― Não há ninguém que possa me ajudar! ― ele exclamou, erguendo a voz sem se dar conta, e girou nos calcanhares. ― Nem mesmo você.

― Mas alguém precisa ajudar Isabella. ― Ela se encolheu, batendo as costas contra o vidro da janela, e apertou o pano em seu colo. ― Ela está presa há anos, sem ver a luz do dia... Como poderia estar a mente dela?

― Isso não te interessa ― rebateu com grosseria.

― Mas é sua irmã! Não podemos deixá-la...

― Você irá deixá-la onde está ― ele sibilou entredentes e se afastou ao ver como a esposa parecia se encolher mais a cada palavra que soltava. Betina nunca sentiria outra coisa por ele que não fosse medo e pena, não importava o quanto tentasse.

— Eles irão matá-lo. — Ela deixou o bordado sobre a borda da janela e se levantou. — Eles irão matar os dois, por favor… 

— Não é isso que você quer? Ver-se livre de mim? — ele atirou sem nem pensar. 

Betina, que dava tímidos passos em sua direção, estacou. 

— Eu nunca quis me livrar de você. 

Saul baixou os olhos para os próprios pés nas habituais botas de montaria. Ele não a merecia. Não merecia sequer dividir o mesmo cômodo que ela. A Mãe Terra provava-se mais uma vez cruel em permitir que chegassem àquele ponto. 

Desde que a vira pela primeira vez, em um simples encontro que não deveria ter acontecido com os Salazarte — fora das paredes onde ele e Leônidas se conheceram —, perguntava-se como era capaz de existir alguém como Betina. Não era exagero pensar que ela era um anjo, pois simplesmente era boa demais. E, assim como o pai, mostrava piedade para quem não merecia nenhuma. 

— Você ficaria melhor sem mim — ele declarou e deu-lhe as costas outra vez, ignorando-a chamar seu nome. 

Ela estaria muito melhor se não tivesse cedido aos desejos de tomá-la como esposa. Estaria muito melhor se o pai dela não tivesse consentido com aquele casamento por uma razão que ninguém além dele entenderia. Ela estaria muito melhor longe de seu amor, que parecia trazer apenas morte para quem amava. 

Primeiro Isabella e agora… Tibério não errara quando comentara com ele que Betina definhava a olhos vistos. Ele via aquilo acontecer há um longo tempo, mas não era como se pudesse afastá-la dele. Precisava dela. Precisava de um pouco de paz e de um anjo que tirasse pelo menos um pouco das trevas do seu coração. Assim como era com Isabella, não era capaz de deixá-la ir. 

Saiu do quarto e trancou a porta outra vez, passando as chaves de metal frio de volta para o bolso. O corredor era iluminado pela luz acinzentada da manhã. 

Eles poderiam chegar a qualquer momento e tudo que tinha para pôr entre Isabella e eles era uma pistola carregada com um único cartucho de sete balas. 

Maldita luz do dia… 

Era esperar pela noite em agonia e desespero ou colocar uma pistola entre eles. O que viesse primeiro. 

 

 ☆

 

O anoitecer começava a cair e nada de alguém chegar ou movimentação alguma acontecer. Saul quase se recusara a se retirar da fazenda por minutos que fosse, porém, sabendo que precisava mover Isabella dali o mais rápido possível, não teve outra escolha. Passou duas horas fora e, ao retornar, não vira nada além dos trabalhadores em suas tarefas habituais.

Perguntava-se o que causava aquela demora. Tibério encontrava resistência para conseguir crédito ao seu relato? Duvidava muito, o homem não descansaria enquanto não tivesse o clã inteiro ao seu lado. Talvez Inácio estivesse agrupando o maior número possível de bruxos para ir até ali? O mais provável.

Matar alguém ressuscitado pela Sombra nunca seria fácil, principalmente por qualquer ser com o mínimo de energia mágica não conseguir ficar próximo sem ser afetado. A Sombra era traiçoeira, como todos diziam.

Necromancia era a magia mais poderosa ofertada por Ela e algo como aquilo não poderia vir de graça e nem sair perfeito, pois era lutar contra as leis da natureza e o que fora estabelecido pela própria Luz, mais poderosa do que todas as Outras juntas.

A lua cheia ainda clareava a plantação quando saiu de casa. Alguns dos trabalhadores começavam a voltar para seus casebres e somente os empregados da casa ficariam acordados até mais tarde. Aquela era sua oportunidade.

A corrente estava enrolada em uma de suas mãos e caminhava com passos largos, amassando folhas mortas onde havia. Sentia o coração bater e o sangue se agitar dentro de si. Não adiantava negar sua apreensão. Mesmo com a pequena possibilidade de defesa que a pistola guardada em seu casaco oferecia, ainda havia uma ameaça pior do que um bando de bruxos armados vindo atrás dele. Mas precisava tentar movê-la sozinho.

Cruzou limite atrás de limite, sabendo que os minutos passavam conforme se aproximava do monólito afastado. O ruído do rio aumentava, avisando-o de que estava chegando. Começava a sentir o mal-estar, já tão corriqueiro para ele. Eram anos e anos fazendo aquilo e ainda era afetado por ela.

Sentia a pressão no peito e uma parte inconsciente de sua mente gritava para que fugisse para longe dali o mais rápido possível. Aprendera a ignorar aquela voz há anos.

Tirou a pedrinha do bolso e desenhou o símbolo na pedra fria, vendo o monólito deslizar como se fosse uma porta de correr. Foi como ser recebido por um bafo de ar quente, pois mesmo no frio cortante começava a suar. Enfiou a pedrinha de volta no bolso e entrou, seus olhos pouco estranhando sair da iluminação da lua para a artificial do fogo fátuo nas paredes.

Ela estava lá, encolhida contra um canto da parede, feito um animal. Não falava, não funcionava mais como uma pessoa e sequer sabia se ela conseguia de fato entendê-lo. Todos estavam certos em dizer que era somente uma casca vazia, mas não conseguia deixá-la ir.

Sequer vira como acontecera, a morte de Isabella. Sabia que os irmãos partiram em posse de machados e de tochas para destruir a parte da fazenda pertencente às fadas, em uma briga inútil e uma total perda de tempo, e também sabia que Isabella iria atrás, impetuosa demais para deixar aquilo passar. E fazendo o que ele deveria ter feito, interferindo ao invés de deixar acontecer. Pouco se importara, porque o problema não era com ele, porém, quando vira a irmã voltar nos braços de Edgar, sangrando e com uma ferida que não conseguiram tratar a tempo, soube que falhara em não tentar impedir qualquer um dos lados. E falhara ainda mais em permitir que Edgar e Samuel a trouxessem de volta. Assistira a tudo sem interferir e, quando precisava agir, simplesmente não podia. Não conseguia.

― Precisamos partir ― ele informou para ela, quer entendesse ou não. Isabella não se virou ao ouvir sua voz, como faria quando era viva. Começava a sentir-se nauseado, mas precisava aguentar. 

Vendo que ela continuava imóvel, tocou-lhe o ombro, já se preparando para agir. E não errou, pois ela avançou como uma besta furiosa em sua direção. Por sorte, conseguiu envolver as mãos dela nas correntes, tendo apenas uma mordida nas costas da mão direita para se juntar à coleção e um arranhão das unhas longas no pescoço.

Sentia sua cabeça começar a pulsar, um indicativo de que deveria se afastar dela o mais rápido possível, no entanto, puxou as correntes, forçando-a a seguir suas ordens para sair dali.

Isabella ainda assim resistia, medindo forças com ele, que tentava a todo custo arrastá-la para fora dali. Se fosse na primeira vida dela, Saul conseguiria seu desejo pouco precisando se esforçar, mas na segunda vida dela sua força começava a ceder à influência da Sombra. 

O cabo de guerra com a corrente terminou com ele saindo vencedor e puxando-a para o frio da noite. Isabella sequer olhou para seus arredores, como qualquer pessoa faria depois de passar anos a fio presa sem ver a luz do dia. Ela encarava o irmão com os olhos escuros vazios, os cabelos um embaraço total. Ele bem que tentara cuidar dela, mas nunca conseguia. 

— Eu preciso tirar você daqui, será que não pode colaborar? — Saul tentou apelar para a razão, mesmo que fosse impossível ainda haver alguma nela. Isabella foi se aproximando, causando uma onda de tontura nele. — Eles irão matá-la se continuarmos aqui. 

— Deixe — Isabella soltou em uma voz rouca, quebradiça e parecendo lutar para sair. Sequer parecia a dela. — Deixe-me. 

Saul paralisou, estupefato por ouvir a irmã falar depois de tantos anos de silêncio ininterrupto. Sua mão que enrolava a outra parte da corrente quase vacilou e ela avançou em sua direção. 

— Deixe-me morrer! — ela tentou gritar, mas a voz era fraca demais, saindo somente como um sussurro rouco. 

Saul a observou assombrado, ainda tentando processar o que se passava em sua frente. Ainda havia a consciência de sua irmã ali. Ou a consciência de algo. 

Ela tentou novamente se jogar em sua direção, porém, ele foi rápido o suficiente para puxar a corrente e impedi-la. O bafo de magia sombria que veio em sua direção fez a floresta à sua volta girar e somente conseguiu se manter em pé pela força de vontade. 

— Eu não posso! — ele devolveu em um lamento quase choroso. 

Isabella abriu a boca e repetiu seu pedido, soltando um bafejo de morte em sua direção. O mundo outra vez girou e Saul sentiu que perdia o equilíbrio. Teve a impressão que fechou os olhos por um único segundo e, quando deu-se por si, suas costas estavam no chão e Isabella bafejou outra vez em sua direção, quase fazendo-o perder os sentidos. 

— Deixe-me ir — ela pediu mais uma vez. 

Atordoado, Saul sequer conseguiu articular palavras para responder. Apenas viu a irmã subir em cima de si e sentiu que a metade da corrente que estivera em sua mão era enrolada em torno de seu pescoço. 

E não pôde processar mais nada, sentindo somente o cheiro pútrido da morte. 


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