O Homem que Perdeu a Alma escrita por Willow Oak Acanthus


Capítulo 10
Capítulo VIII - O diabo sem nome em New Orleans.


Notas iniciais do capítulo

É um capítulo transitório, porque precisava explorar como o Dean vai lidar com os próprios sentimentos. É aquele capítulo de calmaria antes da tempestade, sabe?
Ao final, temos um gancho para vocês entenderem a seriedade do que começa no próximo capítulo : )

Boa leitura ♥



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Ponto de vista de Hazel Laverne.

Me sinto completamente estranha ao acordar. Todos os sons parecem altos demais, a água parece fria demais e parece que há um martelo castigando a minha cabeça.

É, é oficial. Eu nunca mais vou beber de novo.

Enquanto saio do banho e me arrumo, tento me lembrar dos detalhes da noite passada, mas não consigo. Me lembro de dançar, de falarmos sobre o Sam e sobre a Jo...

E é só isso. Sequer consigo me lembrar de como chegamos em casa para começo de conversa. Embora eu não esteja orgulhosa de ter bebido, devo admitir que precisava me divertir e esquecer os meus problemas por uma noite.

Desço para a cozinha caótica do Bobby e dou de cara com ele.

—Bom dia, Bobby... – A luz que entra pela janela é muito forte para os meus olhos, então me sento na mesa apressadamente, do lado oposto de onde a luz entra pelo ambiente.

—Bom dia. Tomaram todas ontem, ein? – Assinto, e me sirvo de café preto.

Odeio café. Mas com a cabeça girando, pode ser uma boa ideia tomá-lo. Estou bebendo um gole generoso quando Dean entra na cozinha, vestindo uma camisa de flanela verde escura e olheiras profundas pintando seu rosto. Dean olha primeiro para mim, e então para Bobby, e não diz nada. Apenas se senta e dá um gole no café.

—Nós vamos passar primeiro por Oklahoma...- Ele começa a dizer, pigarreando depois de um tempo em silêncio – Calculo que daqui a dois dias cheguemos ao Arkansas, e aí é mais um dia inteirinho até o Louisiana. Está com a sua arma?

 -Hm, não. Eu literalmente acabei de acordar. – Digo, fazendo uma careta ao terminar meu café – Estou indo pegá-la. - Dean assente, silenciosamente.

—Eu vou estar sempre atento ao telefone... – Bobby se junta a conversa, e me lança um olhar acolhedor – Vocês me liguem para o que precisarem. Consigam o máximo de informações que conseguirem, e estaremos mais perto de resolver isso tudo.

Sorrio para Bobby, agradecida pelo voto de confiança dele. Quero abraçá-lo, mas não o faço. Não quero me afeiçoar demais por ele, pois sei bem o meu destino...

Não vou viver muito. E até lá...não quero perder mais ninguém.

XXX

Estamos na estrada a horas, já atravessamos o Kansas e estamos perto da fronteira com Oklahoma, e Dean não disse uma palavra durante o caminho todo.

Na verdade, ele está esquisito comigo desde hoje de manhã. Paramos em um motel de beira de estrada quando o sol se põe e quando estamos fazendo o check in ele diz para o atendente:

—Dois quartos, por favor. – Franzo o cenho confusa, porque sempre dividimos os quartos por segurança, mas decido não dizer nada.

Começo a imaginar um milhão de coisas, será que eu o ofendi ontem de alguma forma e não estou me lembrando? Quando estamos indo em direção aos quartos, cada um com suas chaves em mãos, decido questioná-lo:

—Dean, está tudo bem? – Ele que estava já abrindo sua porta me olha nos olhos pela primeira vez no dia. Não sei decifrar seu olhar. Parece...ferido?

—Está. Só preciso de um pouco de espaço. – Ele diz, de maneira ríspida – Será que você tem a capacidade de se cuidar sozinha até amanhã?

Meu queixo quase cai. De onde veio tanta grosseria de repente? Dou um suspiro, completamente exausta em ter que lidar com essa mudança brusca de humor dele.

Cresci com o meu pai indo do céu ao inferno o tempo inteiro e foi exaustivo.

Nem respondo. Apenas abro a porta do meu quarto e bato a porta com força.

XXX

Ponto de vista de Dean Winchester.

Eu sou um idiota.

Ela não precisava disso. Mas o que é que eu podia fazer? Preciso tirar ela da minha cabeça. E preciso de um pouquinho de espaço se quiser conseguir isso.

Me sento na cama e passo a mão pelo cabelo, completamente exausto.

Ela não merecia essa grosseria. Ela não fez absolutamente nada de errado. Que culpa ela tem de eu estar me sentindo confuso? Nenhuma. E não é só isso, mas não é seguro ela dormir naquele quarto sozinha. Me levanto, depois de uns vinte minutos ponderando minha decisão e decidindo o que dizer a ela e quais palavras usar, e me sinto um troglodita.

Eu nunca vou ser bom com palavras. E isso me mata por dentro.

Finalmente tomo coragem e vou bater em sua porta.

Enquanto ela não atende, fico repassando meu roteiro mental. Desculpe por ser grosso, só estou cansado...Isso não é bom o bastante, mas vai ter de ser. Fico esperando pelo que parece uma eternidade.

—Hazel? – Chamo por ela, e não ouço nenhum barulho vindo de dentro do quarto. Giro a maçaneta, e descubro que a porta está destrancada.

Meu coração gela assim como a minha espinha quando percebo que ela não está aqui.

Hazel sumiu e só pode estar em apuros.

E a culpa é toda minha.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne.

Fico estudando minhas anotações sobre monstros e outras informações uteis só para manter minha mente ocupada, e quando fico exausta decido que vou comprar uma diet mountain dew na máquina no fim do corredor. Fico mordendo o interior da minha boca enquanto espero a lata cair, e assim que a abro e saboreio o líquido espumante, fico repassando mentalmente quais são as perguntas mais importantes a se fazer para George White...

Coço a cabeça e me encosto na parede verde escura do corredor opressivo e sem janelas, e fecho os olhos.

Consigo me lembrar do rosto dele. Da voz, ressoando ao longe como um assobio longínquo. Lembro de sentir medo e frio...

Do rosto de Jesse. Da moeda. Do armário.

E é só isso. Isso é tudo o que eu tenho.

Sacudo a cabeça de um lado para o outro, decidindo afastar esse sentimento de impotência e quando volto para o meu quarto, encontro a porta aberta e Dean Winchester está dentro dele, surtando. Franzo o cenho e fico o encarando confusa.

—Hazel! Você está bem!? Meu deus... - Dean suspira de alívio e passa a mão no cabelo, respirando fundo – Onde você se meteu?!

—Dean...eu literalmente só fui comprar um refrigerante. – Ergo a lata em minha mão no ar, não entendendo a sua reação – Só isso.

—Eu chamei por você, a porta estava aberta e eu pensei...- Sua voz sai rápida, e ele faz uma pausa, os olhos verde esmeralda me encarando profundamente.

Um silêncio cresce entre nós, e eu chego mais perto dele, mas ele dá um passo para trás.

—Eu preciso que você seja mais atenta, você não pode passear por aí e deixar sua porta destrancada, e se...

—Espera um pouquinho. – O interrompo, levemente irritada – Vamos rebobinar. Você não falou comigo o dia inteiro, ficou todo...estranho, e depois foi grosso comigo, e agora você está aqui todo preocupado? – Apoio minha mão na minha cintura, indignada com ele – Eu não estou acompanhando.

Ele tem uma expressão mista no rosto, entre raiva e... dor?

—Eu só preciso que você tranque a maldita porta da próxima vez. – E, sem me dizer mais nada, passa direto por mim, batendo a porta.

Suspiro irritada, e termino meu refrigerante. Decido que não vou mais gastar minha energia tentando entender esse homem, e vou dormir.

XXX

—Ele não vai chamar por você hoje...- Jesse diz para a garotinha em seus braços.

A garotinha sou eu.

—Ele sempre chama, você sabe disso, Jesse! – Ela responde a ele, aflita. O medo em seus olhos me faz sentir frio.

—Mas hoje, não. Eu prometo, Lavie. – Jesse beija o topo da cabeça dela, a aninhando como um pássaro ferido. – Você está segura comigo.

Olho ao redor das duas crianças, e percebo o armário escuro os rodeando.

—Jesse, quando ele chama por você, o que acontece? – Ela pergunta ao garoto, aflita – Ele...

—Não, Lavie. Não vamos falar disso. Você precisa jogar o jogo que eu te ensinei. Pode fazer isso? – Jesse tira do bolso a moeda grande e irregular com medusa estampada e entrega para a garotinha – Vamos, jogue o jogo.

Ela pega a moeda, e gira entre os dedos, várias vezes, enquanto repete:

—Se eu não me lembro, não me machuca, se eu não me lembro, não me machuca...

Ela fica entoando isso por um tempo, até que para, e ele sorri para ela, orgulhoso.

—Muito bem. Viu? Esquece. Esquece tudo, Lavie.

—Tudo? – Ela questiona. Ele ri:

—Tá, tudo não. Não esquece de mim.

—Eu nunca me esqueceria de você, Jesse! – O garotinho sorri para ela.

E tudo fica escuro.

XXX

Acordo completamente encharcada de suor, a respiração entrecortada e um frio me percorrendo a espinha.

Me sento na cama, hiperventilando e com os olhos marejados de água.

Tampo a minha boca com a mão, e embora lute contra o choro, a dor queimante na minha garganta é demais e eu não consigo me conter. Todo o meu corpo está tremendo.

Estou com tanto medo. Quem é Jesse? Por que não consigo me lembrar?

Começo a abraçar os meus braços, mas não me sinto mais segura. Queria ser abraçada por alguém.

Faço uma lista mental de pessoas a quem recorreria agora se pudesse.

Minha mãe, mas...está morta. E se estivesse viva, não faria muita diferença. Eu tento não a odiar, mas é inevitável as vezes. Ela permitiu tudo, nunca me manteve em segurança. Mas tudo bem, ela não se manteve em segurança também. Ela me amava, no entanto. Do seu jeito silencioso e omisso..., mas amava. Ela conseguiu ficar sóbria, antes de morrer. A sobriedade dela foi por mim, ela mesma me disse. E isso tem que significar alguma coisa. Tudo precisa significar alguma coisa... ou eu vou perder a cabeça, porque se não há um significado, então foi em vão.

E isso eu não suportaria.

Gostaria de dizer que meu pai não me passou pela cabeça, mas estaria mentindo. Queria que ele não tivesse sido um monstro. Queria ter um pai que me protegesse.

Mas não tenho.

E pelo pouco tempo que tive, seria melhor que não tivesse nada mesmo. Em um mundo assustador onde uma garotinha deseja ser protegida pelo pai, abraçada para longe do monstro debaixo da cama, meu pai era o monstro debaixo da cama. E o mais perturbador nisso é que mesmo assim, mesmo com tudo o que ele fez comigo, eu sinto a falta dele. Quão doentio é isso? Eu me sinto culpada por me sentir assim as vezes.

Sam. Não quero pensar em Sam.

Fecho os olhos, e é inevitável.

Minha mente estende a mão para o meu coração traidor e masoquista e tudo o que eu consigo pensar, é em como não importa quanto tempo passe, sempre vou sentir um arrepio gelado me percorrendo por completo quando tudo de Sam Winchester passa pela minha mente, como uma faca sendo torcida dentro das minhas entranhas.

Seus olhos. Sua boca. Seu cheiro. Sua voz. Suas marcas. Suas mãos. Sua gentileza. Sua inteligência. Sua escuridão. Sua luz. Seu passado, presente, futuro. Cada lembrança de nossas adolescências há muito enterradas. Todas as impossibilidades e desencontros e improbabilidades infinitas que explodem na distância entre ele e eu.

Sua alma presa ao inferno.

Penso em Jesse Turner. E em como não sei quem ele é, não importa o quanto eu tente me lembrar. Mas em como dói pensar nele agora, como...como se sentisse sua falta.

Penso em Dean, no quarto ao lado, que tem sido meu melhor amigo nos últimos tempos. Que tem sido a mão a que me agarro meio a esse caos, me protegendo.

Charlie. Sr. Hudson...

Chega. Eu vou perder a cabeça se continuar. A solidão vai me engolir e eu vou sufocar.

Me levanto da cama, o frio me assombrando, e lavo o meu rosto no banheiro, até que o choro termine.

XXX

Ponto de vista de Dean Winchester.

Não preguei os olhos a noite inteira. Ajeito minhas costas na parede do corredor a que estou sentado, bem do lado de fora da porta dela. Fico brincando com um canivete em mãos, repassando a forma como tratei ela um milhão de vezes na minha mente.

Hazel não tem ninguém. O mundo inteiro está para cair nas costas dela. Ela perdeu tudo.

E cá estou eu, tratando-a mal simplesmente porque meu coração idiota resolveu bater por ela.

É lógico que eu não ia deixar de protegê-la. Especificamente depois de ter deixado ela vulnerável em um quarto sozinha. Qualquer um podia vir atrás dela.

Então é claro, estou sentado aqui a noite inteira, vigiando.

Eu sou um covarde. Um grandissíssimo covarde. É impressionante que, não importa quanto tempo passe, sempre vou achar que eu pertenço ao buraco de onde saí.

O inferno.

Essa minha...quedinha desproporcional por ela definitivamente me compra um bilhete só de ida para o inferno.

Enquanto estou absorto em autodepreciação, ouço um barulho vindo de dentro do seu quarto. Olho meu relógio de pulso.

3:01 AM. Uma garoa começa lá fora, e eu a ouço chorando.

Fecho os olhos, meu peito se aperta.

Se ela não fosse quem é, eu entraria agora mesmo e pediria desculpas. Se ela não fosse quem é, acho que jogaria tudo para o alto e a beijaria, desesperado por limpar suas lágrimas.

Mas ela é quem ela é.

Ela não pertence a mim. Nem nunca vai pertencer.

Não vou ir confortá-la, embora doa em meus ossos deixá-la chorando quando tudo o que eu quero fazer é abraçá-la. Não.

Não vou.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne.

O sol está cálido graças as nuvens pesadas e obscuras no céu. Novembro está dando seus primeiros sinais...

Arrumo as minhas coisas na mochila, e prendo um rabo de cavalo frente ao espelho.

Me agasalho com uma jaqueta de couro preta e coturnos, pois estou morrendo de frio e suspeito que a primeira neve se aproxima. Saio pela porta e me deparo com Dean Winchester sentado no chão, um canivete sobre o colo, e está...dormindo?

—Dean?! – Ele se sobressalta, as mãos instintivamente buscando o canivete. Quando me vê, fica de pé.

—Eu...eu acabei dormindo. – Ele diz meio constrangido. Sua camisa está toda amassada e os cabelos estão levemente bagunçados.

—No...chão? – Questiono, sem entender nada. Ele assente e olha para baixo, suspirando de maneira exausta.

—É, no chão. Eu vou tomar um banho. Te encontro no lobby em menos de vinte minutos, não se atrase.

E, como se nada demais tivesse acontecido, ele se fecha em seu quarto.

XXX

—Eu é quem vou dirigir. – Digo, enquanto estamos guardando as mochilas no carro. Dean me olha como se eu o tivesse xingado.

—Vai sonhando... – Ele fala, com a chave em mãos. Eu ergo as sobrancelhas impacientemente e pego a chave da mão dele.

—É o seguinte, você não me parece muito bem. Você claramente dormiu mal, até porque o chão foi feito para a gente pisar e não para a gente dormir, e temos o dia inteiro de estrada pela frente. – Examino seu olhar exausto, e molho os lábios antes de continuar – Sei que você está acostumado a cuidar de todo mundo o tempo inteiro, mas hoje você precisa deixar que eu cuide de você. Vou dirigir e você vai dormir, esse é o fim da história.

Ele pisca os olhos, confuso por eu o ter confrontado.

—Tudo...bem. – Ele me responde, depois de um longo silêncio.

Fico surpresa por ter sido tão fácil conseguir fazer com que ele concordasse comigo, e me sinto vitoriosa por isso.

—Certo. Vamos então. – Digo, decidida enquanto entramos no carro, ele no carona e eu frente ao volante.

Dean se aninha no banco, e fecha os olhos. Quando dou a partida, ele murmura de maneira sonolenta:

—Se você fizer um arranhão sequer na baby, você pode se considerar uma mulher morta...

Sorrio por ver que ao menos parte do seu humor quebrado está de volta.

XXX

Ponto de vista de Dean Winchester.

Quando acordo, sei pelos céus alvejados que já deixamos Oklahoma para trás. O ar seco e frio do Arkansas embaça os vidros, e eu olho para o lado e a vejo dirigindo.

—Bom dia, flor do dia. – Ela brinca, sem tirar os olhos da estrada cinzenta. Esfrego o rosto e endireito a minha postura.

—Que horas são? – Olho confuso pela janela. Minhas costas estão me matando.

—Seis horas. Vou parar ali. – Ela aponta no horizonte, e vejo uma lanchonete ao lado de um posto de gasolina, e concordo com a cabeça.

XXX

Ovos com bacon melhoram absolutamente tudo. Estou comendo enquanto assisto o jornal passando na televisão de tubo na parede, prestando atenção se há algo estranho acontecendo, mas são só notícias tediosas sobre o preço da gasolina. Hazel beberica um chá fumegante, e percebo que seu olhar está distante, meio que para o nada. Ela fica rolando o pingente do colar entre os dedos, de maneira nervosa.

—Ei, terra chamando Hazel...- Digo, e ela parece despertar do seu transe. – O que você tem?

Pergunto preocupado. Ela suspira e toma mais um gole de chá, sua expressão é indecifrável para mim.

—Que foi, somos amigos de novo? – Ela soa amargurada. É, ela não vai deixar barato. Não vai fingir que está tudo bem.

Suspiro e bebo um gole de café, o coração acelerado pelo nervosismo.

—Hazel, me desculpa pela forma como eu te tratei ontem. – Ela parece surpresa ao ouvir as minhas palavras que saem de forma pausada. – Eu estou preocupado com tudo o que está por vir, e fico meio ríspido quando fico assim. Eu descontei em você, e não foi certo.

Ela escuta com atenção, e parece avaliar as minhas palavras com o olhar afiado.

—Eu...só tive a impressão de que algo aconteceu na noite em que saímos. – Sua voz é cautelosa, e meu nervosismo aumenta – Eu não me lembro de muita coisa, só me lembro de me divertir e de me sentir grata por isso. Eu fiz alguma coisa, Dean?

Olho para baixo, tenso. Minha perna fica mexendo graças a minha ansiedade.

—Não. Foi uma noite ótima. Dançamos, falamos besteira, e foi só isso. Você não fez nada. –Me aninho na minha jaqueta jeans graças a uma lufada de ar que entra no ambiente quando um novo freguês entra pela porta da lanchonete – Enfim, espero que possa me perdoar.

—E por que você dormiu do lado de fora da minha porta? – Ela quer saber. Dentro de mim, é como se eu fosse feito daquele joguinho idiota, o tetris. E eu sinto tudo se desencaixando.

—Fiquei com medo de alguém ou...alguma coisa vir atrás de você. – Me limito a dizer, passando as mãos suadas no jeans. Percebo seu olhar confuso, tentando me decifrar.

Espero que não decifre. Seria humilhante demais.

—Dean, você não pode colocar a segurança das outras pessoas em primeiro lugar e se esquecer de você mesmo. – Ela diz de maneira séria – Não é certo.

Acabo dando uma risadinha irônica, relembrando a minha vida inteira.

—Você não entende. Eu tive que colocar a segurança de todo mundo em primeiro lugar. É o meu trabalho...- Dizer isso dói.

—E de quem é o trabalho de cuidar de você, Dean? – Ela me questiona, o cenho franzido em preocupação – Eu me preocupo com você. Você tem sido o meu melhor amigo, Dean.

Melhor amigo. O termo fica ressoando e quicando na minha cabeça e por algum motivo meu coração se espreme.

Sorrio de maneira fraca:

—Você tem sido a minha melhor amiga também. – Digo, porque é verdade. Ninguém no mundo me entende mais do que ela agora, e é por isso mesmo que dói – Prometo não ser idiota com você de novo, Laverne.

Ela sorri, debochada.

—Não faça promessas que não pode cumprir, Dean. – Assinto, rindo.

—Certo. E, Hazel...? – A encaro no fundo dos olhos – Por que estava chorando ontem à noite?

Seus olhos amendoados se tornam sombrios de repente, e ela se encolhe um pouco.

—Tive um sonho, com Jesse Turner. Acho que...acho que era uma lembrança...- Sua voz é pesarosa, e eu me ajeito na cadeira ouvindo com atenção.

—Foi uma lembrança...ruim? – Questiono com cuidado. Ela suspira, e parece confusa. Ela aperta a xícara de chá como quem busca por calor.

—Não. E sim. É... confuso. – Assinto, pensativo. Ficamos em silêncio por um tempo, até que um pensamento me passa pela cabeça.

—Hazel...você não se lembra de qual parte da sua infância, exatamente? – Uso as palavras com cuidado, ou pelo menos, tento. Ela fica um pouco na defensiva, decidindo se vai falar sobre isso comigo ou não, mas parece se decidir:

—Eu me lembro dos meus primeiros anos, no Bronx. Quase nada, só...o ladrilho do chão do primeiro apartamento que moramos...- Seu olhar fica longínquo – Meu pai cantando para mim. Depois, me lembro dos trailers em que ficava viajando pelo país com os meus pais. Me lembro da gritaria que era, por onde passávamos... – Seus olhos se enchem de água, mas ela não deixa as lágrimas caírem. – E então...Los Angeles.

—O que tem em Los Angeles? Nessas suas lembranças? – Pergunto, quando percebo que ela hesita.

—George White. – Sua voz é sombria de repente – E a família universal. Mas é tudo um borrão. Vozes, rostos embaçados pelo tempo...e uma sensação de pavor.

—Então...- Digo com cautela – É como se sua vida tivesse começado quando vocês partiram de lá, é isso? – Ela ergue as sobrancelhas e aquiesce.

—É...é como se fosse isso. E o pior é que, até recentemente, não me lembrava de Jesse. Nenhum pouquinho. – Sua voz tem um tom de culpa – Mas o engraçado é que sempre senti uma...ausência.

—Ausência? – Questiono. Ela assente, tomando o último gole do seu chá.

—Sim. Como se houvesse uma foto, e um buraco nela onde alguém costumava estar. Só nunca entendi a quem esse vazio pertencia. – Assimilo suas palavras, e fico pensativo.

—Pertence a Jesse? – Questiono. Ela dá de ombros.

—Parece que sim. Parece que há uma lacuna e que Jesse Turner se encaixa nela.

Absorvo nossa conversa e a expressão de dor em seus olhos. Tudo isso me faz levantar diversas perguntas, mas são todas sem respostas.

—Acha que alguém apagou a sua memória? – Começo a dizer – Um ser sobrenatural, talvez? Se os rumores estão certos e você tem uma ligação com um demônio...bom, faz sentido, não é?

—Eu não sei. No sonho que eu tive, Jesse me ensinava um jogo. Tinha uma...moeda, grande e estanha. E ele me fazia girá-la nos dedos, assim... - Ela faz o que estava fazendo mais cedo, com o pingente do colar – E me falava para esquecer de tudo. Esse era o jogo...

Assinto, e esfrego as têmporas de maneira pensativa.

—Acha que Jesse é...era, humano? – Não sei como me referir a ele. Está morto ou apenas desaparecido? O garoto é uma incógnita.

—Não sei. E, honestamente...tenho medo de descobrir. – Ela se reclina para trás em sua cadeira, e fica em silêncio.

—Precisamos ir. – Digo depois de um tempo – E agora, eu dirijo.

—Tudo bem. – Ela fala, se levantando – Vamos.

XXX

Está chovendo, e Hazel adormeceu no banco do carona. Não há nada no rádio além de estática, e não estou no humor de ouvir música.

Quando faço uma curva, Hazel pende para o lado ainda adormecida, e sua cabeça se reclina no meu ombro. Engulo em seco, porque ao senti-la tão perto, todo o meu corpo se arrepia. Ela tem um cheiro floral, acho que deve ser do seu shampoo, quem sabe.

Sorrio por alguns segundos, mas então o sorriso me deixa tão rápido como me encontrou.

Eu vou superar isso. Eu sei que vou.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne – New Orleans.

Conseguimos ficar em uma pousada no famoso quarteirão francês, e por ser fim de ano o lugar está completamente lotado de pessoas. Acontece que New Orleans é um ponto turístico muito marcante por suas histórias sombrias e lendas sobrenaturais. Pessoas do mundo inteiro se reúnem aqui.

Fico imaginando se essas pessoas soubessem a verdade...

Se soubessem que o monstro debaixo da cama é real, será que se fascinariam ou se amedrontariam? Será que viriam a New Orleans assim mesmo?

Será que seriam como eu, fascinados pela escuridão?

Estou sentada na cama com a cabeça apoiada em minhas mãos suadas pelo nervosismo.

Dean Winchester se senta ao meu lado, e sua respiração está pesada.

—Você está pronta? Para...passar por isso? – Sua voz é preocupada. Sinto como se houvesse um gancho no meu estômago, me puxando para baixo.

Como se a terra quisesse me engolir.

—Não. – A sinceridade escapa dos meus lábios – Mas precisa ser feito. Talvez eu finalmente descubra a minha história, a verdadeira. – Tenho um nó na minha garganta, e é difícil contê-lo. Mas eu irei— Não sei se George White vai nos dar as respostas que precisamos. Mas qualquer informação que conseguirmos, é melhor do que o que temos agora. Se vamos lutar contra tudo isso, precisamos saber contra o que estamos lutando, e por quê. O que é verdade sobre o que dizem sobre mim, e o que é mentira. – Me levanto, e vou para perto da porta – Vamos, Dean. Eu prometo que não vou quebrar.

Dean ouve o que tenho a dizer e assente, em silêncio. Ele se levanta e fica de pé ao meu lado. Seus olhos transmitem muita coisa.

Ele não é alguém que diz muito com palavras. Ele diz as coisas com os olhos.

Sei que está preocupado em como vou reagir estando cara a cara com um fantasma do meu passado.

—Está bem. – Ele diz, girando a maçaneta – Vamos encontrar o maldito.

XXX

Ponto de vista de Sam Winchester – O corpo, New Orleans.

—Você tem certeza, Ruby? – Pergunto para a mulher em minha frente. Ela está sentada em um caixote de madeira, abrigada em um casaco preto. Seus olhos escuros me fitam – Que a garota vai vir para cá?

—Absoluta. – Ela me responde, se levantando e andando até mim – Você ouviu o que Crowley disse. É uma questão de tempo para que ela venha procurar por respostas.

—Eu não sei como ele sabe dessas coisas...- Resmungo, impaciente. Não bebo sangue de demônio a dois dias, e estou começando a ficar nervoso.

—Ele é o futuro rei do inferno, Frankenstein. – Odeio quando ela me chama assim. Na verdade, odeio quando qualquer um tenta me chamar de alguma coisa. Se Crowley disse que não tenho nome, então é isso. Não tenho nome — Ele simplesmente tem suas fontes. E além do mais, todos os demônios da cidade estão de olho. É questão de tempo até algum deles...

A porta do barracão onde estamos se abre, e um demônio de olhos negros caminha em nossa direção.

—Eles estão aqui, Ruby. Acabo de vê-los indo em direção a prisão de segurança máxima. – Ruby sorri de maneira cruel, e seus olhos brilham de uma maneira estranha.

—Ótimo. Ela mordeu a isca. Vai visitar George White na cadeia. – Ruby vai até o outro demônio e entrega a ele um bilhete – Vá até o Crowley. Diga que estamos seguindo com o plano.

—Sim senhora. – O demônio diz, obedientemente – O rei vai ficar contente.

—Ah, ele vai sim. – Ela diz – Pode ir.

Ele assente, e sai pela porta. Ruby se vira para mim, e ajeita o cabelo ao dizer:

—É o seguinte, você sabe o que fazer, certo? Precisamos deixar que ela e o idiota do Winchester consigam informações valiosas com George White. Depois, no momento certo, você vai atraí-los para cá. Se lembra como tem que agir? – Assinto, firmemente.

—Devo agir como o ex-dono desse corpo, Sam Winchester. – Ela sorri.

—Muito bem. Vamos repassar as informações? Quem foi Dean Winchester? – Cerro os olhos, tudo o que consigo pensar é em como preciso deixar meu rei feliz para receber minha recompensa.

—Era o irmão de Sam. – Ela assente.

—E a garota? – Me sento em um dos caixotes de madeira.

—Foi namorada dele. Ele a perdeu e nunca mais a viu. Preciso parecer emocionado ao encontrá-los. – Ruby começa a andar em círculos, os saltos fazendo barulhos incômodos no chão.

—E como vai convencer Hazel de que isso não é uma emboscada? – Ruby se senta ao meu lado.

—Vou agir como se tivesse memórias, e farei o que for possível para que morda a isca. – Ela sorri.

—Muito bem. – Ruby busca algo em seus bolsos, e vejo que é uma ampola com sangue.

Começo a salivar com os olhos presos no líquido carmim.

—Uma vez que colocar as mãos na garota, qual é o próximo passo?

—Vou dar um jeito de trazer a garota para cá. – Não hesito em responder.

—Para quem? – Seus olhos brilham com maldade.

—Para você. – Concluo. Ela me entrega a ampola, e eu sorvo todo o líquido mais rápido que um sopro.

O gosto quente e metálico, viajando pelas minhas veias enquanto elas pulsam...é para isso que fui feito.

Respiro fundo e sorrio.

—Vamos. Vamos deixar nosso rei orgulhoso.

Eles não terão a mínima chance contra nós. Sou o diabo sem nome de New Orleans nesse momento, e estou indo pegá-los.

Meu criador ficará orgulhoso.


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Notas finais do capítulo

Vai doer de agora em diante, já estou avisando.

Comentem ♥

XOXO



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