Rain escrita por WriterM


Capítulo 1
Quando a chuva cai


Notas iniciais do capítulo

Olá, como vocês estão?

Tenho que admitir que essa é uma das minhas criações favoritas! Ainda que a ideia por trás dela tenha surgido muito do nada, eu realmente gostei do resultado advindo dessa espontaneidade. Espero de coração que vocês também gostem. No mais, desejo a todos uma ótima leitura.



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O céu outrora anil tornou-se cinzento quando a vasta redoma de nuvens carregadas encobriu o esplendor cerúleo, instaurando no lugar uma cobertura provida de outra forma de glória, robusta e monocromática. O presságio do temporal veio na forma de uma lufada de vento, fazendo chacoalhar os ramos de pequenas árvores, arbustos e pétalas multicoloridas das muitas flores que enfeitavam os jardins do bairro. A chuva não tardou a cair, e trouxe consigo um frescor muito bem-vindo ao calor sufocante daquele fim de tarde de sexta-feira. As águas despencaram, lentas e tímidas. Caíram como se explorassem algo inédito a elas, encharcando tudo o que podiam tocar no processo e forçando quaisquer transeuntes pegos desprevenidos a correr em busca de abrigo. IA observava os céus lançarem suas carícias molhadas sobre a terra da grande janela de seu quarto, no segundo andar da casa. Era uma visão tranquila, e ela sempre gostou de apreciá-la quando tinha a chance.

Logo às vésperas do fim de semana, parecia que Deus havia se compadecido por ela, enviando a chuvarada para lavar toda a fadiga advinda da desgastante semana de provas que enfim terminara naquele dia. Agora, longas férias de verão espreitavam no horizonte com promessas de algum descanso e diversão após a revelação das notas, o que de certo ocorreria dentro de alguns dias. Chuva é sinal de mudança, pensou IA, quando ela terminar, tudo estará transformado, e então podemos começar de novo. Sempre gostou da própria filosofia, embora muitos discordassem dela. Outros tantos, porém, achavam-na uma reflexão interessante. Não importava. Além de si mesma, uma única outra pessoa gostava de verdade do que dizia, e para IA, isso bastava.

Ela estava ali, ao seu lado, como sempre esteve.

O nome da sua melhor amiga era Hatsune Miku. Uma garota baixa – tinham, na verdade, a mesma altura – mas que de alguma forma sempre aparentava ser maior. Dona de um corpo magro e esguio de pele branca como leite, ostentava um rosto jovial ornamentado por exóticos cabelos turquesa, que presos por duas enormes marias-chiquinhas, desciam, estonteantes, pelas costas até um pouco acima dos quadris. Os olhos, tão lindos e brilhantes que poderiam ser confundidos com duas safiras, fitavam a chuva como se a vissem pela primeira vez. IA olhou-a de relance e teve a impressão de estar vendo uma criança que entra numa loja de brinquedos. O pensamento a divertiu. Miku de fato parecia uma criança às vezes, com toda a sua pureza e inocência, e estas eram qualidades que apreciava nela.

Haviam passado a tarde juntas, vindas diretamente do colégio, e ainda trajavam o uniforme: uma camisa branca decorada por gola, laço e bordas das mangas em um tom profundo de azul-escuro, a mesma cor da saia, e as meias 7/8 ostentavam o mais puro preto. IA sorriu ao constatar que aquelas roupas deixavam Miku parecida com uma boneca. A boneca mais linda do mundo, pensou, mas não ousou exprimir o pensamento em voz alta. Outras pessoas poderiam dizer o mesmo dela, afinal, beleza não lhe faltava. A impecável pele alva de IA conciliava-se perfeitamente com o seu deslumbrante cabelo creme, o qual despejava uma única mecha solitária por entre os olhos que eram tão azuis quanto os da garota ao seu lado.

A chuva pôs-se a ruir com mais força e um trovão distante reverberou. Apesar disso, Hatsune Miku apenas sorriu para o tempo fechado; um brilho inocente reluzindo em seu olhar. IA gostou de vê-lo. Miku sempre foi assim; encantava-se com as pequenas belezas da vida e gostava de contemplar o mundo ao seu redor. Era particularmente apaixonada pela chuva. Gosto de como ela faz as coisas mudarem por um instante, dissera-lhe uma vez, concordando com o seu raciocínio. Talvez por isso gostasse tanto dela. A forma simplista como enxergava a realidade, e a felicidade que conseguia extrair disso... IA era incapaz de fazer igual. Entretanto, pensou, não era essa a única razão pela qual gostava de Miku. Era, também, cada mínimo detalhe do seu rosto, seu corpo, a forma como cuidava do cabelo, o sorriso maravilhoso que dava quando ficava feliz. Era a sua gentileza, inteligência, verve, a coragem que tinha para dizer o que pensava. Não era menos admirável a animação com que falava dos assuntos que gostava, bem como das suas ambições para o futuro, encabeçadas pelo fervoroso desejo de deixar uma marca duradoura no mundo. Miku já quis ser atriz, desenhista, estilista, mas encontrara a verdadeira vocação na música e agora sonhava em tornar-se cantora. E ela tinha uma voz linda. Eram todos esses motivos – além de muitos outros – que faziam o coração de IA acelerar e borboletas dançarem em seu estômago.

Sentiu o sangue subir até o rosto e deixá-lo quente. Estou apaixonada pela minha melhor amiga, refletiu com um novelo de emoções no peito. Não que o pensamento a surpreendesse, havia tempos que nutria tais sentimentos. Contudo, ela nunca conseguiu desprender-se totalmente da ideia nauseabunda de que sentir aquilo era errado. Eram ambas garotas, mas por que isso devia, às vezes, causar-lhe tanta estranheza? Talvez fosse medo, ou insegurança, ou ambos. Mesmo assim, IA não tinha a pretensão de ignorar tal afeto; aquele amor estava ali, fazia parte dela. E ela já estava ficando cansada de escondê-lo. Queria confessar à Miku, mas, como poderia? Eram amigas há anos, amizade sólida como rocha, e se o que existia entre elas fosse arruinado por sua culpa? Não suportaria isso. E de que forma Miku reagiria? IA, apesar das dúvidas, podia não se importar de serem duas meninas, mas a Hatsune talvez pensasse diferente.

Ela encolheu em seu silêncio, lamentando que a questão fosse tão envolta em incerteza. Desejava que os seus sentimentos fossem menos complicados no exato momento em que outro trovão ribombou. Ouviu Miku dizer, absorta:

— É maravilhoso.

— O quê?

A outra olhou-a com surpresa, como se tivesse se esquecido que ela estava ali.

— Isso – disse e apontou para a janela. – A chuva. Os trovões. O céu. É tudo tão lindo.

IA observou a paisagem. Tudo o que viu foi uma cortina de água despencar impiedosamente das nuvens. Parecia agora ainda mais forte do que antes, e o vento sibilava sob o ruído estrondoso da chuva. Todavia, não pôde deixar de concordar com Miku. Por mais cinzento e molhado que o cenário fosse, ela sabia reconhecer um certo tipo de beleza ali.

— Tem razão. – Concordou IA. – Isso é... harmônico. Visto daqui, esse temporal parece caótico, mas lá fora, a água e o vento agem em perfeita sintonia para dar forma à chuva, e, juntos, eles mudam o tempo.

Miku anuiu. Depois, soltou um risinho abafado.

 — O que foi agora?

— Só pensei no que você acabou de dizer. Em perfeita sintonia. Isso me lembrou de nós duas.

— Nós... duas? – Indagou, perplexa.

— Sim. – Riu Miku. – Nós nos conhecemos há tanto tempo que eu nem consigo mais estimar quanto. Faz o quê, nove, dez anos?

— Mais que isso – parou e pensou por um segundo, até que a resposta exata enfim emergiu das suas lembranças. – Doze anos. Estávamos no jardim de infância. Pensando bem... Acho que naquele dia também estava chovendo. Não, espera, eu tenho certeza. Por causa do tempo ruim nós tivemos que ficar e esperar os nossos pais nos buscarem. Todas as outras crianças já haviam sido levadas, e apenas nós ficamos para trás.

— Eu me lembro disso! – Os olhos de Miku carregavam um brilho nostálgico. – Como só tínhamos a companhia uma da outra, ficamos brincando até que viessem nos buscar. Nos tornamos amigas, e depois disso passamos a nos falar todos os dias.

IA assentiu com um sorriso tênue. A lembrança fê-la sentir-se desconcertada. Era estranho imaginar que nascera um amor daquela amizade tão duradoura.

 — Doze anos... isso é muito tempo. – Disse Miku. – Nós nunca nos separamos desde então. Seja na escola ou fora dela, no verão ou no inverno, de dia ou de noite, não importa, nós sempre estamos juntas. E quer saber? Eu gosto disso. Funcionamos bem assim.

Muito bem, pensou IA, mas talvez possamos ficar ainda melhores. Um curto silêncio abateu-se sobre elas; o som da chuva lá fora era o único audível, e, de repente, a simples ideia de quebrar a quietude pareceu absurda, como se as palavras tivessem o poder de destruir o momento. Porém, passado algum tempo, Hatsune Miku prosseguiu:

— Passamos por muita coisa nesses últimos anos, não é? Foram bons tempos. De verdade. Foi divertido compartilhar essa época com você, IA; colecionamos tantas histórias, tantas memórias... Eu guardo todas elas em um cantinho especial no meu coração. Um espaço que é só seu.

Foi só por uma fração de segundo, mas IA pôde ver os olhos de Miku cintilarem com um brilho diferente ao dizer aquilo. Sentiu o coração acelerar.

— Eu quero continuar criando bons momentos com você, para sempre! – Disse Miku, elevando a voz. – Mas... não desse jeito, como estamos agora.

— O que você quer dizer? – arqueou as sobrancelhas, titubeante.

— Quero fazer diferente. IA, ficar junto de você realmente me faz feliz e é assim que eu quero estar. Então... o que estou tentando dizer é que... bem… eu gosto de você.

A surpresa foi tamanha que o ar fugiu dos seus pulmões. Encarou-a, pasma, e por um instante temeu ter ouvido errado; mas a expressão resoluta no rosto de Miku, bem como aquele brilho em seus olhos, não deixava espaço para dúvidas. Com os batimentos cardíacos subitamente desenfreados, IA pensou: Ela gosta de mim. Meu Deus, ela gosta de mim!

— Miku – balbuciou. – Por que... por que tão de repente? Por que agora?

A referida desviou o olhar e coçou a nuca nervosamente. IA viu que o rubor salpicava-lhe as bochechas de vermelho, e imaginou que as suas deviam estar tão rubras quanto.

— Eu só, hum, achei que era um bom momento. O momento certo, sabe? Você costuma dizer que a chuva significa mudança, então... eu quis mudar.

— Mudar o quê? – Inquiriu com a voz falha.

— O que existe entre nós.

A resposta fez as palavras sumirem da garganta de IA. Entreolharam-se, tímidas e incertas do que fazer a seguir, e a loira logo soube o que a amiga estava pensando – e sentindo. Compreendeu porque sentia-se igual. Não sabia dizer quanto tempo havia se passado, mas surpreendeu-se quando frágeis dedos de luz atravessaram a janela e incidiram no quarto. Elas olharam para fora simultaneamente. IA não recordava-se da chuva ter abrandado, mas ela agora caía com muito menos força do que antes; e o céu cinzento era dilacerado por fendas luminosas que surgiam entre as nuvens, lançando raios de sol canhestros para iluminarem a atmosfera ainda molhada. A chegada da luz resultara num magnífico arco-íris, enorme mesmo a distância.

Foi enquanto observava o fenômeno multicolorido que algo mudou dentro de IA. Um sentimento floresceu dentro dela, forte, fervoroso; e cresceu, mais e mais, inundando-a com ondas e ondas de pensamentos ousados que sempre estiveram ali, guardados a sete chaves num canto remoto do seu inconsciente, mas só agora dava atenção a eles sem desviar o olhar. Cerrou os punhos. Aquele sentimento era coragem, e ela deixaria que ele fosse o seu guia. Quando a chuva passar, tudo estará transformado, e então podemos começar de novo. A reflexão nunca soara tão emblemática como agora. Para lá da janela, a chuva continuava a cair sobre o bairro chafurdado; pouco mais que uma simples garoa, e o arco-íris estava ali, com todo o seu esplendor bem à vista de todos, simbolizando a transformação. Ele não precisava se esconder. E ela igualmente estava ali, orquestrando uma outra mudança.

IA também não queria mais esconder.

Moveu-se antes que recobrasse o juízo. Extinguiu o espaço que existia entre elas com uma passada só, tomou as mãos de Miku nas suas e a empurrou devagar contra a parede ao lado. Hatsune soltou um “ah” aturdido quando as suas costas encontraram o cimento, e IA avultou-se sobre ela até os seus rostos ficarem perigosamente próximos. 

— O que você está…

— Miku – sussurrou, fazendo a respiração quente roçar-lhe a pele. – Feche os olhos.

E então, ela a beijou.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por lerem. Espero que tenham gostado.

Até o próximo capítulo! xD



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