Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 31
Capítulo XXXI




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Betina colocou o recipiente borbulhante sobre a mesa, assistindo Leonardo beber primeiro um gole e, após uma careta, engolir tudo de uma vez.

― Sei que o gosto é terrível, mas você ainda precisará beber mais algumas doses até que se cure de uma vez. ― Apontou com a cabeça para o antebraço enfaixado do lobisomem, que devolveu o objeto para cima da mesa. O tom de pele tinha voltado ao normal, como se a memória dos três dias que ele passou desacordado nunca tivesse acontecido, contudo, a ferida continuava feia e um tanto purulenta. ― Não podemos vacilar agora, pois pode ser que ainda haja um pouco de magia sombria em você. 

― Obrigado, Sra. Tremonti, eu... ― O lobisomem ergueu o rosto e fixou os olhos escuros acima do ombro da patroa, cruzando olhares com a esposa, que estava sentada sobre a cama, às costas da Sra. Tremonti. ― Nós não sabemos como podemos retribuí-la pelo que a senhora fez. 

Betina tomou alguns segundos para sopesar as próprias palavras, analisando o lobisomem à sua frente. 

― Bem... Eu não costumo pedir retribuições, pois não gosto de fazer nada em troca de favores, mas, no seu caso... ― Ela começou um tanto cuidadosa e viu Leonardo baixar os olhos na direção da mesa sulcada, provavelmente sabendo o que viria dali. ― Eu preciso saber o que você e meu marido estavam fazendo naquela noite.

O tratador de cavalos engoliu a saliva e encarou fixamente a patroa, mostrando a dureza que sempre pairava por ali. 

― A senhora pode me pedir qualquer coisa, Sra. Tremonti, menos isso. Não é um segredo meu para que eu possa contar.

― Ela é esposa dele! ― Débora quase guinchou e se pôs de pé, parando atrás da cadeira da convidada. 

― Eu jurei que não iria dizer nada. ― Ele ergueu a face, mais magra e abatida, depois de ter passado os últimos três dias indo e saindo de delírios febris, era quase um milagre que estivesse se recuperando. Contudo, a dureza de seus olhos não suavizou sequer ao olhar para a esposa. ― O Sr. Tremonti... ― Ele parou, os olhos duros e hesitantes correndo de uma para a outra. ― Eu também devo minha vida ao Sr. Tremonti, Débora sabe disso.

Débora parou de caminhar, pousando uma mão sobre a barriga da gravidez na reta final. Quase inconsciente, fez um carinho ali, enquanto Betina permanecia calada, aguardando o casal terminar sua comunicação muda através da troca de olhares. 

― Eu e Leo trabalhávamos na casa de um dos líderes dos lobisomens ― Débora manifestou-se, encarando os próprios pés sobre o piso de pedras gastas.

― E grandes clientes do Sr. Tremonti ― o tratador de cavalos continuou de onde a esposa parou, cutucando sujeira das unhas sem sequer perceber. Betina sentia o desconforto no ar, tão claro quanto o forte cheiro de ervas que estava impregnado em suas narinas há uns bons minutos. ― Eles davam festas regadas a bebida, esbanjavam dinheiro.

― E as empregadas sofriam com certos convidados ― Débora adicionou. Betina fixou-se no homem à sua frente, apenas acompanhando o retorno da movimentação da mulher atrás de si pelo canto de olho. ― Leo acabou entrando em conflito com um desses… Convidados, para me defender em uma das festas.

Ele riu, deixando de encarar a mesa para oferecer um sorriso triste à esposa. Betina foi capaz de capturar a ternura entre eles, pela primeira vez vendo algo diferente por trás da dureza dos olhos de Leonardo. 

― Está sendo gentil tentando suavizar o que aconteceu. ― Em seguida, ele encarou fixamente a bruxa à sua frente. ― Eu acabei matando o outro lobisomem durante a briga. 

― Sua condenação seria a morte — Betina concluiu, sentindo o peso que uma sentença como aquela trazia. E empurrando para trás memórias que tentavam acenar em sua mente com todo aquele relato. Elas deviam ficar lá, enterradas tão fundo quanto as lembranças de seus dias de apatia, que não tinham lugar nenhum em dias pelo menos um pouco coloridos.

Leonardo assentiu.

― Havia testemunhas e a vítima era amigo de um dos membros mais importantes de nosso clã. Eu tive sorte de não terem me matado ali mesmo. ― Betina franziu a testa, um tanto chocada com a brutalidade. Em Tantris, sabia que, independente de qual fosse o crime, o acusado teria direito a um julgamento e defesa, e impedi-lo também seria contra a lei dos Acordos. Mempolis ainda mostrava-se cada vez mais dura e selvagem, mesmo depois de dez anos ali. ― Foi durante os dias em que fui mantido preso à espera do julgamento que seu marido, que tinha ido lá para mais negócios, ficou sabendo de minha história e me ajudou a fugir. Eu e Débora escapamos graças a ele e estamos aqui na fazenda desde então. 

― Nós não sabemos por que o Sr. Tremonti decidiu nos ajudar, mas...

― Eu devo minha vida a ele ― Leonardo interrompeu a esposa. ― Eu também devo minha vida à senhora desde hoje, Sra. Tremonti, mas não posso quebrar minhas promessas. 

Betina encheu os pulmões de ar e soltou-os lentamente, ainda absorvendo a história contada pelo casal. 

Sabia desde seu primeiro ano de casada que Saul era carregado de segredos. Não podia negar que, no fundo, tinha uma curiosidade que tentava fazê-la ao menos perguntar, afinal, eram casados e, se dividiam uma vida juntos, não era seu direito saber o que se passava debaixo daquele teto?

Porém, entre ceder à sua vontade para o confronto e o medo que sentia, ficava sempre parada no meio da balança. Nunca avançava para lugar nenhum. 

― É você o lobisomem que atacou a cabra em nossas terras ― a bruxa deduziu, finalmente se manifestando. Entre todas as coisas que tentava processar, o mistério que todos os bruxos da área sul tentavam solucionar era o mais simples de engolir.

Leonardo assentiu, balançando a cabeça com rapidez. Débora se afastou na direção da parte que servia como cozinha, finalmente se recordando que a água para o chá fervia no fogo. 

― Eu sinto muito por isso, mas acredito que a mudança de ambiente e tudo o que aconteceu no último mês me deixou um pouco mais descontrolado neste último ciclo. Prometo que não irá se repetir.

Débora se aproximou, trazendo um copo e o bule de chá fervente em outra mão e os pôs sobre a mesa. Betina sequer percebeu o convite para tomar um pouco, na hospitalidade que ficou esquecida no meio da hesitação que ainda pairava pelo ar. 

― Saul não fez um preparado de sândalo para você? ― a Sra. Tremonti questionou e o chá foi servido. 

― Ele não pôde fazer nesse último ciclo, mas prometeu que deixará pronto para o próximo. 

― Avise-me se ele não o fizer até a primeira noite de lua cheia, pois eu mesma o farei para você. ― Leonardo assentiu em silêncio, enquanto a Sra. Tremonti começou a se levantar, ignorando completamente a bebida fumegante que lhe fora oferecido. Débora sequer comentou, mais atenta aos dois do que aos hábitos. ― Também trarei mais preparados ao longo dessa semana. Aconselho que você beba e que continue a banhar a ferida com o outro que ainda resta. 

― A senhora... ― Leonardo tentou se pôr de pé, porém, pela rapidez, teve que voltar a se sentar. Ainda estava um tanto fraco demais.

― Eu não insistirei para que você quebre sua promessa, não se preocupe. ― Ela recolocou sua bolsa de pano com ervas no ombro, indicando que estava pronta para partir. ― E também não pedirei retribuições.

― M-mas, Sra. Tremonti... ― o lobisomem ainda gaguejou, parecendo surpreso pela atitude.

― Descanse ― ela aconselhou, forçando-se a oferecer um sorriso gentil. ― E não tenham medo de me chamar novamente caso precisem.

Betina percebeu o casal se entreolhando em uma conversa muda e fácil de decifrar, pois sabia que nenhuma das esposas que conhecia sairia dali sem respostas. Apenas ela quebrava a expectativa. 

Quanto a si mesma, finalmente teria de pender para um dos lados da balança. Havia alguém que lhe devia mais satisfações do que Leonardo. 

 

 

A manhã passou como todas daquela semana. Betina retornou para casa e gastou algumas horas junto da filha e da babá, optando por um breve passeio para aproveitar o primeiro dia de sol daquela semana, mesmo que o clima continuasse gelado. 

Quanto a Tibério, partira com a carruagem dos Tremonti para o centro da cidade, sabe-se lá para que. Betina temia que, naqueles dias que passaram sem se falar direito, o avô tivesse de fato cumprido sua promessa e começado a investigar sobre o passado de seu marido. Conhecendo Tibério como conhecia, sabia que suas palavras nunca eram promessas vazias. 

E temia que suas descobertas o levassem ao mesmo ponto cego que ela, pois, diferente dela, Tibério nunca fora alguém que dera as costas para um confronto. 

Um pouco antes do almoço, Saul finalmente retornou. Ela assistiu o marido desmontar do cavalo e os empregados correrem para pegar seus pertences da viagem e devolvê-los para o quarto. A Sra. Tremont assistiu a tudo parada à porta da cozinha que dava para o pátio.

― Boas notícias da viagem? ― Betina questionou, seguindo o marido para dentro de casa.

― Continuo a ter dificuldades para vender o que restou da safra do ano anterior, os clientes têm reclamado da qualidade do vinho. As contas ficarão um tanto apertadas no inverno se continuarmos assim ― ele reclamou, deixando seu casaco com um lacaio pelo meio do caminho. Encaminhou-se para a escada, ainda seguido pela esposa. ― Como passou esses dias?

― Tenho estado melhor. Apenas Ana que não dá sossego durante a noite.

Viu um sorriso sutil se desenhar no rosto com a barba por fazer e alcançaram o segundo andar, com ela tendo que segurar as saias e pular alguns degraus para poder alcançar o passo do marido.

― Fico feliz de vê-la melhor.

Os dois pararam em frente à porta do quarto de Saul e Betina percebeu que continuava segurando as saias durante aquele tempo todo. Soltou-as, olhando para o chão de tacos. 

― Sei que você deve estar cansado da viagem, mas precisamos conversar sobre algo. ― Tremonti abriu a porta, deixando que a esposa passasse e, em seguida, fechou-a atrás dos dois.

― Algum problema com a fazenda? Com seu avô? Parece um tanto hesitante ― ele comentou enquanto sentava na cama para tirar as botas.

A Sra. Tremonti ficou parada no meio do cômodo, notando como continuava a mexer no tecido de seu vestido de forma nervosa. Não conseguia controlar os próprios dedos. Mesmo tendo horas para isso, ainda lutava para escolher a melhor forma de trazer o assunto à tona. Se sentia um tanto pateta, perdida daquela forma.

Mas quando não era uma pateta ao ser empurrada para o confronto?

― Leonardo quase morreu essa semana ― ela declarou de uma vez, ainda sentindo-se vacilar pelas palavras, contudo, decidiu ir direto ao ponto. Saul parou de retirar o segundo pé da bota para encará-la, marcas de expressão aparecendo na testa franzida. ― Acredito ter conseguido livrá-lo do resquício de magia sombria que estava o consumindo de dentro para fora, mas ainda precisará de atenção.

Betina viu as narinas do marido se expandirem e o calçado cair de sua mão e tombar no chão. Ainda sentindo suas pernas parecerem um tanto trêmulas, andou até a cama e sentou-se ao lado dele.

― Por que não me contou? ― ela murmurou a pergunta, soando menos confiante do que gostaria. Ainda parecia uma garotinha com medo de falar com o próprio pai.

― Sei como você e seu avô têm uma relação complicada com lobisomens desde o que aconteceu com sua família ― ele devolveu no mesmo tom de voz. Não era exatamente aquilo que queria ouvir, no entanto, com uma pergunta tão aberta, não poderia querer uma resposta tão exata. Ou o grande problema era a existência de inúmeras coisas não contadas.

― Eu não teria medo de ajudá-lo se soubesse o que aconteceu com ele e a esposa ― ela retrucou, percebendo que aquele diálogo continuaria aos sussurros. Mesmo que estivessem os dois sozinhos no quarto.

― Você tem seu avô e nossa filha para cuidar, seus próprios afazeres e sua saúde às vezes decai ― Tremonti começou a argumentar como se fosse uma conversa habitual, mesmo que seus dedos estivessem um tanto trêmulos quando empurrou as botas para debaixo da cama e pegou os chinelos. ― Não vou enchê-la com mais problemas.

― Eu não estou doente! ― ela exclamou com a voz quase chorosa, fazendo com que o marido voltasse o rosto em sua direção. As marcas de expressão voltaram para sua testa, um tanto incomuns para um bruxo jovem como ele. 

― Eu não disse que você está doente. Mas você passou por um baque emocional muito grande recentemente e às vezes isso te afeta. ― Saul se pôs de pé, atravessando o cômodo para lavar-se na bacia de cerâmica sobre o toucador. ― Você estava abalada quando eu parti.

― Eu não estava abalada pelos nossos problemas ― ela cortou a fala dele, sem sequer perceber que deixava de ser a acusadora para se defender na discussão.

― Então o que havia com você? ― Ele jogou a pergunta de costas, pegando uma toalha para secar o rosto e as mãos que acabara de lavar.

Betina outra vez começou a apertar o tecido da própria saia, à caça de palavras para reverter a situação. Saul devia-lhe satisfações, não o oposto.

― Leonardo se machucou quando estava fazendo alguma tarefa para você ― recomeçou pausadamente, assistindo o marido virar-se para ela enquanto secava as mãos ― e envolvia magia sombria.

― É um problema meu. ― Ele atirou a toalha para o toucador atrás de si. ― Leonardo deve-me um favor e por isso está me ajudando.

― Deixe-me ajudá-lo, por favor ― Betina sussurrou, erguendo-se da cama em um pulo e caminhando até o marido. ― Isso é perigoso, Leonardo quase morreu por isso. ― Tocou-lhe a lateral do rosto com as mãos, tentando fazê-lo se aproximar mais dela. As marcas de expressão tornaram-se mais nítidas com a proximidade. ― Se alguém de nosso clã descobrir...

― Ninguém irá descobrir. ― Saul segurou a mão da esposa e tirou-a de seu rosto. A mandíbula se tornou tensa e as próximas palavras saíram quase grunhidas. ― Fique longe disso, pelo seu próprio bem. Pelo bem da nossa filha e do seu avô.

― Mas... ― ela ainda insistiu de maneira tímida, vendo o marido soltá-la.  Betina se afastou, de fato temendo-o pela primeira vez.

Não era a primeira vez que via os músculos e a mandíbula tensa, as narinas se expandindo e, se fosse parar para pensar, não era a primeira vez que via aquelas marcas de expressão. No entanto, era a primeira vez que via-o dirigir aquela dureza para ela.

― Eu irei avisá-la somente dessa vez: fique. longe. disso ― Saul sibilou pausadamente as palavras, enquanto a esposa se afastava ainda mais, os dedos trêmulos sem que ela sequer percebesse. ― Leonardo sabe que eu o devolvo para onde ele saiu se disser qualquer coisa que não deve. E seu avô sairá junto dessa fazenda se eu souber que você ou ele estão procurando o que não deviam.

Betina levou a mão trêmula em frente aos lábios, assistindo o marido sair do quarto e fazer as dobradiças da porta reclamarem pela força usada para fechá-la, o som ecoando no quarto vazio. Respirou fundo, ignorando as lágrimas se formando no canto dos olhos.


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