Um Reino de Monstros Vol. 3 escrita por Caliel Alves


Capítulo 4
Capítulo 1: Avante revolução! - Parte 3




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Quem ele pensa que é pra mandar em mim? Unfh, aquele mascarado zé-ruela...

Ela estava caminhando em cima dos terraços. Como a primeira estação estava praticamente ao nível do solo, havia certa linearidade nas construções grandes e retangulares.

A maioria foi construída originalmente para atender a necessidade de moradia dos mineiros que vinham à Cordilheira de Bashvaia com a promessa de enriquecer.

— Ah, até que enfim, civilização!

Era altas horas da noite quando os mineiros vestindo puídos macacões jeans retornaram do trabalho. A 1º Estação era conhecida pelo setor de serviços e casas de jogo.

Despindo-se da pesada túnica amarelada, Rosicler desceu utilizando-se de acrobacias e pousou levemente no solo. A sua frente estava um barulhento cassino.

Para surpresa dela, ao entrar nele, ela se deparou com um bizarro cenário.

— Fiquem quietos, seus animais, quietos! A janta vai ser servida...

Atrás de um gradil, um ogro cinzento — vestido como um mestre-cuca — servia porções de um mingau ralo para os mineiros. A garota, quando viu, já estava na fila.

— E você, belezoca, porque não está de uniforme?

— Bem, hã, é que ele rasgou...

— Uh, tá, toma tua merda.

Pondo um prato de alumínio na mão da gatuna, o monstro jogou a papa fedorenta nele.

— VAZA!

— Obrigado.

Seguindo o desordenado fluxo de operários, a ladra chegou até uma extensa mesa.

Homens e mulheres, e até mesmo crianças devoravam a sua porção de gororoba como se fosse à última — e bem que poderia ser! O regime de trabalho era de dezesseis horas de trabalho diária.

Um homem de pele negra e com cicatrizes de queimaduras nos braços perguntou:

— Vai comer isso não, menina?

Rosicler se virou para ele. Como o seu estômago estava embrulhado, e o trabalhador estivesse muito esfomeado, ela cedeu o seu prato.

O robusto proletário se pôs a devorar o mingau, e lambendo os dedos, lhe agradeceu. Depois ele se voltou para Rosicler, e disfarçadamente, interrogou-a:

— Você não é daqui, né?

— Não... eu sou uma noviça do culto de Enug.

— É um conselho que eu te dou, esqueça essa de se tornar clérigo de Enug e fuja daqui o quanto antes. Olhe em volta, guria...

Os olhos da garota correram por todo o refeitório, que antes era um enorme salão de jogos. Centenas e mais centenas de operários esfomeados trocavam os seus minérios por um punhado de mingau azedo. Era uma cena lastimável para aquela rica região de outrora.

— Como chegaram a esse ponto?

— Como sempre, guria. Unh, digamos que durante anos a FCN comprou a paz através de sua superprodução de minérios, mas a Horda é inegociável! O que eles não controlam, eles simplesmente destroem.

Aos cochichos, tentando até mesmo evitar que as pessoas ao lado os ouvissem, eles avançaram na conversação.

— Porque é perigoso para os clérigos de Enug ficarem aqui?

— Garota, essa coisa de humanos sacerdotes de Enug é uma piada. Os monstros só reconhecem os seus iguais. Eles usam a fé das pessoas para escravizá-las. Os jovens são as principais vítimas, muitos chegaram aqui vindos de todas as partes de Lashra. Os humanos são convertidos e depois escravizados para trabalhar nas minas da cordilheira ou em outro lugar qualquer. Nós não passamos de capachos para as patinhas deles.

Ao seu redor, a ladra percebeu o quanto os jovens sofriam naquela situação.

— E a Assembleia não fez nada para impedir o avanço da Horda?

— Hehehe, essa terra já foi lar de grandes guerreiros, guria. Mas graças à corrida pelos metais preciosos, os guerreiros foram cedendo lugar para os gananciosos.

O velho mineiro continuou a narrar à história da Cordilheira de Bashvaia.

Em outra época, as montanhas eram moradia de um grupo de guerreiros que se dividiu em dois clãs: um deles voltado para a metalurgia, o chamado Yorg; e o outro para o comércio, conhecido como Lungaster.

Entrando em conflito pela disputa do território, o clã Yorg utilizando da sua rede de influência, e o seu conhecimento das rotas montanhesas, atacou os Lungaster.

— E aí, rolou o quê?

— O clã Yorg ofereceu a todos que se juntassem a sua campanha militar, o direito de participação na exploração das minas da Cordilheira de Bashvaia. Sesmarias foram feitas e entregues aos bravos homens que expulsaram o clã Lungaster.

— E quanto aos Lungaster?

— Provavelmente eles foram mortos. O clã saiu enfraquecido e sem respeito das montanhas.

A ladina ergueu as sobrancelhas. Para um trabalhador como aquele, o seu nível de informação e maneira de se expressar era muito refinado.

— E como você sabe de tudo isso, coroa?

— Hehehehe, antes de ser um proletário explorado por monstros, eu era um famoso armeiro, guria. E antes de ser um armeiro, eu já fui um brilhante...

Um sino soou, e o ogro despediu os mineiros, eles deveriam voltar aos seus alojamentos.

— Bem, agora nós temos que ir!

— Ir aonde, cara pálida?

— No alojamento poderemos conversar sem o risco de vigilância.

O cortejo funéreo saiu da cantina improvisada e seguiu até o dormitório dos escravos.

Caveiras e gnomos patrulhavam as ruas, estes últimos eram criaturas estranhas. Seres tão grande quanto anões, vestidos em túnicas de pele, descalços e com um barrete marrom. Os olhos eram vivazes, os rostos arredondados eram adornados com longas barbas.

— Esses sãos os únicos guardas da cidade?

— Não subestime o seu tamanho. Os gnomos possuem magias divinas poderosas, mas os mais perigosos não são eles, são os alto-oficiais do Batalhão Colossal.

Aquela informação veio a calhar, a garota entrou num prédio caindo aos pedaços.

Em cima de esteiras, os trabalhadores foram deitando uns sobre os outros.

Em pé, Rosicler encarava os olhares atônitos dos proletários de caras cheias de fuligem, deitados sem conforto, aliás, sem nem o direito a uma muda de roupa e um banho.

Um dos mineiros apontou o dedo para a ladina e perguntou receoso:

— Quem é essa aí, Z?

— Uma amiga.

“Z”! Isso é nome de gente, rapa?

A gatuna, embora não desejasse, tinha se tornado o centro das atenções.

— É sempre você que nos arruma problema.

— É porque eu não consigo viver debaixo da bota de ninguém.

Problema, hein, seu Z? Adoro os manos problemáticos.

— Olha, tio, falamos do passado, mas agora vamos falar do futuro: quem lidera a célula da Resistência da FCN?

— Hehehe, infelizmente ela nunca existiu.

A ladina ficou chocada. Era um dos únicos lugares onde tinha chegado que a Resistência não atuava. Aquilo era mal, muito mal.

— M-mas c-como a-assim, velhote?

— É como eu já te disse, guria, isso aqui não é mais um lar de guerreiros, e também não é mais um lugar de comerciantes e mineradores. No mínimo, nos tornamos um covil de covardes e inúteis que não conseguem lutar pela própria vida.

Com as palavras dura do velho, todos os outros ficaram cabisbaixos na hora.

Os mineiros que o indagara antes, se exaltaram mais uma vez, um deles disse, raivoso:

— E como libertaríamos sete estações da FCN sob a liderança de um velho armeiro coxo?

Dessa vez foi Z que curvou a sua cabeça com os olhos marejados.

Rosicler ficou aturdida. As pessoas da 1º Estação estavam cansadas, alienadas e sem esperança. A ladra foi até Z e ergueu a sua cabeça. O homem limpou uma lágrima.

— Já descobri o problema da FCN, não é medo, é desunião mermo, veio.

Para dar mais ênfase ao seu discurso, ela bateu o punho fechado na outra palma aberta.

— E como pretende nos libertar daqui sua imbecil? Aliás, quem garante que não estamos diante de uma espiã dos monstros?

A garota destemida foi até o operário e armou um soco, e só não o desferiu por que o sujeito se desmanchou no chão feito uma manteiga.

— Snif-snif, não me bata, por favor, snif...

Eu é que não vou sujar a minha mão tocando em tu, traste.

— Perdoe-o, guria. A FCN nunca teve um “verdadeiro exército”, o máximo que a Assembleia da cordilheira fez foi contratar mercenários para defender as montanhas. O povo das montanhas nunca recebeu nenhum treinamento militar, embora sejamos os maiores produtores de armas do mundo.

— Todos esses anos vocês forjaram armas para matar a vocês mesmos?

Os operários ficaram ainda mais abalados pelas palavras da ladina.

— Eu estou metendo o pau em vocês, reage, cambada!

Os trabalhadores, no entanto, nada responderam a ela. A ladra caminhou cambaleante por entre as diversas esteiras do imundo dormitório.

— E o que me dizem de se livrar desses desgraçados que a gente chama de monstros?

— Eu já tentei provocar um levante, guria, é inútil.

— Quem quer a mudança, tem que promover a mudança.

Com as palavras da garota de bandana, os proletários se levantaram.

— E digo mais, gente fina, se nois quiser mudar esse bagulho, nós temos que lutar.

Com essa última frase, os mineradores, com exceção de Z, sentaram-se novamente.

Rosicler soltou um longo suspiro e bateu os dedos dobrados na testa. O diálogo estava sendo muito improdutivo. Ela então estirou o dedo médio e disse:

— E se lhes déssemos a prova de que podemos trazer à liberdade a FCN, aliás, só pra vocês ficarem sabendo, modéstia à parte, a mina aqui já ajudou a salvar um Baronato.

— Então é verdade? Não me diga que você é...

— Rosicler Cochrane ao vivo e a cores para todos na Cordilheira de Bashvaia.

— Cochrane, é? Esse nome não me traz boas recordações...

— Eu deixei de te bater naquela hora por piedade, mano, mas agora tu já tá passando dos limites.

E apertando o punho, Rosicler fez o rapaz encolher-se no canto de novo. A ladina gesticulando muito, se apresentou como a futura salvadora do proletariado bashvaio.

— Eu, Rosicler Cochrane, assumo o compromisso de libertar todos os manos e minas.

Recebendo aplausos, a gatuna agradeceu fazendo uma gesta. De repente, alguém bateu na porta do dormitório perguntando sobre o barulho, era uma caveira.

— Vão dormir, bando de preguiçosos.

— Desculpe.

Z cochichou nos ouvidos de Rosicler que era melhor ela ir logo embora. Quando o seu grupo quisesse, os mineiros estariam prontos para ajudá-los.

Pela janela do dormitório, a garota desapareceu pela penumbra da noite.


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