Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 37
Capítulo XXXVII




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― Venho através de Leônidas Salazarte. 

O homem sentado em frente ao portão de ferro precisou somente tocá-lo para que fosse aberto. Saul atravessou, ouvindo o barulho da tranca sendo usada novamente, porém, ao virar-se, viu o sujeito com o livro na linha de visão, como se sequer tivesse se mexido.

Continuou em frente, sendo aquela a única direção possível, entrevendo as mesmas paredes de pedra com seus archotes chamejantes. O caminho terminava em uma larga porta preta esculpida contra a pedra e ela abriu apenas ao tocá-la. Do lado de dentro, foi recepcionado por um salão como o de um dos tantos clubes de cavalheiros na superfície, de teto alto, uma pequena recepção e incontáveis portas que levavam a outras salas, quase como se estivesse prestes a entrar em um labirinto. 

Após repetir novamente que estava ali em nome do sogro, foi guiado por um dos três homens presentes no recinto para uma das portas. Questionava-se se, como na superfície, havia outros membros do Submundo além de bruxos por ali naquela noite.

O corredor terminava em mais quatro portas e, por baixo de uma delas, saía um forte cheiro de açúcar queimado, acentuando seus questionamentos, mesmo que fosse difícil imaginar fadas se envolvendo em negócios como aquele. O homem abriu a porta e fez um gesto com a cabeça para que entrasse. 

O ambiente era de paredes de papel de parede negro, tendo quadros de borboletas, escaravelhos e besouros mortos atrás de um vidro, além da ossada do que poderia ser um boi ou outro animal com chifres. Sobre a lareira, que parecia ter fins somente decorativos, estava pendurado um gancho encimado por um círculo, símbolo conhecido da Sombra, junto de um único castiçal, jogando sua luz para a mesa ao centro, onde seu sogro saboreava alguma bebida. 

― Saul ― ele o cumprimentou e o homem fechou a porta por fora, deixando-os sozinhos. ― Como está minha filha?

― Betina está bem ― mentiu sem hesitação, puxando uma das três cadeiras livres para se sentar. 

Leônidas poderia ser a única pessoa em muito tempo em quem confiara para contar ao menos a maior parte de seus segredos, contudo, nunca iria dizer a verdade do que se passava com Betina em sua fazenda. Tivera um presente muito maior do que um dia poderia se imaginar digno de receber, com a honra de ter a mão da filha mais velha dos Salazarte em casamento. Dizer a Leônidas que a filha dele estava adoecendo por culpa do mal que havia trazido para sua propriedade seria ingratidão e descuido de sua parte, afinal, Betina passara a ser sua responsabilidade.

Fora sua escolha tomá-la como esposa, por egoísmo seu, sabia. Mas o que poderia fazer se não podia viver sem ela? O que fazer se ela era a única pessoa que lhe trazia alguma paz? Pena que aquilo tenha se perdido há muito tempo, conforme ela ia definhando pouco a pouco naquele lugar. Ela ainda lhe trazia paz, mas sem o mesmo brilho de antes. 

Talvez fosse seu destino sempre trazer morte e destruição ao seu redor. 

― Ana melhorou da febre, mas acredito que ainda possa adoecer novamente. Crianças são mais vulneráveis a isso ― Tremonti informou, sabendo que o sogro continuaria a perguntar da filha. Ele assentiu e tomou mais um gole, oferecendo-lhe a garrafa transparente que estava sobre a mesa. ― Obrigado.

Saul pegou um dos copos com a boca virada sobre o outro, vendo que ainda restara mais um. Encheu o seu com a bebida e tomou um bom gole, sentindo o sabor do rum. 

― Tem tido problemas com meu pai?

― Nada que eu não possa lidar. Betina tem passado mais tempo com ele ― Tremonti respondeu, levando o copo de bebida para perto do nariz, um hábito comum de quem estava acostumado a degustar vinho. Tomou outro gole. ― E quanto à terra que mandei?

Leônidas tirou um pequeno frasco do bolso da sobrecasaca, colocando-o sobre a mesa. O mesmo que viera junto da última carta de Saul, com menos terra do que antes. 

― Não consegui obter nenhum resultado conclusivo, parece apenas terra comum ― o médico informou, enchendo novamente seu copo. 

― Isso não é possível ― Tremonti soltou incrédulo, pegando o pequeno frasco em sua grande mão. ― As minhas vinhas estão adoecendo, Leônidas! Eu estou rodando por esse país tentando liquidar um vinho maldito e você diz que não há nada de errado com minhas terras?!

Salazarte calmamente saboreou um gole de sua bebida, analisando o genro com pesar em seus olhos decorados por olheiras, parecia pálido. Em um abrir e fechar de olhos, Saul reconheceu o  mesmo olhar que sempre via dirigido a ele nos olhos do sogro.

― O problema não é a terra e você sabe bem disso. ― Leônidas batucou um dedo contra o vidro do copo. Por algum motivo, o objeto estava um tanto trêmulo em sua mão. ― A Sombra nunca se arriscaria em uma briga com a Mãe, você sabe que seria impossível vê-la tocando nos domínios Dela sem permissão.

― Nós demos permissão para que a Sombra tocasse em nossas terras! ― Saul urrou e socou uma das mãos contra a mesa, no mesmo instante sentindo a dor subir irradiando pelo seu braço. Disfarçou uma careta de dor e rapidamente tirou a mão de sobre a madeira, tentando esconder a pele que cicatrizava com lentidão da visão do mestre de poções. Se ele visse aquilo, o problema seria identificado no mesmo instante. 

― A permissão era para que ela tivesse domínio sobre vocês e sobre Isabella. 

O Dr. Salazarte devolveu o copo para o lugar de outrora, não mostrando um sinal de emoção. Ao contrário de Saul, que se pôs de pé e caminhava de um lado para o outro no pequeno cômodo, o frasco apertado contra sua mão machucada, fazendo com que a dor permanecesse ali.

― Você sabe que há apenas uma solução para isso. ― Tremonti afundou o frasco contra a palma da mão, sentindo-a reclamar de dor. Pouco se importou, vendo o sogro propor-lhe aquilo com uma calmaria que impressionava até ele. ― Ela é quem está tomada pela Sombra e adoecendo suas terras. Apenas uma filha da Terra poderia fazer isso, não a Sombra.

Saul deixou os ombros caírem e parou de andar a esmo pelo cômodo. A dor em sua mão era somente uma sensação que mal podia ser processada. A dor que sentia por dentro era mil vezes pior.

― Eu não vou conseguir matá-la uma segunda vez. 

Quando o ar deixou seus pulmões para dizer aquela frase, era como se tivesse tomado um soco no peito. Doía e deixava-lhe sem fôlego. Pensar naquilo doía ainda mais do que todos os socos que pudesse levar.

― Eu sei. ― Leônidas pegou novamente a garrafa para encher seu copo, as mãos nitidamente tremendo enquanto o fazia. ― Contudo... ― Tomou um longo gole e demorou um segundo ainda mais longo para engolir. ― Às vezes devemos ferir a nós mesmos por quem amamos. Isabella continuará a contaminar a terra com a energia sombria enquanto você não der um fim nisso.

Saul murmurava uma sucessão de “não’s” para si mesmo, falando mais consigo do que com o próprio sogro. Simplesmente porque não queria assumir aquilo que ele dizia como verdade. Leônidas podia ter um amplo conhecimento sobre maldições e sobre magia sombria, que fosse, no entanto, não era detentor de todo o conhecimento. Ainda podia haver um caminho desconhecido.

― O que há da Sombra nela tentará destruir tudo que é da Mãe. É isso que a Sombra faz. ― Ele bebeu um último gole, terminando o conteúdo do copo sem que nenhum dos dois de fato percebesse. O objeto ainda tremulava. ― Ela destruirá mesmo aquilo que não pode tocar.

― As Outras podem ter alguma solução ― Saul começou, erguendo os olhos para a lareira e deixando a visão do sogro com suas mãos trêmulas. O gancho. A ruína de tudo representada bem ali. ― A Noite...

― A magia da Noite é fraca demais.

― A Luz...

― Por que você acha que a Luz se envolveria com isso? ― Leônidas rebateu seco, batendo o copo contra a mesa.

― As fadas começaram isso, elas irão terminar... ― Ele fechou os olhos, tentando ignorar a lembrança do gancho. Tentando ignorar que, não importasse onde pisasse os pés, Tantris, Mempolis ou no inferno que fosse, Ela sempre estaria lá. A lembrança de Isabella sempre estaria lá. 

― Nenhuma Delas irá se dobrar à sua vontade. ― O médico cortou qualquer fio de esperança do genro em um golpe seco. Saul encarou-o com fúria pela primeira vez, não se importando com qualquer acordo do passado. ― Tudo o que a Sombra te deu foi o espectro vazio do que a sua irmã era.

― Você sequer a viu para saber do que está falando! ― Saul berrou.

― Acha que eu ficaria de braços cruzados nesses últimos meses se não soubesse como um feitiço necromante iria terminar? ― ele devolveu, recobrando o controle sobre a própria voz. ― Dê um fim nisso, Saul, ou eu o farei no seu lugar. Não vou deixar minha filha ser afetada por tolice sua. 

Foi preciso um pouco de esforço para Tremonti romper a aura da fúria de sua mente e dar-se conta de que seu sogro estava o ameaçando. Em três passos, lançou as palmas contra o tampo da mesa, sentindo o frasco fazer sua mão gritar de dor novamente. O vidro estava trincado.

― Betina é minha esposa, não há como você tirá-la de mim!

― Betina é minha filha antes de ser sua esposa! ― Leônidas retrucou, pela primeira vez demonstrando alguma emoção por trás do cansaço dos olhos azuis. Podia ser tão fatal quanto Saul e sua fúria tempestiva. ― Eu deixei que a levasse por acreditar que você veria a verdade em algum momento, mas agora percebo que subestimei sua tolice.

― Tolice maior foi a sua, de deixar a própria filha se casar com um homem que você sabia ter se envolvido em um feitiço necromante. Você sabia para onde estava deixando que ela fosse ― ele grunhiu sua fúria na face do sogro, uma face pálida misturada à exaustão. ― Betina é minha esposa e você não tem mais direito nenhum sobre ela.

― Eu tenho capacidade suficiente para arruiná-lo, Saul. Você estará morto se alguém fora daqui souber e Isabella também. Alguém terminará isso por você se você não o fizer. ― Tremonti foi avançando as mãos pelas laterais da mesa, seus instintos desejando levá-las para cima do sogro. A razão quase perdia a luta pelo controle. ― Eu acreditava que você merecia ter uma mulher que amasse quando descobrisse a verdade, mas minha falha foi acreditar que você podia ser como eu.

― Sua falha foi ter misericórdia por quem não merecia. ― Saul deixou as mãos soltarem as bordas polidas da madeira e se fecharem no ar sob a mesa. ― Você sabia quem eu era e mesmo assim a entregou para mim.

A fúria glacial nos olhos de Leônidas abrandou como um fogo disperso por uma rajada de vento. Por trás daquele homem que escondia tantos segredos quanto ele restava apenas cansaço. A Sombra cobrava seu preço de cada um ao seu modo. Estivesse direta ou indiretamente envolvido com Ela, ninguém era poupado. 

E não podia negar que, bem lá no fundo, tinha uma vontade de saber que acordo seu sogro fizera com Ela para chegar àquele ponto. Ele o entendia. Por algum motivo, em todos aqueles anos, Leônidas fora o único homem que parecia entendê-lo.

― Volte para Mempolis e acabe com isso de uma vez ― o mestre de poções finalizou, enchendo outra vez o copo com os dedos magros e trêmulos. Mesmo com o conteúdo da garrafa quase na metade, ele parecia perfeitamente senhor de si. Consciente até demais do que estava falando. ― Acabe com o que você e seus irmãos começaram, ou providenciarei para que alguém faça isso no seu lugar.

Salazarte tampou a garrafa, o barulho do vidro ocupando o silêncio da sala carregada. Saul fitou-o uma última vez, transbordando sua fúria e encontrando nada além de exaustão e tristeza. Ou pior: pena. A pena que sabia sempre estar cravada naquele olhar de Leônidas.

Ele não precisava da pena dele. Do que de fato precisava o bruxo à sua frente não fora capaz de lhe dar, portanto, não havia mais nada que fosse querer dele.

Sem despedidas, Saul deu-lhe as costas e abriu a porta, puxando-a com força e sobressaltando um homem que estava encostado em uma parede do lado de fora, como se aguardasse para entrar.

Os dois se encararam por um instante e, pedindo para que mantivesse a porta aberta, o outro passou para ocupar o espaço que antes fora dele naquela sala com Leônidas. O sujeito era tão alto quanto o próprio Saul e o topo da cabeça quase alcançava o umbral da porta.

― Não bastasse esconder segredinhos dos filhos, agora está ameaçando o próprio genro, Leônidas? Que família! ― ele gargalhou e em seguida a porta bateu.

Tremonti pouco se importou em ouvir a continuação do diálogo, os próprios problemas mais importantes do que as intrigas dos Salazarte.

Rumou em direção à saída, tentando ignorar aquelas paredes que o trouxeram àquele ponto. Num momento de sua vida em que ainda tinha esperanças de que a Sombra poderia ajudá-lo de alguma forma. No lugar da ajuda, Ela apenas lhe apresentara mais sofrimento. E trouxera mais uma pobre alma para sofrer junto dele.

No fundo, sabia que, mesmo que Isabella estivesse morta novamente, Ela nunca o deixaria em paz. 


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