O Homem que Perdeu a Alma escrita por Willow Oak Acanthus


Capítulo 32
Bônus - O Albatroz.


Notas iniciais do capítulo

Notas iniciais:
E eu venho querendo te dizer
Eu acho que sua casa é assombrada
Seu pai está sempre bravo e deve ser por isso
Eu acho que você deveria vir morar comigo
E nós poderemos ser piratas
Então você não terá que chorar
Ou se esconder no armário
E como uma música folclórica
Nosso amor será passado adiante – Taylor Swift, Seven.

Mãe, escute o meu coração... Mãe
escute meu coração
Assim enquanto termina uma batida, começa a outra
Você pode ouvir, não importa onde você está.
Irmã
esconda o nosso amor do mal nós dois conhecemos

Ele pode nos ver através destes dias escuros
Embora eles pareçam escurecer enquanto eu vou
Nosso amor vai nos ver através destes dias escuros, irmã
Até ele iluminar o caminho de volta para casa...
Irmã esconda o nosso amor
Ele pode virar o mundo de cabeça para baixo – The Punch Brothers, Dark Days.

Você foi, foi, foi embora.
Eu te vi desaparecer.
Tudo o que resta é um fantasma de você.
Agora estamos despedaçados, despedaçados,
destruídos.
Não há nada que possamos fazer.
Apenas deixe-me ir, logo nos encontraremos.

Agora espere, espere, espere por mim.
Por favor aguarde.
Eu vejo você quando adormeço.

Porque embora a verdade possa variar,
Este barco levará
Nossos corpos em segurança para a encosta. – Of Monsters And Men, Little Talks.

Caro leitor(a),
Todos os meus personagens são uma parte de mim (mesmo os que eu peguei emprestado com nosso querido Eric Kripke, afinal, aqui eles existem com o meu olhar e interpretação). A Hazel é o filtro no meu olhar, tão melancólico ao enxergar o mundo, é meu coração e a minha essência “poética”, meu lirismo, meu medo do abandono, meu romantismo profundo e desesperado. O Sam é a minha parte escura, tão cheia de luz ao mesmo tempo. Ele é o muro que eu construo quando tudo está doendo demais, ele é a minha parte que nunca se encaixou em lugar nenhum, o meu silêncio quando eu me sufoco com os meus gritos, ele sou eu quando eu me isolo de todo mundo e não deixo ninguém me acessar. Ele sou eu com meus segredos e as minhas mentiras. É o meu lado que sempre foi julgado e cuspido e pisado pelas pessoas ao meu redor. O Dean é meu lado leve, meu lado protetor, meu lado mártir. Castiel é a inocência que me sobrou, a esperança tola no meu peito. A Jo é o meu jeito de enfrentar o mundo quando me sinto atacada, é o afiado das minhas repostas atravessadas. Amélie e Gabrielle são os fantasmas da minha passividade quando eu devia ter erguido a minha voz para me proteger.
Todas. Aquelas. Malditas. Vezes.
E o Jesse é o meu lado cínico, niilista, rancoroso, vingativo e silencioso. Ele é a criança machucada que grita em mim todo dia. Ele também é a ironia que disfarça o tamanho do amor que eu trago no peito, sem ideia nenhuma de como conviver com tanto. Tudo para ele é...muito. Tudo para mim sempre foi muito. Ele é o meu lado que não acha que merece estar aqui.
Você merece, Jesse. Que bom que eu consegui materializar no papel (E na tela?! Oi oi modernidade) um personagem como você.

Após esse monólogo gigante que não tenho certeza se foi lido por alguém ou não, fiquem com esse bônus. O próximo capítulo deve sair na próxima semana.
Boa leitura.



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Ponto de vista de Jesse Turner, arredores de Lawrence.

 

Minha cabeça está apoiada na janela, enquanto tenho meus braços cruzados na frente do meu peito, estou encolhido graças ao frio. Olho de relance para Lavie, que está adormecida ao meu lado e vejo o seu rosto encostado na janela, os cabelos castanhos compridos estão espalhados pelos seus ombros. O sol da tardezinha brilha em suas bochechas, e ela está se abraçando, encolhida. Dou um longo suspiro ao observá-la. Ela tem sido tão forte, tem enfrentado tudo de cabeça erguida.

Sorrio de lado, quase que involuntariamente. Fecho os olhos por um momento, e sou invadido por um cansaço intenso enquanto o carro balança suavemente na estrada.

Adormeço, e fico navegando no meu subconsciente, quando sou invadido por uma lembrança, e é inevitável deixar ela possuir a minha mente, me encharcando com o passado.

Eu vejo tudo em terceira pessoa, como um turista enquanto mergulho em um pesadelo.

—Lavie, Lavie!— Eu devo ter uns oito anos nessa lembrança. Hazel estava se balançando em um dos balanços que ficava perto do trailer da minha mãe, ouvindo a música California Dreamin em um rádio velho que ficava apoiado em um tronco perto dos balanços e de uma mesa de plástico onde a maioria das nossas refeições costumavam acontecer. Deixo as vozes na música me embalarem enquanto me aprofundo na lembrança – Olha o que eu consegui!

Vejo o pequeno Jesse estender um DVD para ela, vitorioso. Lembro como o sol nos olhos dela faziam eu sentir um pouco de inveja, já que os meus olhos sempre foram muito escuros.

Como os de Harvey.

Tá brincando!?— Ouço ela dizer, animada, se levantando com seu short jeans e seu cropped de tricô branco, sua mãe a vestia como uma nativa da California e Hazel odiava isso – Onde arranjou isso?

O Jesse de oito anos dá de ombros.

É segredo...— Eu adorava fazer mistério até das coisas mais simples. A verdade é que só havia encontrado aquele DVD no fundo do baú de tralhas da minha mãe. Mas cadê o glamour disso, afinal? Quando eu disse “É segredo” tenho certeza de que ela imaginou cenários muito mais interessantes. Ela rola os olhos e ri.

E o que estamos esperando?! Ela puxa o garotinho, eu, pelo braço agarrando-o pela blusa preta, e nos enfiamos no trailer de mamãe.

A próxima parte do sonho fica meio embaçada, e parece avançar. Durante o resto do dia, assistimos ao filme “Ghostbusters 2” umas três vezes no mínimo. O filme acabava e a gente colocava de novo.

No fim do dia, deixamos aquela maldita música no último volume e ficamos cantando sem parar. Dou um sorriso quando vejo as duas crianças erguendo suas vozes em conjunto.

If there's something strange in your neighborhood.... Who ya gonna call? — O pequeno Jesse começa atiçando Lavie a continuar.

Ghostbursters!— Ela completa. Hazel e eu sempre tivemos vozes bonitas e um talento musical, ambos herdamos isso de Harvey Talbot, e acredito que se ele não tivesse traumatizado a nós dois, talvez tivéssemos nos inclinado para a área da música. Acho que nunca vou saber.

Dou um longo suspiro, porque me lembro de como aquele dia terminou. Um calafrio me percorre, e por mais que eu tente parar a lembrança por aí, não consigo. É como ser atingido por uma flecha. Quero acordar...

Quero tanto acordar.

Hazel havia adormecido em meu peito, no sofá sujo e velho da sala. A TV estava chiando quando acordei, com George White sentado ao nosso lado, me olhando como se eu fosse seu bichinho de estimação que fugiu. Minha mãe estava enrolada em seu chale, apoiada na parede, tensa como sempre ficava.

Turner.— A voz assombrosa dele me arrepia, mesmo apenas como uma lembrança distante – Precisamos conversar.

Me lembro de apenas assentir e de repente, não estou mais assistindo em terceira pessoa. Sou o garotinho.

Consigo sair do sofá sem acordar Lavie, e imploro com os olhos para a minha mãe para que ela impeça.

Mas ela nunca impediu.

Embora a ame e sinta a falta dela, nunca a perdoarei por sua passividade.

O céu estava tão estrelado aquela noite. Eu tinha perdido um dente de leite e tinha aprendido a fazer minhas primeiras contas de divisão. Seria um verão normal para mim, se eu não fosse quem eu era.

Se não estivesse onde estava. Do lado de fora, volto a estar em terceira pessoa, e observo o garotinho franzino de olhar assustado perto do homem mais nojento que já viveu na terra.

Ela precisa voltar a praticar. A voz dele foi fria, e ele se sentou no balanço que a minha irmã mais gostava. Lembro que isso me irritou, como uma violação.

Ela não está pronta, Sr. White.— O garoto embarga a voz. Está tão assustado – Entrar na cabeça das pessoas deixou ela muito mal.

Ela precisa ser forte, como você tem sido, Jesse.— Ele contrapõe, segurando as mãos nas correntes do balanço, seus olhos castanhos fitando o garotinho bem no fundo da alma— Ela não percorreu nem metade do caminho. E se você não ajudar ela a se desbloquear, eu vou. Você quer que eu faça isso?

Ele estremece e olha para George White, apavorado. Olhar para o velho me deixa zonzo, ver o seu sorriso de lado, o suor em seu rosto, e o fedor de álcool do seu corpo, ainda me dá náuseas. Balancei a cabeça em negativa completamente em pânico, junto com o garoto.

Não, por favor. Eu vou ajudar ela, eu vou...— Minha voz morreu, é claro. Eu tinha oito anos, porra. Eu não sabia o que fazer.

Só sabia que estava apavorado.

Você tem pouco tempo para convencer ela a voltar, meu garoto especial...— Eu sentia vontade de morrer quando ele me chamava assim. George se levantou e foi na direção do garotinho, fazendo eu me estremecer ao vê-lo tão perto assim. Ele se posiciona atrás do garoto, suas mãos grandes e pesadas com unhas escuras em seus ombros, o acariciando. Esfrego meus ombros, apavorado, porque ainda sinto o peso de suas mãos todas as noites antes de dormir— Vocês são minhas crianças especiais, se lembra? Não podemos falhar, e por falar nisso...vamos ver como está a sua telecinese?

Eu estou muito cansado, Sr. White...—  Vejo o garotinho responder a isso quase chorando Posso ir dormir, por favor? Por favor...

Eu quero ver, garoto!— Ele responde, muito irritado. George sai detrás do pequeno Jesse e começa a buscar algo ao seu redor. Ele sorri e seus olhos brilham assim que avistam um gato que revirava uma lata de lixo próxima a nós dois.

Eu me encolho, quero sair correndo dessa lembrança. Mas meus pés estão presos no chão, e eu não consigo fazer nada além de testemunhar.

Não, por favor, Sr. White. Não!— O garoto se encolhe, porque sabia o que George faria a seguir.

Ah, sim, Turner. Como vai servir o seu propósito se não consegue lidar com isso? Vamos, deixe-me ver. Se você hesitar mais uma vez, eu acordo Hazel e ela vai fazer o papel do gato. O que você prefere, hm?!— Vejo o pequeno Jesse balançando a cabeça de um lado para o outro sem parar enquanto lágrimas o acometem – Faça!— O grito de White ecoa na minha cabeça até hoje.

Quero ir embora da lembrança. Faço força com a mente, para não ver o garoto de oito anos erguendo suas mãos no ar enquanto chora descontroladamente, forçado a fazer um gato inocente se contorcer, como um animal de circo mostrando suas habilidades adestradas ao seu dono.

Fecho os olhos com força. Os gritos do gato ainda estão aqui, bem dentro do meu peito.

Aquele foi o último mês de Lavie na família universal. Tudo começou a ruir com o enfraquecimento de Astaroth.

Harvey escolheu qual dos filhos levar consigo, acreditando estar livre do seu pacto.

É curioso, se parar para pensar. Ele me traumatizou por nunca ligar para mim, por me apagar da própria história, e traumatizou Hazel por ligar demais para ela, de um jeito doentio.

O que mata com mais frieza? A ausência de um pai ou a presença dele? Acho que nunca vou saber.

Sou engolido pelo chão durante o pesadelo, e sou transportado para uma lembrança mais antiga.

Gabrielle Turner está cantando uma canção de ninar francesa no balcão da cozinha, comigo em cima do balcão, lambuzado de chocolate. Me encolho de dor e fecho os olhos quando ouço a voz dela cantar docemente para o garotinho:

“À la claire fontaine
        M’en allant promener
        J’ai trouvé l’eau si belle
        Que je m’y suis baigné
        Il y a longtemps que je t’aime
        Jamais je ne t’oublierai”

Em uma fonte clara

Ao sair para passear

Achei a água tão linda

Que eu tomei banho lá

Eu te amo há muito tempo

nunca te esquecerei”

Mamãe, por que o papai só vem de vez em quando? Por que só vejo ele na televisão?  – Abro os olhos quando a voz aguda do garotinho se faz presente. Cruzo os braços quando assisto Gabrielle suspirar fundo, ajeitando os cabelos loiros em um coque bagunçado. Olho ao meu redor, tentando reconhecer onde estamos.

É a nossa antiga casa, na Pensilvânia. Devo ter cinco anos, no máximo.

Porque a mamãe e o papai não estão mais juntos, e ele tem uma nova namorada. – Ela diz isso com a voz amargurada. Balanço a cabeça em negativa, irritado por ver uma mulher como aquela sofrendo por um homem como aquele. Acho que se encontravam em segredo, sem Amélie saber, e talvez ele tenha “terminado” com ela, já que estava famoso demais a essa altura e um affair certamente não passaria desapercebido pela mídia – E ele tem uma nova família.

E não podemos ser uma família grandona?— O garotinho abre os braços no ar, os olhos tão castanhos iluminados pelo sol. Gabrielle olha na direção oposta, para não chorar.

Ah, mãe...

Escuta, mon petit... seu pai tem uma vida complicada. Mas adivinha só? Ele deu a ideia de a gente se mudar para um lugar bem legal, na Califórnia. Lá, ele vai te visitar com mais frequência, tá bem? Mas a namorada dele não pode saber de você.— Quero socar alguma coisa quando ela diz isso. Ela realmente esperava que eu entendesse o que ela queria dizer com isso? Eu era só uma criança, porra.

Eu não vou me comportar mal com ela, mamãe. Por que ela não pode saber de mim? – Gabrielle pega o pequeno garotinho no colo e o leva para a frente de um espelho velho, pendurado na parede descascada.

Porque você é um segredo, tipo... tipo aqueles super-heróis que você gosta!— Ela improvisa, com um nó na garganta, perdida sobre como agir – Você é um segredo incrível, Jesse. Um segredo só meu e do papai, tudo bem? Pode me prometer?

O pequeno assente, confuso, mas animado por ser algo tão especial como um segredo.

Rio com raiva. Ah, seu idiota... se você soubesse.

Você é a porra de um bastardo, Jesse. Não há nada de especial nisso. E você foi a porra de um segredo porque você nem deveria estar aqui. Chuto a bancada da cozinha, mas não sinto nada. Estou em um pesadelo, afinal. Sou feito de fumaça.

Queria ter fingido não existir assim como Harvey fez. Pareceu tão fácil para ele.

E ele tem uma filha. E você pode brincar com ela o quanto quiser, mas ela não pode saber sobre você também, tá bem, mon petit? – Ela o olha em expectativa. Ele pisca os olhinhos marrons e escuros.

Sou um segredo para ela também?— Gabrielle Turner assente, e o garoto absorve a informação, atento.

Isso. E lá vocês vão... para uma escolinha especial, coisa do seu pai, eu não discuto porque... eu não sei muitas coisas sobre a américa, mon petit. A mamãe veio para cá sozinha, meu inglês não é bom e mesmo com o sobrenome adaptado, empregos são difíceis. Ele sabe o que é melhor para nós, ok?— O menino faz que sim e se encosta no peito da mãe, querendo ser aninhado, confuso com tantas informações.

Até tinha me esquecido disso. Nosso sobrenome verdadeiro era “Tourneur”, mas mamãe adaptou para Turner quando chegou nos Estados Unidos.

Quando se fica anos demais nas sombras, esses pequenos detalhes desaparecem.

XXX

Uma tela escura me cobre, e sou jogado alguns anos depois.

Me sinto sufocado quando vejo o garoto de sete anos sem camisa, parado no meio de uma sala cinza cheia de almofadas coloridas espalhadas pelo chão. O garoto está em choque, parado, estático e suado. Os cabelos pretos bagunçados e levemente compridos lhe cobrem os olhos cheios de raiva.

Isso permanece até hoje. Não mudei muito nesse aspecto.

George White está meditando, os olhos fechados e o corpo magro com costelas amostra, também sem camisa. O cheiro sufocante dos incensos me deixa tonto, e após um tempo, o líder de seita abre os olhos para observar o menino.

Você tem sentido seus poderes se enfraquecendo, garoto especial?— Ele pergunta ao garoto, e posso ver que está transtornado. Talvez soubesse que Astaroth estava caindo, perdendo forças e o abandonando. Talvez por isso mesmo tenha sido especialmente cruel nos últimos anos em que fui obrigado a conviver com ele.

Não. Continuo forte.— O garoto responde, rodeado de corpos de pardais mortos, por sua telecinese. O garoto se sente vazio a cada corpo sem vida no chão.

Ele me fez fazer isso. Ele me fez fazer isso. Ele me fez fazer isso.

Até hoje, quando ouço os pardais cantarem, sinto que estão vindo me levar para o inferno. O canto deles é a minha sentença.

O grito de Hazel me estremece, e o garoto olha para a porta, apavorado, assim como eu.

O que estão fazendo com Lavie?!— O garoto corre até a porta, e começa a bater nela com raiva e desespero – Lavie?! Lavie?!

George White se levanta, sereno, e caminha até o garoto, o olhando como se sua fúria lhe fosse adorável.

Ela está tendo dificuldades com... os poderes da mente. Ela não é esforçada e poderosa como você, Jesse... ela não é tão especial. – O velho passa a mão ossuda nos cabelos do garoto, que se afasta dele com raiva.

Eu quero ver ela! Eu quero ver ela agora!— Os gritos de Hazel continuam do outro lado, e o longo suspiro de George White me faz estremecer.

Tudo bem, você foi um bom garoto hoje.— O homem aponta para os pardais mortos no chão. O cheiro de penas e sangue me embrulha o estômago. Quando White abre a porta, um homem de olhos brancos está segurando Hazel pelo colarinho, e ela tem muito sangue no rosto, provavelmente o sangue que saiu do seu nariz enquanto ela era forçada a fazer tanta força com seus poderes. Encolhida em um canto, está uma mulher jovem. – Dantalion...— George pronuncia o nome do demônio a sua frente com soberania – Algum progresso?

O demônio faz que não, soltando Lavie no chão, como se ela não valesse nada. O pequeno Jesse corre até ela, abraçando-a com desespero nos olhos e nos braços trêmulos.

Eles a levavam ao limite com a mente, e a mim com a telecinese.

Ela se apavora, e fica gritando como um porco no matadouro...— Dantalion responde, dando de ombros – Mas tentamos de novo amanhã, senão o cérebro da menina vai derreter e ela vai virar uma moribunda ou coisa pior. Deixe-a descansar.

George assentiu, e respirou fundo, cansado, como se fôssemos duas crianças lhe dando trabalho.

Filho da puta.

Bom trabalho, de qualquer forma, Dant. Algum sinal... do nosso senhor?— A expectativa no olhar do líder é visível, mas o olhar desanimador do demônio logo lhe cobre com desesperança.

Não, Sr. White. Mas... sejamos pacientes.— Não presto tanta atenção na interação dos dois, minha atenção está focada nas duas crianças apavoradas e exaustas no chão – Posso ficar com essa daqui? É minha noite de folga.— O demônio aponta para a mulher jovem, que começa a gritar assim que George sorri e assente, arrastando as duas crianças dali, deixando a mulher a sós com o demônio.

Não sei o nome dela. Nunca soube.

Mas sei que a morte deve ter sido um acalento para ela, atrás daquela porta.

XXX

O garoto está lavando o rosto da irmã, tirando o sangue do queixo dela com um pano molhado. Afinal... eles tinham que voltar intactos para casa, e não podiam falar nada do que haviam aprendido na “escolinha”. Era isso, ou nossas mães sofreriam as consequências. Elas não faziam ideia. E tudo o que queríamos era protegê-las.

Se Harvey sabia ou não, pouco importa. Não sei o que é pior, honestamente.

O que você viu, Lavie? O que... fizeram você ver?— O menino tentava entender por que a irmã estava chorando mais que o normal, tremendo como se estivesse sofrendo uma hipotermia.

O...o...- Ela gagueja e engasga com o choro – O homem... o homem machucou ela. Eu vi ele...machucando ela.

O garoto franze o cenho, confuso.

Machucando... como, Lavie?— Ele até deixa o pano molhado de lado, e se senta de frente para a irmã. Eu quero ir embora daqui. Eu me lembro disso.

Eu me lembro muito bem disso.

Daquele jeito, Jesse. Daquele jeito.— A menina sibila entre o choro, a voz rouca e os olhos vazios. O menino entende. Ele sabe.

Do...do jeito que o George machuca...a gente...as vezes?— O menino fala devagar. A menina assente, os olhos vidrados no nada. Ele respira fundo. Esse é um assunto que os dois evitam a todo custo, até porque nenhum dos dois entendem direito o que acontece com eles. Sinto vontade de vomitar. Éramos apenas crianças...Entendi. Ei, Lavie, olha aqui...— O menino busca a moeda de prata disforme com medusa na coroa em seu bolso, e enfia a moeda na palma da mão da irmã, e sorri para ela, como se ele mesmo não estivesse apavorado – Vamos. Jogue o Jogo.

Não consigo, Jesse...- Ela se encolhe, o choro por todo o seu rosto vermelho e assustado – Eu fico lembrando dela, dele machucando ela!  – Lavie segura a própria cabeça com as mãos pequenas, e fecha os olhos com força – E eu lembro dele machucando a gente também...

O menino sacode a cabeça em negativa e aperta com delicadeza a moeda na mão da irmã.

Escuta aqui, Lavie. A moeda é mágica, lembra? Vai passar, Lavie! Gira na sua mão como eu te ensinei, vamos!— O menino está desesperado. Está no limite – Gire e faça como eu te ensinei...

Ele segura o rosto dela em suas mãos, e meio as lágrimas, a menina faz o que o menino pede. Ela murmura...

“Se não me lembro, não me machuca”

Várias vezes, jogando o jogo que o amigo que ela não faz ideia de que é o irmão que morreria por ela a ensinou, acreditando que a moeda é mágica de verdade, quando não passava de um pedaço de prata velho.

Sem saber que, não muito tempo depois, o garoto aperfeiçoaria os próprios poderes para transformar a moeda em um receptáculo para suas piores lembranças, para salvá-la de toda a sujeira que havia sido jogado em cima deles dois.

E mais uma vez, o garoto se tornaria o segredo que havia sido criado para ser.

Até mesmo para a pessoa que mais amava no mundo, porque ela era mais importante do que a dor dele.

Ela seria capaz de amar e ser amada hoje em dia se ela se lembrasse do que acontecia no escuro, entre o homem, o irmão e a perversidade? Não.

Ela suportaria lembrar do que acontecia quando ninguém estava por perto, sendo forçada a usar seus poderes até a exaustão? E sendo punida de maneiras horríveis quando falhava? Não.

Ela teria nojo de ser beijada, abraçada, amada. Ela sentiria asco, como eu senti a vida inteira.

Eu a salvei e salvaria para sempre. De novo e de novo e de novo.

Como um maldito segredo.

XXX

O pesadelo começa a se dissolver em fumaça negra enquanto eu escuto pardais cantando e gritando com a máxima força de suas pequenas gargantas enquanto me encolho e sou jogado em uma memória que aconteceu poucos dias depois da anterior. Vejo primeiro George White, revirando livros antigos e empoeirados em sua sala particular, que tem cheiro de ópio, incensos e suor. Me sinto oprimido pelas paredes amarelas, e o pequeno Jesse Turner entra dentro do ambiente, retraído ao ponto de todos os músculos de seu pequeno corpo se contraírem.

Ele fica parado frente à mesa de White, os braços cruzados e o maxilar contraído. O velho finalmente ergue os olhos vazios das páginas amareladas e faz um gesto com o braço que indica que o garoto pode se sentar à sua frente.

Já ouviu falar sobre Adão e Eva, Jesse?— George entoa a pergunta descontraído, como se não estivesse prestes a dizer atrocidades a um garoto de oito anos. Jesse assente, confuso. Onde essa conversa pretende chegar? Lembro de pensar -Muito bem. Você se lembra que eles eram irmãos, mas também eram o início da humanidade? Depois de eles conhecerem o pecado original, vieram Caim e Abel, e depois todos os demais, você se lembra disso?— O pequeno Jesse dá de ombros. Nunca ligou para a bíblia, ou para o alcorão, ou para qualquer livro sagrado escrito por homens chapados no deserto em idiomas mal traduzidos e frases tiradas de contexto. O Jesse adulto se sente da mesma forma – Você e Hazel são crianças especiais, são o sol e a lua, lembra, Turner?

Onde o senhor quer chegar?— O menino começou a juntar os pontos, sei disso só de observar seu olhar conturbado e suas sobrancelhas arqueadas. O líder de seita se levanta da sua cadeira, e o menino se encolhe involuntariamente todas as vezes que o velho se move. É instintivo como respirar. O homem se senta na mesa, de frente para o pequeno Jesse, e sorri.

Vocês vão ser como Adão e Eva, Jesse. Vão criar uma nova era para a humanidade. É para isso que foram criados, é por isso que estão aqui na família universal. – Meu coração acelera como o do garoto, que sente a própria temperatura despencar por choque. Do que ele estava falando?! – Vocês vão se casar quando ela deixar de ser uma criança, e você vai engravidá-la o mais rápido possível, para que o nosso senhor possa reinar sobre o mundo. Para que o nosso senhor fique bem de novo, para que volte para nós...

O fascínio assustador de White fez o garoto se levantar da cadeira cambaleando, completamente transtornado.

Você está ficando louco?! Ela é minha irmã!— O garoto juntou toda a sua coragem para enfrentar George White, gritando com ele daquele jeito. Queria que ele não tivesse feito isso, porque seria em vão de qualquer maneira. O velho fica sorrindo em silêncio enquanto observa o garoto chorar e gritar. A catarse da criança é divertida para ele – Eu não vou fazer isso, ela não vai fazer isso! Ela é minha irmã! Minha irmã!

O soco que o atinge é tão rápido e forte que, mesmo que eu saiba o que ia acontecer, me sobressalto de choque. O menino cai no chão com o nariz sangrando, os olhos arregalados e a confusão lhe consumindo.

Você não entendeu, Jesse.— O velho umedece os lábios e acende um cigarro, que ele traga devagar após se ajoelhar na frente do menino, que treme por completo, mas não ousa se mexer – Vocês nasceram e foram criados para isso, e apenas para isso. O pai de vocês, o verdadeiro, vai ter o que quer, e não são duas crianças mimadas que o impedirão disso. Sabe, foi por isso mesmo que ele me escolheu, Jesse.— George se senta no chão de maneira relaxada e tranquila enquanto fuma e observa o menino com sua cabeça apoiada em sua mão – Por saber que só eu seria capaz de dobrar as morais tolas da humanidade que foram impostas a vocês e fazer vocês enxergarem que são especiais! Porque acha que eu quebro vocês, Jesse?! Ein?!— Agora, ele está gritando, e o menino permanece estático – Para construí-los de uma maneira nova, perfeita!

O pequeno cérebro de oito anos não conseguiu absorver nem um terço de tudo aquilo, é claro, como a maioria das coisas que aconteceram. Eu só vim as compreender depois de adulto.

E ainda assim, não compreendo nem metade delas. O quebra-cabeça está incompleto, sempre esteve. E sempre vai estar.

E-eu....eu não...— O menino balbucia, entre as lágrimas e o olhar perdido. Não consegue reagir, não mais do que isso – Não...

George White sorri ao ver a confusão e a vulnerabilidade do menino, e lhe dá dois tapinhas fracos no rosto.

Não se preocupe, você não precisa entender agora. Nem precisa contar a ela, Jesse. Deixe essa parte comigo, e se ela tornar as coisas difíceis para nós dois, bom... é por isso mesmo que eu te acho mais especial, Jesse. Você é um bom soldado e não vai me decepcionar, afinal... você sabe o que está em jogo, não é?— O líder se levanta, e o menino permanece no chão.

Como se ele fosse se abrir e engoli-lo.

Ela é minha irmã, ela...- O menino sussurra com o rosto vidrado no nada, o peito subindo e descendo – Minha irmã...

O homem se irrita com o choque do garoto e rola os olhos.

Pode ir embora agora, Jesse. Nós conversaremos quando você estiver melhor.— E, com tamanha frieza como iniciou essa conversa, a encerrou.

Aquela noite, o garoto não dorme. O garoto molha a própria cama de madrugada e sente vergonha por isso. As quatro da manhã, está esfregando a pele com tanta força que a irrita e a deixa vermelha. Como se o chuveiro fosse lavar as palavras de George.

E o toque de George, e a morte dos pardais, e os gritos do gato.

E todo o resto.

Preciso fugir.— O menino murmura para si mesmo, os olhos no teto – E preciso levar Lavie comigo.

Eu devia ter feito isso mesmo, mas, no dia seguinte, duas notícias mudaram tudo.

A próxima visão se materializa. O menino está em seu quarto pequeno e bagunçado enquanto escuta uma conversa sussurrada entre sua mãe e seu genitor na cozinha, atento. Ele arregala os olhos quando ouve duas coisas que o enchem de esperança.

George White está muito doente, fragilizado. E Harvey pretende deixar a família universal. Me contraio de pena ao ver a felicidade inocente invadir o menino.

Ele acredita que, agora, ele e sua irmã poderão estar a salvo. E é por isso mesmo que ele irrompe pela porta dizendo:

A gente também vai embora?— O menino interrompe a conversa dos adultos, se encolhendo em seu pijama. Harvey e Gabrielle olham para ele, ao mesmo tempo, surpresos.

Jesse.— O homem de cabelos compridos e braços tatuados, bonito por fora, mas feio por dentro, encara o filho que ele negou nos olhos – Não sabíamos que estava acordado.

Estou. E então, nós também vamos?!— O menino insiste, com o olhar irritado direcionado para a mãe, que se encolhe.

Não, não vamos, mon petit. Não tenho dinheiro para ir embora daqui por enquanto...- Quando a mulher cobre o rosto com vergonha, o menino perde a cabeça.

Mas ele tem! Ele tem e muito!— Os gritos saem junto com as lágrimas – Vamos embora, mamãe! Eu não suporto mais ficar aqui! E a Lavie... eu não posso ficar sem ela!

Jesse, aqui não é tão ruim. Alguém aqui te maltrata, pelo amor de deus?! – A mulher questiona, cega sem saber de nada do que acontece com o filho.

N-não.— Ele gagueja, crente de que está a protegendo do pior – Mas eu não vou ficar sem ela! Ela é minha irmã, e ela nem sabe disso!

Fale baixo!— Harvey sibila, olhando para o menino como se estivesse fazendo algo muito errado só de estar na presença dele – E se acalme, Jesse. Sua mãe sabe o que faz, e eu também. Nós somos os adultos aqui! E eu tenho coisas para cuidar, Jesse. Tenho outra família, você entende? Essa dinâmica...- Ele aponta de si para o menino e para a mulher despedaçada por ele com o indicador – Não está funcionando. Preciso cair na estrada e cuidar da minha família. E você vai ficar bem com a sua mãe, então pare de fazer birra!

Eu te odeio!— O menino grita, avançando no homem com lágrimas quentes nos olhos. Desvio o rosto no momento que vejo Harvey atingindo o garotinho no rosto com um tapa estralado.

Isso não se fala para um pai, menino!— O homem grita com os olhos irados – Se eu dissesse uma coisa dessas para o meu pai, ele me deixava sem andar no dia seguinte!

Quando o homem ergue os braços para atingir o menino encolhido e chocado pela violência, Gabrielle se coloca na frente do filho e empurra Harvey com ódio nos olhos, e algo a mais.

Coragem, pela primeira vez na vida.

Nunca mais encoste no meu filho, Harvey!— Gabrielle grita, o sotaque que ela tanto luta para esconder vazando entre as palavras por culpa da raiva. Suas mãos trêmulas abraçam o filho, e ela parece disposta a enfrentar o homem que tanto a fez sofrer pela primeira vez – Vai embora, vai com a merda da sua família! Mas nunca, nunca mais, nos procure, me ouviu? Vai embora!

O homem olha chocado para o filho e para a ex-namorada que tanto maltratou. Ele abre a boca para dizer algo, mas não consegue.

Ele olha para o pequeno Jesse uma última vez, e depois dá as costas e vai em direção a porta.

Aquela foi a última vez que eu o vi pessoalmente.

XXX

George White não era visto por mais ninguém, tão doente como estava. Pela primeira vez o menino considera a existência de um deus no céu, fosse qual fosse, com o nome que tivesse. George White estava doente, e o menino rezava para que ele morresse.

Quase dou risada. Idiota.

O garoto tinha um mês, trinta dias exatos, para aperfeiçoar sua moeda mágica.

.Lavie não fazia ideia. Nem faria, jamais.

O menino gastou todo seu tempo treinando seus poderes da mente até a exaustão, até sangrar. Até desmaiar, as vezes. Ele roubou um livro antigo e aprendeu o que devia fazer. Aprendeu também todo o resto.

Sobre Astaroth. Porque ele e a irmã tinham poderes. Porque estavam ali, e tudo o que estava em jogo. Como manipular as sombras. Isso me mudou para sempre.

Isso me blindou. É como eu digo, conheça o diabo que você vai enfrentar, tanto quanto ele te conhece.

Ou você não terá a mínima chance.

Estou parado do lado de fora do trailer, o dia está árido. Los Angeles está mais sufocante do que nunca. Todo aquele laranja alvejado me faz revirar o estômago.

O letreiro nojento de Hollywood está ao longe, poluindo a paisagem decadente das malditas almas que se enfiaram no deserto por fama e dinheiro e perdição.

Lavie sabia que iria embora e estava devastada. Seus olhos estavam fundos como suas olheiras, e os pais esperavam por ela no Mustang branco.

Você vai mesmo me ligar, Jesse?— A menina fungou meio ao choro, entregando ao melhor amigo um papel com o número de telefone dos seus pais – Você vai vir me visitar?

O pequeno Jesse sorriu de lado como fazia quando queria esconder do mundo o tamanho da sua fragilidade.

É claro que eu vou. Não fique triste, Lavie. Eu estou feliz porque você vai ver o país inteiro!— O falso entusiasmo é tão convincente, até para mim. Sou a porra de um ator – E eu vou visitar você logo. Mamãe disse que nós vamos embora semana que vem, para a Pensilvânia.— Ele mente para tranquilizá-la. Eu fiquei naquele inferno por mais dois longos anos, sendo o único passatempo de George White por todo aquele tempo, como um maldito purgatório – E de repente, até você pode me visitar também. Vai ficar tudo bem, Lavie. Vamos deixar esse maldito lugar, é uma coisa boa. Não chora mais, tá bom?

Ele sorri para ela, segurando o rosto dela em suas mãos pequenas e finas, pálidas e calejadas. Ela sorri por entre as lágrimas, e ele à solta delicadamente.

Ei, uma última corrida?— O garoto propõe com um olhar maroto no rosto, já começando a correr – Quem chegar por último é a mulher do padre!

A menina ri e o segue por entre a paisagem desértica. Ele desacelera sempre que vê que vai vencê-la.

Ele nasceu de manhã, George White havia dito. Ele era o mais velho, ele tinha que cuidar dela. Assim é que tem de ser.

Ei, vamos mostrar o dedo do meio para o letreiro uma última vez?!— O menino sugere, após os dois se sentarem no chão hiperventilando, suados e exaustos da brincadeira. Hazel sorri, os cabelos soltos e enormes, uma roupa colorida que ela odiava com todas as suas forças. Os dois se levantam e mostram o dedo do meio para o letreiro, rindo – Vai se foder, Hollywood! A gente tá indo embora!

Vai se...lascar!— Hazel nunca gostou muito de palavrões, esse foi o máximo que ela conseguiu. Os dois riram muito e andaram devagar de volta ao trailer.

Depois de um longo silêncio, ele sabia, e ela sabia, que ela tinha que ir.

Queria poder virar o rosto para o que se segue, mas eu não posso.

Ei... sem tristeza, ok? A gente vai se ver logo, logo!— O menino mente, as mãos tremendo dentro dos bolsos. Como ele vai sobreviver sem ela? Como?

Ele precisa. Por ela.

Hazel assente, contrariada.

Jesse, você não mentiria para mim, não é?— Ela investiga com o olhar, sua intuição forte lhe rondando. O menino sente um nó na garganta.

E eu também.

Não, Lavie. Nunca.— O menino não consegue fingir por muito mais tempo, porque está doendo demais. Então ele a puxa para um abraço apertado.

O último.

Ele afunda o rosto no ombro dela e tenta gravar o cheiro dela. Alecrim.

Eu amo você, Jesse. Você é o meu melhor amigo. Eu queria que você fosse o meu irmão.— Quando ele a ouve dizer isso, desmorona por dentro.

Quer gritar, contar a ela a verdade, fugir com ela para longe. Seriam dois irmãos na estrada contra o mundo.

Mas não pode, porque precisa fazer o que é melhor para ela.

Eu também te amo, Lavie. E... também queria que você fosse a minha irmã.— A esse ponto, sua força lhe deixa, e ele chora.

Ele nunca havia chorado na frente dela. Hazel franze o cenho, sabe que algo está errado, mas não estava preparada para o que a aguardava.

O esquecimento.

Lavie, nunca se esqueça de mim. Não de verdade...não lá no fundo! - O menino suplica, começando a colapsar. A menina não entende o que está acontecendo. O choro violento no peito dele, como uma maldita tempestade.

Jesse.... eu nunca esqueceria você! Do que está falando...?— O vinco em sua testa expressa sua confusão, e o menino precisa agir, ou seu plano irá falhar. Ele agarra a moeda de medusa com força, e enfia não dela, segurando-as como uma conchinha, prendendo a moeda na mão dela.

Lavie, eu te amo para sempre. A gente vai se encontrar de novo, quando for seguro. Eu vou buscar você. Eu...um dia você vai entender. Me perdoa Lavie, me perdoa...— O menino suplica, despedaçado – Você precisa entender...

Jesse, o que...?— A menina sabe que algo horrível está acontecendo. Mas, sua expressão vai ficando apática e seus olhos ficam vazios assim que a moeda começa a roubar os três últimos anos de sua memória, drenando sua mente.

O garoto assiste enquanto os olhos da irmã passam de preocupados e cheios de amor para um grande nada. Após três minutos inteiros mantendo-a em um transe, o garoto pega a moeda de volta.

Está pesada. Tão pesada.

Eu me lembro que naquele momento, desejei que só as lembranças ruins a deixassem. Que as boas ficassem, que ela não me esquecesse por completo. Mas, mesmo pequeno daquele jeito, eu sabia da verdade.

Não se pode roubar a escuridão de uma pessoa, sem também privar-lhe da luz. É impossível. É uma relação simbiótica, a dança entre o bem e o mau ao qual nosso universo foi fundamentado.

A troca equivalente. Eu nunca concordei com isso, mas... eu não faço as regas. Eu apenas as sigo quando não tenho escolha.

E eu não tive muitas escolhas em minha vida.

A menina dá dois passos para trás, confusa. Ela olha ao redor, assustada.

A confusão mental dela dura alguns minutos, e ele coloca as mãos na cabeça, enquanto chora violentamente, vendo tudo acontecer.

Me retraio de vergonha. Como posso ser tão frágil? Quero gritar com o garoto, pedir que se recomponha de uma vez por todas.

Pare, Jesse. Você era só uma criança.

O-onde eu...?— São as primeiras palavras de Hazel.

Principessa!— A voz de Amélie se faz presente, a mulher grita do Mustang branco. Os dois olham para o carro ao mesmo tempo – Vamos!

Mãe...?— A menina cerra os olhos, atordoada – Eu... eu já vou...

Ela sibila isso, tentando se encaixar no ambiente. Seus olhos cruzam com os do menino uma última vez. Não com reconhecimento, mas sim com a falta dele.

Você... está bem, menino?— Ouço o coração dele se estilhaçar.

De dor e de alívio. Ela está livre.

Livre.

Aham. – Ele diz, dando alguns passos para trás, cambaleando na escada do trailer, devastado – Acho que seus pais vão ficar bravos com você se você não for logo.

É, acho que sim...— A menina coça a cabeça, zonza – Você está bem mesmo?

Eu sorrio. Hazel sempre foi tão gentil e preocupada com as pessoas. Ninguém parece entender, no entanto, que a gentileza dela não parte de um lugar ingênuo. Parte de uma fome para que o mundo a trate como ela trata o mundo.

Parte de todas as coisas terríveis que ela já viu.

—Estou sim, eu me machuquei brincando, mas vai passar. – Ele mente – Eu vou entrar para a minha casa, e você me parece meio perdida. Se eu fosse você, me apressava. Seus pais parecem a ponto de te colocar de castigo. – Ele força um sorriso. Ela assente, devagar, tentando disfarçar que parece ter acordado de um transe profundo.

—Você tem razão...— Sua voz é fraca e letárgica. Esse tipo de poder que foi utilizado nela é tão forte que deve ter a deixado lesada por dias. Talvez semanas - Bom... tchau então?

—Tchau. – A palavra parece tão fria em sua língua. E de fato, é. Precisa ser.

Ela não te conhece mais. Está feito.

Ela dá alguns passos incertos para trás, ainda olhando-o relutante.

O menino acena com a cabeça, tentando se recompor. Assiste a irmã andar para longe, para o Mustang branco. Até sumir pelo deserto.

O aperto no peito dele parece que vai o matar.

Ele vê a irmã que ama ir embora acreditando que ele é apenas um estranho.

Um segredo. Um maldito segredo.

XXX

O pesadelo se estica, e eu me sinto oco por dentro. Me vejo com uns quatorze anos, os nós dos dedos cheios de sangue depois de espancar um cara duas vezes maior que eu, na Pensilvânia, na saída da escola.

Repete, desgraçado!— O eu adolescente grita para o cara quase desacordado no chão, enquanto continua a socá-lo sem parar. Estou vestido todo de preto, como sempre, acho que faço isso porque quero sempre estar pronto para o meu próprio velório.  Alguns jovens se reúnem ao redor deles, no pior bairro da cidade para ver a porra do show – Me chama de bichinha de novo, seu merda!

O cara se engasga com os próprios dentes e o próprio sangue, mas não consegue sequer balbuciar a palavra socorro. Sorrio, com amargura.

Ele mereceu. Eu faria de novo, faria pior.

Não restou muita coisa boa em mim, então que se dane. A vingança de quem me machuca é uma das poucas coisas que me dá alegria.

Quem diz que a vingança não compensa nunca se vingou de verdade.

Alguém quer ser o próximo, seus merdas?!— O adolescente grita de braços abertos, as mãos cheias de sangue. Todos dão um passo para trás. Ele sorri e faz que sim com a cabeça, devagar, como um psicopata – Foi o que eu pensei!

XXX

Ei, ei!— Robert Watson, o garoto com quem perdi a virgindade bate no meu rosto de leve várias vezes, tentando me trazer de volta. Vejo a mim mesmo com uns quatorze anos, estático e parado na cama, em choque. Robert está tão preocupado que quer chamar os bombeiros, mas o adolescente deitado ao seu lado vai se recobrando aos poucos – Jesse, o que aconteceu?!

Os olhos do garoto estão transtornados. Ele realmente gostava de mim.

N-nada.— O Jesse do passado diz, se sentando na cama e abraçando os próprios joelhos – Vai embora, ok?! Vai embora!

Robert fica confuso e amedrontado. O coração dele se parte.

Jesse, o que aconteceu?! Eu... eu não entendo. Você estava aqui, e depois... não estava mais! Você ficou gelado e tremendo, e eu fiquei tentando te trazer de volta...— Os olhos castanhos do garoto que era bom para mim, ficam transtornados.

Vai embora!— Me vejo gritando com ele, lágrimas nos olhos e raiva no peito.

Eu não tinha sentido nada. Era como se eu nem tivesse estado ali.

Ele foi embora, como eu mandei. E nunca mais nos falamos.

Depois disso, me senti tão vazio que transei com outro cara no dia seguinte, para ver se sentia alguma coisa.

Não senti nada.

Transei com outro, dois dias depois. Transei com o máximo de caras que eu consegui por mais de um mês, frustrado.

Era como estar debaixo de um lago gelado. Eu queria o calor, queria me sentir... parte de alguma coisa.

De alguém.

Mas tudo o que eu sentia, era o cheiro de George White e o toque gelado das suas mãos.

Quando alguém me tocava, eu só conseguia me lembrar do olhar apavorado da minha irmã, enquanto ele fazia a mesma coisa que fazia comigo, com ela.

Fiz sexo com todo mundo até entender que eu não podia ser parte do mundo, nem de ninguém.

Não podia porque qualquer que fosse a parte de mim que poderia se encaixar no mundo ou nas pessoas, essa parte havia sido roubada.

Por ele. Para sempre.

XXX

Sou levado ao banheiro de um hotel nojento de beira de estrada, e me assisto em terceira pessoa novamente. Quanto tempo eu dormi? Será que nunca mais vou acordar?

Eu acho que tinha quinze anos nessa lembrança. Me encosto na parede do banheiro, entediado enquanto me assisto cortar os dois pulsos na vertical, bem fundo, dentro da água gelada. Me observo chorando sem parar enquanto a dor lancinante de desidratar e ficar sem oxigênio até morrer me consome, e sinto vergonha de mim mesmo.

Foi ali que conheci o vale das sombras da morte pela primeira vez. Foi ali que descobri que não podia morrer.

Não como um humano, pelo menos.

XXX

Os anos se passam, e eu me vejo indo embora de casa, fugindo, desaparecendo.

Minha mãe tinha arrumado um cara legal, um cara bom. E não podíamos ter demônios me perseguindo em casa dia sim e dia não. Por mais que tivesse aprendido a manipular as sombras desde cedo e a ficar invisível, isso me drenava demais e não era o suficiente.

Eu era alguém marcado. Ela não. Então eu fui embora.

Ela era humana. O menino demônio era eu, então a matemática foi simples. Precisava me remover de mais uma equação.

Vivi na rua, no começo. Depois aprendi a bater carteiras e passei a viver em motéis de beira de estrada. Ninguém podia me encontrar, eu era uma sombra.

A polícia tentou, e tentou, e tentou...

Eu ia avisar a minha mãe. Eu ia mesmo. Só queria esperar a poeira abaixar, precisava disso pela segurança dela. Foi quando aconteceu.

Fizeram um funeral simbólico para mim, após tanto tempo desaparecido, para ajudar Gabrielle a seguir em frente. Isso ia me ajudar ainda mais a mantê-la segura. Eu só precisava de alguns meses de vantagem, e procuraria por ela. Explicaria meus motivos.

Mas Gabrielle Turner se matou, em julho de 1999.

Por minha culpa. Por minha ausência.

Eu queria que tivesse sido eu.

Queria que a terra me engolisse.

Quando visitei o túmulo dela, algo a mais morreu em mim. Algo que eu nem sabia que havia restado.

Eu não tinha... mais nada.

Olhando para trás assim como estou fazendo agora, com tanta clareza, acho que eu sempre fui o maior obstáculo contra mim mesmo. Eu causei tudo isso.

Fora a criança inocente que eu fui, que não teve culpa de nascer maldita e nascer fadada a escuridão, tudo o que aconteceu depois de sair da família universal foi culpa minha.

Eu me impedi de ser feliz e suguei a luz do mundo ao meu redor.

Minha mãe estava morta e a culpa era minha. Minhas intenções boas não importavam, porque o inferno estava cheio delas.

Eu era o meu próprio albatroz. Eu sempre fui.

E sempre vou ser.

XXX

Meses depois, me vejo comendo um macarrão instantâneo assistindo ao noticiário, nos arredores de Palo Alto, quando a foto da minha irmã e do meu pai apareceram na tela. Eu me engasguei com a comida e fiquei gelado, só ouvindo a moça falar:

Harvey Talbot, ex-membro da banda “The Church” é preso após ser acusado de espancar a filha, Hazel Laverne, até deixá-la em estado grave

Eu já tinha visto o rosto deles na televisão outras vezes. Era inevitável. Harvey e Amélie sempre estavam em algum escândalo, e isso sempre respingava em Hazel. E eu a procuraria quando fosse a hora.

E agora parecia a hora certa, me lembro de ser acometido por essa certeza.

De repente, o sonho avança em um mês e estou no banco do carona de um carro roubado por mim mesmo em 1999, dirigindo em alta velocidade. E então chegamos em Lawrence.

Fico lado a lado comigo, parado perto do estacionamento da escola, esperando ela sair pela porta da frente, nervoso, andando para lá e para cá, ensaiando o que ia dizer. As mãos suando.

Em momentos assim, quando o meu coração acelera tanto, acabo esquecendo que estou em um sonho. É como reviver tudo de novo.

E então eu a vejo. Meu coração parece que vai sair pela boca.

Quando o Jesse do passado dá um passo à frente, o vejo parando abruptamente, quase como se ficasse preso no chão. Porque ele avista um garoto com o braço ao redor do ombro dela, beijando o topo da cabeça dela, que não para de sorrir. Está tão...bem.

Pelo noticiário, parecia estar na pior, mas... seja lá quem fosse esse garoto, parecia ter mudado o cenário. Era Sam Winchester, eu viria a ter conhecimento disso meses depois, quando as coisas deram errado.

O Jesse do passado voltou ao carro, e morou nele por alguns dias, observando a irmã de longe. Era um misto de sentimentos.

Inveja. Felicidade. Ciúmes, amor, raiva, solidão, mas acima de tudo...

Paz. Ela estava bem. O tal garoto parecia ser realmente bom, o Jesse do passado havia se certificado disso ao observá-los por dias a fio.

Foi então que o Jesse do passado foi embora, sem olhar para trás, com a certeza de que só atrapalharia se ele voltasse para a vida dela agora.

Quem sabe um dia? Mas não agora...

XXX

O incêndio acontece, novamente, o Jesse de dezessete anos vê pelo noticiário.

Ele mergulha em uma pesquisa minuciosa sobre quem é Sam Winchester.

O garoto com sangue de demônio. Amaldiçoado até os ossos.

Assisto quando o Jesse do passado começa a se arrepender de não ter sabido disso tudo antes, e agora era tarde demais. Sua irmã estava nas garras do garoto com sangue de demônio, um caçador, um causador de problemas e em breve um servo de Azazel.

Minha irmã estava no hospital e a culpa era de Azazel, e se era culpa de Azazel, era culpa dele.

Eu ia matá-lo. Ninguém sabe disso, mas carreguei a arma e tudo.

Não consegui ir até o fim, porque Sam Winchester estava sempre atento, e John Winchester vivia nos arredores de Stanford, o vigiando.

Quase como se soubesse que havia um perigo no escuro, espreitando seu caçula.

O perigo era eu. Um deles, pelo menos.

Quando Lavie foi internada, debati internamente por meses se agora era a hora. Aparentemente, ela e Sam haviam terminado, então eu não precisava mais me preocupar com isso. Assim eu achava.

Foi quando eu soube, após torturar um demônio em busca de informações, que o cenário era muito mais obscuro do que eu pensava.

Ela estava grávida, sabia?— Começo a suar e tremer, assim como o Jesse do passado faz agora, ao ouvir o demônio em sua frente, preso a uma armadilha, dizer isso tão friamente.

Já seria complicado Hazel ter um filho com um homem normal. Mas com Sam Winchester? O inferno ia tremer, ele sabia disso. Mas meio ao pânico, o Jesse do passado se dá conta de algo. Estava, no passado.

O que aconteceu com o bebê?— Vejo ele tentar não transparecer o desespero na voz. Sempre fui bom em esconder como estou por dentro. O demônio sorri com malícia.

A avó dela foi... convidada a resolver a situação. Eu não sei por quem, antes que me pergunte. E acredite, se eu soubesse, adoraria contar a você e ver a sua cara. Mas já que eu e você sabemos que você vai me matar, deixe-me ver a sua cara de dor antes de eu morrer, Jesse. Sua irmã sofreu muito, ela não queria isso. E me faz feliz pensar em como aquela putinha do Winchester sangrou a maldita criança para fora do corpo.— Fecho os punhos ao mesmo tempo que o Jesse do passado, que ergue a mão no ar com a expressão impassível e executa o demônio, sem dar a ele deleite algum.

Depois que o demônio morre, ele se encolhe e chora pela noite toda.

Lavie não queria tirar o bebê. Devia estar devastada como nunca. Ele só queria abraçar a irmã e dizer que tudo ia ficar bem. Mas...não podia.

Ela ia precisar passar por isso sozinha, por enquanto. Talvez em breve? Talvez fosse a hora de voltar para a vida dela?

Mas os meses se passaram, e ela começou a faculdade. Começou a se destacar em um dos jornais mais famosos de Nova York, brilhante como nasceu para ser.

E foi então que eu constatei.

Nunca mais iria procurá-la. O meu desaparecimento, era a melhor coisa que havia acontecido a ela. O que eu podia oferecer a ela a não ser uma porta para o passado obscuro a que ela não se lembrava?

Nada.

Foi quando senti a maior dor de todas. A única testemunha de que eu existia, era ela. E ela sequer se lembrava, e jamais se lembraria, se eu mantivesse a moeda longe de suas mãos.

Foi como morrer de verdade. Se ninguém sabe que você existe, você existe?

Eu acho que não.

XXX

Eu quero a verdade, e eu quero agora.— Me vejo de pé ao lado de mim, a não tantos meses atrás, torturando um demônio só com as minhas mãos, meus olhos irados. Disposto a ir até o inferno por respostasDesembucha, Bellet!

Eu já disse! Por favor, me deixe ir... — Fico com raiva por sua súplica e torço a mão com mais força, fazendo-o gritar.

É sempre divertido quando eles gritam.

Ela está em perigo, e ele está de volta. Astaroth está de volta!— O demônio de olhos brancos se contorce meio ao choro e a voz quebrada, se estilhaçando no ar como vidro – Eles estão atrás dela...

Eles quem?! – Me lembro do desespero que senti. O que eu mais temia havia acontecido. Ela não poderia ter uma vida normal, o passado estava vindo buscá-la.

Eu precisava buscar ela antes que fosse tarde demais.

Todos eles, seu idiota! Crowley, Astaroth, anjos e até caçadores!—  Vejo o Jesse de meses atrás ficar tonto com a informação. Precisava agir rápido – E tem mais... Sam Winchester está de volta dos mortos. Pelo menos, seu corpo...— O demônio riu, cuspindo sangue. De volta dos mortos? Só o corpo? Que história era aquela?E ele tem ordens diretas de Crowley para matá-la.

Vejo os olhos do Jesse Turner do passado se arregalarem.

Com um leve movimento de mão, ele mata o demônio sem muito esforço, a luz âmbar piscando dos olhos e da boca daquele verme ambulante reluzindo no ambiente enquanto ele constatava três coisas importantes,

Precisava encontrar a irmã, e rápido.

Precisava protegê-la e prepará-la para o grande combate, porque ele aconteceria, eu sabia. Ela ia precisar acessar seus poderes... e eu odiaria forçá-la a isso. Mas era o único jeito.

E por último...precisava matar Sam Winchester.

XXX

Quero acordar. Quero acordar. Quero acordar.

As próximas lembranças que eu vivencio são vislumbres, cenas borradas de tudo o que aconteceu depois.

Meu reencontro com Lavie. Sua indiferença inicial, sua fúria e sua desconfiança.

Eu debatendo a ideia de matar Sam Winchester, sem problema algum em ser odiado para sempre se isso garantiria um problema a menos para ela.

E então o corpo de Lavie morto pelas mãos do homem que ama, mesmo que não seja ele de verdade. Isso não importa. Mesmo que não esteja morta de verdade, isso também não importa.

A falta de culpa de Sam não muda nada para mim. A inocência dele não me importa.

Vê-la sem vida me fez querer morrer.

Os próximos vislumbres são de confusão. Sam Winchester tendo sua alma de volta, e eu assistindo de camarote a minha irmã e ele se apaixonarem novamente um pelo outro como dois adolescentes. Os sorrisos que ela dá por ele e para ele...

Me fazem sorrir também. Mas então ele estraga tudo, e eu quero matá-lo de novo.

Noventa por cento dos meus pensamentos são sobre como ele a afeta. E em como eu poderia acabar com ele se quisesse.

Foda-se que o infeliz acaba de voltar do inferno, torturado por Lúcifer em pessoa. Foda-se que sua alma e sua mente estejam colapsando, beirando a loucura. Ele não me importa. Ela, sim.

Há apenas uma coisa que me impede de matá-lo. Não, não... duas.

A primeira, é saber que toda decisão de merda que ele toma, é por querer protegê-la. Eu posso me relacionar com isso, afinal. Por mais que ele esteja a machucando, eu entendo. Ele acha que está livrando-a do pior. E não foi isso que eu fiz?! Talvez eu e Sam Winchester não sejamos assim tão diferentes. Ele a ama e vai fazer de tudo para mantê-la a salvo, sacrificando a si mesmo. E com isso, posso tolerá-lo.

E a segunda... é saber que amá-lo, é o que a mantém viva.

O pesadelo vai se distorcendo, e sou rodeado de vislumbres de olhares de amor entre outras pessoas. Hazel olhando para Sam, Sam sorrindo discretamente enquanto ouve a minha irmã falar sobre algo... Dean confuso sobre Hazel, de coração partido, e então confuso sobre Jo Harvelle que parece um castelo de cartas prestes a ruir ao próximo sopro de Dean.

Onde eu olho, há amor, raiva, confusão...humanidade.

Eles são tão humanos. E eu me sinto tão distante disso. Tudo é tão frio.

Eu nunca vou olhar para ninguém como eles se olham. Eu nunca vou ser olhado da maneira que eles o fazem.

Eu nunca vou sentir.

Porra... eu sequer existo?

A única coisa que me faz acreditar que eu existo e que há um coração que bate em mim é Lavie. E por isso, sorrio.

Porque eu a amo e vou protegê-la até o meu último sopro. Minha irmãzinha, minha lua, minha luz.

E se eu sou capaz de amar minha irmã, então talvez eu mereça estar aqui.

Não é? Não é?!

Eu não sei.

Queria que alguém me dissesse que sim.

XXX

Acordo suado e tremendo como se estivesse me afogando. Respiro fundo, e aperto uma mão na outra para tentar impedi-las de tremerem demais. Em vão.

Olho ao meu redor, e tento controlar a minha respiração. Estou no Impala, está tudo bem...

George White está preso em New Orleans e não pode me ferir mais. Nem ferir Lavie.

Os Winchester estão nos bancos da frente, e fariam de tudo para protegê-la. Estamos bem, vamos ficar bem...

Foi só um maldito pesadelo. Um bem real e longo, mas ainda assim, só um pesadelo inofensivo.

Esfrego os olhos e me recomponho, fingindo que a minha espinha não está gelada de pavor. Hazel, que também estava adormecida, abre os olhos e quando me avista, sorri para mim.

Ela não faz ideia. Não faz ideia de como é importante para mim e de tudo o que eu fiz para protegê-la. De tudo o que eu faria por ela. E dada as lembranças que acabo de revisitar...

Isso é uma coisa boa. Aperto a moeda de medusa com força em meu colar, por cima da camiseta, e respiro fundo quando ultrapassamos uma placa que nos avisa que acabamos de chegar em Lawrence.


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Notas finais do capítulo

Notas finais:
Então jurei pelo meu coração impensado
Abri minhas asas como um paraquedas
Eu sou o albatroz
Eu entrei no resgate
O diabo que você conhece
Agora se parece mais como um anjo
Eu sou a vida que você escolheu
E todo esse perigo terrível – The albatross, Taylor Swift.

Adendo: As aves albatrozes podem permanecer até SEIS anos voando no oceano, sem tocar o chão. Além disso, chamar alguém de “albatroz” significa que aquela pessoa te causa problemas dos quais você não consegue escapar e te impede de fazer o que você quer.

Tenho algumas considerações a fazer: Gente, esse capítulo foi um vomito. Um alívio.
Eu estou passando por um momento difícil. Quem se importa? Sei lá, eu devia escrever isso em uma nota final? Não sei. Mas eu vou.
Minha cabeça me prega peças as vezes. E eu caio nelas, mesmo convivendo com isso a vinte seis anos e sendo boa em lidar com as minhas armadilhas, de vez em quando eu falho miseravelmente. Meu trabalho anda pesado, também. Tenho dado tudo de mim e mesmo assim, não me sinto suficiente. Trabalho na área da educação, e para quem não sabe, a gente leva o trabalho para casa na maioria dos dias, se mata para tentar fazer boas aulas e na maioria das vezes passa por humilhação e indiferença. E mesmo assim, eu amo o que eu faço, porque de vez em quando eu consigo ver que ajudei um aluno e isso me faz ganhar o meu dia.
Só tive tempo de escrever nos últimos três dias.
E quando eu não escrevo, eu me sufoco.
De qualquer forma, me perdoem a demora a postar. Não sei se estão decepcionados porque é um bônus (considero bônus todo “capítulo” que não anda a história, não caminha o plot, apenas revisita o passado de algum personagem, elucidando algumas coisas) Mas eu precisava escrever sobre o Jesse. Era uma necessidade.
Prometo que o próximo capítulo sai até semana que vem. Vou fazer de tudo para isso acontecer.
Não abandonem a minha história na minha ausência, por favor. Eu vou terminar de conta-la, isso é uma promessa que eu faço a vocês que acompanham.
Vocês são luz na minha vida. Obrigada por tudo.
XOXO.











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