Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 26
Capítulo XXVI




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Leônidas bateu o copo de whisky contra a mesa do escritório, após ter bebido um grande gole de uma só vez.

― Você voltou a Tantris para me ajudar a solucionar os problemas, Matias, não causar mais ― ele declarou, movendo os lábios para provar o gosto da bebida. Para estar bebendo aquilo mesmo quando provavelmente teria de voltar para o trabalho depois, era possível deduzir o quanto o pai estava uma pilha de nervos. 

― O que o Submundo está dizendo sobre a Srta. Gutiérrez?

Assim que a pergunta tomou forma no ar, o médico fuzilou o filho com os olhos azuis. 

― Não seja ingênuo. A Sra. Gutiérrez seria a primeira pessoa disposta a espalhar a notícia pelo Submundo ― Leônidas cuspiu e se pôs de pé, voltando-se para a janela às suas costas. Estava nublado e caía uma fina garoa sobre a cidade, tanto que fora um milagre Matias e Irina terem conseguido retornar para suas casas. Boa parte daquilo se devia a Isaac, que parecia disposto a colocar a irmã sobre um cavalo e trazê-la de volta de qualquer jeito. ― Por que tinha que escolher o pior tipo de pessoa para se envolver?

― A Srta. Gutiérrez...

― A Srta. Gutiérrez não importa ― Leônidas o interrompeu antes que sequer pudesse começar a argumentar. ― O problema em questão é a mãe, que estaria disposta a arriscar a reputação da própria filha se isso lhe desse uma chance de um casamento com você.

Matias ergueu as sobrancelhas com a possibilidade. Pouco conhecia da mãe de Irina ― e céus, era quase impossível não chamá-la pelo primeiro nome em pensamento ― e, assim como Bergoy o alertara dias antes, tinha que concordar: a mulher fazia o tipo oportunista. Contudo, aquilo era um pouco além dos limites do que uma mãe casamenteira faria com a própria filha. 

― Eu ainda mantenho relações com a família por trabalho ― o médico continuou, desviando-se da janela e apoiando as mãos sobre o espaldar da cadeira que ocupava, de frente para o filho. A figura alta do pai projetava uma sombra sobre os objetos dispostos na mesa. ― Quanto a você, afaste-se deles. Esqueça qualquer besteira sobre investigações que você e Meredith estão se enfiando. ― Projetou o corpo para frente, lançando uma sombra ainda maior. ― É sua responsabilidade manter suas irmãs longe de problemas. 

― A Srta. Gutiérrez teme que o irmão possa ter sintomas de uma maldição... ― Matias escapuliu do assunto para tentar usar uma de suas justificativas. Leônidas ergueu-se novamente, esquecendo-se do espaldar da cadeira. 

― Quem é o médico que está tratando Ezequiel?

O bruxo mais novo respirou fundo, sentindo o tapa invisível que o pai estava querendo lhe dar. Decidiu medir cada uma das próximas palavras com cuidado. 

― Os sonhos que Ezequiel tem...

― Não existe doença relacionada à sonhos! ― Leônidas o interrompeu, soando mais exasperado desde que começaram aquela conversa. ― Ezequiel é um rapaz criativo e a irmã acredita em tudo o que ele diz, não dê ouvidos aos dois. Você e principalmente sua irmã.  ― Pegou o copo que estava sobre a mesa e acabou com a bebida em um único gole. ― Apenas os deixei irem à biblioteca de seu avô por acreditar na mentira de Meredith, que procuravam livros de mitologia. Mas pelo visto nem em você posso acreditar mais.

Matias guardou para si sobre as repetições do sonho de Ezequiel e os relatos de Irina de como o rapaz acordava toda noite. Era tolice acreditar que o pai, dentre todas as pessoas que conhecia, acreditaria naquilo, mesmo com todas as evidências que tentasse apresentar. 

Oniromancia era somente um mito antigo para a maioria deles. E Leônidas sempre seria o mais cético daquela família. 

― A partir de hoje, você e Meredith cortarão as relações com os Gutiérrez.

O bruxo mais novo ergueu as sobrancelhas e entreabriu os lábios, surpreso pelo ultimato do pai. E principalmente por tratá-lo como se ele ainda fosse um rapazote que recebesse punições.

― Eu não vou cortar relações com Irina depois do que aconteceu, é desrespeitoso da minha parte.

― Irina? ― Leônidas repetiu o movimento do filho de erguer as sobrancelhas, enquanto pegava um dos livros de suas várias estantes para colocar dentro da valise. ― Os dois estão realmente íntimos, pelo visto. ― Matias censurou-se mentalmente, não encontrando argumentos. Retórica nunca fora seu forte durante os estudos em Direito. ― Darei um jeito no problema que você criou, não se preocupe com a reputação da Srta. Gutiérrez. ― Ele ainda destacou as últimas duas palavras, como se para demonstrar qual era a forma certa de chamá-la. ― Espero que isso não se repita no futuro, pois você não é Bernardo para causar esse tipo de problema.

Matias sentiu um gosto amargo na boca com a menção do nome do irmão mais velho. Sabia que, diferente dele, Bernardo sempre fora o tipo de libertino que adorava se envolver com mulheres às escondidas. Ao menos aquilo não era um segredo para ele e para os membros mais velhos da família.

― Ou está tão disposto a ocupar o posto de seu irmão que quer passar a agir como ele?

Ouvir aquele tipo de provocação vinda do pai não era algo incomum, no entanto, sabendo que Bernardo não estava mais ali e aquele tópico parecia ser um assunto tão sensível que o Dr. Salazarte chegava a se esquivar de qualquer pergunta sobre o filho mais velho, foi como tomar outro tapa invisível. Não, aquilo foi como um soco. Pelo visto, nem mesmo a morte seria capaz de tirar a sombra de Bernardo das costas de Matias.

Ele observou com uma raiva fria nos olhos azuis os movimentos do pai de fechar a valise e empurrar a cadeira de volta para o lugar.

― Estive na casa de Rui no último domingo. ― Leônidas, que estava pegando o copo sobre a mesa para devolvê-lo ao lugar, parou o ato e encarou o filho. ― Ele me contou sobre alguns pertences que estão guardados no sótão e ofereceu-se para devolvê-los. A mãe e tia Inês eram tão próximas...

Medindo cada uma das palavras, Matias aproveitou o súbito rompante de coragem que a raiva lhe causou. Se fosse o irmão, teria confrontado o pai de uma vez há muito tempo atrás, contudo, ele não era Bernardo. Sendo assim, faria as coisas do seu jeito.

Ele não agia feito Bernardo. 

― Achei que estivesse disposto a seguir os passos de seu irmão, mas pelo que me parece você conseguiu uma influência ainda pior. ― O médico pegou o copo e colocou-o sobre a boca da garrafa de whisky, guardada em um dos nichos da estante.

― Rui se tornou um homem de família, tem esposa e filho. O senhor saberia disso se tentasse se aproximar mais de seu sobrinho.

Leônidas, que estava de costas para o filho, voltou-se para ele, enquanto fazia uma análise que durou alguns segundos. Matias sabia que, conhecendo-o tão bem como o pai conhecia, havia percebido perfeitamente o motivo pelo qual estava sendo passivo-agressivo. Prova disso foi um rápido sorriso que passou pelos lábios dele. Daquela vez, Leônidas saiu ganhando.

― Diga a seu primo que mantenha os pertences de Inês guardados, se tem alguma consideração por nós. ― O médico pegou a valise e fez um gesto com a cabeça, indicando para o filho que estava saindo. Ele não se mexeu. ― E, quanto a você, espero que aprenda a ser um pouco menos influenciável, para não tentar seguir os passos de seu primo.

A porta foi aberta e Matias virou o rosto para trás, vendo o pai segurá-la. Aguardou por alguns segundos, considerando as formas de tentar levantar o ponto que queria. A não ser tentar entrar diretamente no assunto, não conseguia pensar em mais nada. O pai continuaria a sair ganhando.

Ele finalmente se levantou e caminhou em direção à saída.

― E antes que pense em passar a noite fora com uma mulher novamente, lembre-se de que ainda tem muito o que fazer na próxima semana. Os inquilinos precisam pagar os aluguéis. ― o médico começou assim que o filho passou ao seu lado. Deixou que saísse e foi junto, fechando a porta. ― Lembre-se que as responsabilidades relacionadas à sua família vêm antes dos seus desejos. Bernardo nunca conseguiu entender isso e espero que com você seja diferente dele. 

Matias assistiu o pai se afastar pelo corredor, para mais alguma visita a um paciente desconhecido. Entre ceder à fome que sentia desde que chegara, alguns minutos atrás, ou deixar para outra hora por sentir um incômodo na boca do estômago, preferiu a segunda opção e dirigiu-se às escadas. Quando subiu alguns degraus, parou, vendo Matilda na outra ponta, com uma capa preta sobre o vestido. A garota soltou um gritinho agudo e voltou correndo para onde veio. Coube ao irmão subir pulando alguns degraus para tentar alcançá-la.

― Onde estava indo? ― ele gritou a pergunta assim que atingiu o segundo andar.

Matilda, que estava prestes a entrar no próprio quarto, virou-se como se movida por um mecanismo, ereta e tensa.

― M-matias, eu não sabia que você tinha voltado ― ela gaguejou, tentando formar um sorriso vacilante nos lábios coloridos em vermelho-cereja. O rouge em suas bochechas era um tom mais claro, mas um tanto chamativo para uma hora daquelas.

― Para onde estava indo vestida desse jeito?

Ele inquiriu novamente o óbvio e a garota foi ficando ainda mais vermelha que a própria maquiagem.

― E-eu ia sair com nosso pai...

― Ele acabou de sair para uma consulta.

― Saiu?! ― a exclamação saiu alta e estridente, enquanto, mesmo de costas para a porta, ela tentava tatear a maçaneta. ― Eu não acredito! Ele tinha prometido que iria sair comigo.

A porta ao lado se abriu e a cabeça de Meredith apareceu pela greta, os olhos indo de um para o outro.

― Eu vou me trocar.

Aproveitando da distração, Matilda abriu a porta do quarto e desapareceu lá dentro, o barulho da chave na fechadura indicando que se trancou. Matias olhou para a outra irmã, tentando entender o que havia acabado de acontecer.

― Ela ia encontrar aquele amante mundano que falei ― Meredith declarou e saiu do próprio quarto, fechando a porta atrás de si.

― Nosso pai permite isso?!

― Duvido que ele seja capaz de acreditar que a garotinha dele está se comportando feito uma devassa. Talvez ela nem seja mais assim tão pura, mas ele acredita em mim? ― Estarrecido, Matias encarou a irmã, sentindo a cor ir embora de seu rosto e o estômago embrulhar. Definitivamente não iria almoçar. ― Como passou a noite?

Simplesmente ignorando a expressão do irmão, a garota o puxou para um abraço. 

― Estou bem. ― Ele forçou um sorriso na intenção de tranquilizá-la. ― E vocês? Como passaram a noite?

Quando os dois se separaram, viu Meredith mover os olhos para o teto antes de voltar para ele.

― Nosso pai reclamou até não poder mais, disse que iria nos proibir de ver os Gutiérrez, coisa que tenho certeza que nem eu e nem você iremos fazer, Matilda me irritou mais um pouquinho... É, acho que foi mais uma noite normal. ― Ela riu, entretanto, parou ao ver a expressão do irmão. Matias tinha certeza que não devia estar com uma aparência muito boa, principalmente porque não se sentia lá muito bem. Talvez não fosse má ideia ir ao escritório do pai e tomar um pouco de whisky. ― Não fique assim... ― Meredith estendeu a mão, na tentativa de segurar o irmão, ele, porém, andou alguns passos para trás, desejando ir para o próprio quarto. ― Eu estava brincando quando disse aquilo. ― Pela risada nervosa, pôde adivinhar que a afirmação a respeito de Matilda não fora uma provocação. Ao menos ao considerar o pavor da irmã caçula e a forma como estava vestida, era óbvio que não. 

― Eu preciso descansar um pouco. ― A garota apenas assentiu, ficando em silêncio na porta do quarto. Matias se virou e caminhou para abrir a maçaneta do quarto em frente, sentindo-se ser observado.

― Você almoçou?

Mais uma vez, forçou um sorriso.

― Não estou com fome.

E abriu a porta do quarto, refugiando-se junto dos próprios pensamentos e da sensação de dor de estômago.

 

 

Apesar da agitação de mais cedo, a tarde voltara a correr como sempre na casa dos Salazarte. Cada um dos irmãos gastou o tempo como bem entendia em seus próprios assuntos ― e Matilda não saiu do quarto, para infortúnio do irmão ―, reuniram-se para um jantar silencioso e, quando Matias estava crente que teria um tempo à sós com a irmã caçula, ela correu para o lado do pai e retirou-se cedo, alegando uma dor de cabeça. Meredith tentou reconfortá-lo novamente com a fala de que estava apenas brincando mais cedo, contudo, não conseguia acreditar naquilo.

Leônidas foi o próximo a se retirar e, percebendo que o irmão não estava com o melhor dos humores, Meredith não demorou muito a seguir o pai. Matias viu-se sozinho na grande sala de estar, assistindo a chuva fina bater contra a janela. Em certo momento, um dos empregados veio para apagar as velas, deixando somente uma acesa, que ele levaria para o quarto quando fosse dormir. 

Ouviu um relógio à distância indicar as onze horas. E silêncio. 

Largado sobre o sofá, ergueu a cabeça para o teto escuro. Tentou recobrar as memórias do dia anterior para trazer algum alento no sufoco que estava sentindo. Funcionava, no entanto, sabia que não podia fazer aquilo para sempre.

Ouviu passos vindos de fora do cômodo e se levantou, decidido a sair dali e ir para o próprio quarto. Deveria ser algum empregado que ainda estava de pé, era o primeiro pensamento que passaria pela mente de qualquer um, no entanto, sequer poderia imaginar, ao sair da sala de estar, que veria que os donos dos passos era o próprio pai. Os dois se encararam no corredor escuro e, mesmo sem ver, podia jurar que Leônidas arregalou os olhos.

― Pensei que estivesse dormindo ― o médico falou aos sussurros na escuridão.

― Estou sem sono... Algum paciente? ― o filho devolveu no mesmo tom, sem querer elevando um pouco a voz na pergunta. A chuva batia com carinho no telhado.

― Acabei de receber uma mensagem, um pai desesperado. ― O bruxo mais novo soltou apenas um “hum”, guardando para si que não ouvira movimentação nenhuma que indicasse a chegada de um mensageiro. E tinha certeza que não pregara os olhos por um instante sequer. ― Devo voltar durante a madrugada. Boa noite.

O médico começou a se afastar e Matias podia jurar que ele estava sem sua valise de sempre, mesmo não enxergando tão bem na penumbra.

― Pai... ― Ao ouvir a voz do filho, ele girou nos calcanhares. Os dois se encararam no escuro. ― Precisamos falar sobre a Matilda.

― Deixemos isso para amanhã, eu preciso ir ― anunciou, as palavras quase colando uma na outra de tão rápido.

Na escuridão, Matias assentiu, escutando outro “boa noite” do pai. Continuou parado, ouvindo os passos se afastarem e morrerem logo após a porta da frente ser aberta e fechada. 

Silêncio. 

E ele definitivamente precisava de uma bebida, pois dormir era algo que não conseguiria tão cedo.

Esquecendo-se da vela na sala, rumou para o escritório do pai, ainda conhecendo bem os corredores da casa. Ouviu o rangido da porta abrindo no silêncio da noite. Uma claridade irrisória entrava pela janela de cortinas abertas e finalmente recordou-se da vela acesa na sala de estar. Com preguiça demais para voltar, decidiu procurar pela bebida no escuro.

Em um nicho da estante mais próxima à parede, encontrou a garrafa e levou-a para o claro. Ao colocar o vidro em cima da mesa, viu um papel abandonado sobre a madeira. Esquecendo-se da bebida da mesma forma que da vela, pegou o papel e caminhou em direção à luz.

 

01 de junho de 1720

Caro Leônidas,

A situação torna-se pior a cada dia, agora sei que não é apenas coisa da minha cabeça. Ana adoeceu duas noites atrás, mas Betina e seu pai cuidaram dela, não se preocupe. Tina diz que ela ficará bem e quero acreditar nisso, mas sei que ela está errada quando diz que a doença de Ana é algo normal. Não é e eu tenho certeza disso, e acho que você também. 

A culpa é toda minha. Sinto muito por ter trazido sua filha para cá, mas agora não podemos voltar atrás. Sinto muito por decepcioná-la dessa forma, mas não sou capaz de fazê-la feliz, como você talvez um dia acreditou. Sinto muito.

Mando-lhe essa carta para pedir sua ajuda, pois não conheço ninguém em Mempolis que seria capaz de fazê-lo sem questionar. Se o problema é a Terra, talvez consigamos alguma resposta dela. Estou lhe enviando uma amostra de um pouco de terra seca de minha propriedade, já que você não pode vir até aqui. Sei que entende sobre maldições e poderá me dar alguma resposta em relação a isso, favorável ou não.

Saul

 

Matias devolveu a carta para onde estava, mastigando toda a informação que acabara de adquirir. 

O que estava acontecendo em Mempolis? Como Saul poderia saber que o pai entendia tão bem de maldições? E Leônidas realmente tinha aquele conhecimento? Afinal, aquilo era o tipo de assunto que patinava demais em magia sombria… 

Estremeceu, lembrando-se da carta da tia e do relato de Rui. Olhou para os livros que o observavam no escuro. Como seu pai sabia tanto sobre maldições?

Abriu uma das gavetas da escrivaninha e tirou de lá um papel limpo. Antes de pegar pena e tinta, encheu o copo com whisky e bebeu de uma vez, sentindo a queimação instantaneamente. 

Precisava escrever para a irmã e principalmente de mais um copo de bebida. 


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