Marco zero escrita por Elie


Capítulo 3
Cozinheira




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— Então, Sara, além de ler poesia num canto aleatório da cidade, o que você faz da vida? - Marco perguntou. 

— Eu trabalho num restaurante, o Louise. Sou sus-chef. Não sei se você já ouviu falar de lá. Fica ali perto da Praça do Skate.

— Nunca ouvi falar, mas parece ser caro - ele riu e logo parou, desistindo de achar graça da própria piada. 

— O cardápio é mais salgado que a batata, então você deve ter alguma razão - brinquei, para que ele não se sentisse acuado.

Marco percebeu o que fiz e deu uma risada sutil, meio escondida no canto da boca. Incrível o quanto estávamos confortáveis desde a primeira conversa.

— E você? O que faz da vida? Deixe-me adivinhar... - Levei meu indicador ao queixo. - Deve ser professor de literatura conhecedor de poesia e poeta nas horas vagas. Talvez artista plástico. Músico?

— Só uma tentativa - ele avisou.

Pensei por uns minutos, tentando decifrá-lo. As mãos não tinham calos, não deveria ser músico ou artista plástico. Não eram muitas as pessoas que recitavam poesia de cabeça, então isso reduziu minhas possibilidades.

— Acho que você está mais para intelectual de alguma área. Chuto professor de universidade - respondi.

— Sou contador - foi direto ao ponto.

Dei um sorriso sem graça. Era a última coisa que esperava dele. Na minha cabeça, contadores eram senhores que trabalhavam de terno todos os dias, mesmo sabendo que era um pensamento preconceituoso. 

— Eu sei, eu sei - continuou. - Você esperava algo mais empolgante, mas vou te dizer, matemática e contabilidade conseguem ser interessantes.

Apertei os lábios e os olhos num gesto negativo, como quem diz "dúvido muito disso, meu camarada". 

— Além disso, ainda sou apreciador de literatura nas horas vagas. Só não produzo nada... - Marco acrescentou. Permaneci com uma expressão de incredulidade, jamais imaginei que ele fosse o tipo que passa seus dias num escritório. - Qual é? Não vai me dar uma chance? Aposto que o Louise tem um ótimo contador para gerir tantos funcionários que garantem um serviço top de linha.

Para ser sincera, não sabia nem o nome do contador do Louise, mas Marco tinha um bom argumento. Alguém tem que ser responsável pela parte chata dos impostos e afins. 

— Estamos caminhando às quatro da tarde, uma hora antes do meu horário de bater o ponto, conversando sobre poesia, literatura e contabilidade. Acho que eu já estou te dando uma chance, em? - brinquei.

Marco sorriu. A hora passava a passos largos conversando com ele. Sou do tipo de pessoa que demora a criar laços com gente nova, ele foi a exceção. Caminhamos por mais meia hora e falei sobre como era trabalhar numa cozinha que tinha uma estrela Michelin. Basicamente anos de estudo, muita dedicação, muita correria, facas e gritos por pedidos. Eu amava aquele universo. Sous chef era só um nome difícil para a minha paixão: ser cozinheira.

Adoro acordar cedo para ir a feira e selecionar os melhores legumes e frutas da estação. Adoro que o peixeiro e o açougueiro me conheçam pelo nome. Adoro o cheiro de fava de baunilha pela casa. Aliás, eu mais que gosto dessas coisas, elas me definem. Não há como dissociar Sara de uma cozinha, é meu lugar favorito da casa. Minha mãe disse que fiz meu primeiro ovo frito escondido dela aos quatro anos de idade e ganhei uma queimadura de presente. Aos sete anos já fazia um almoço que nem todo adulto consegue fazer.

— É uma pena - Marco comentou enquanto eu falava sobre meu amor por cozinhar.

— Porque? - perguntei, meio indignada.

— Agora você vai ter que cozinhar para mim. E você pode imaginar como tenho um gosto refinado... - caçoou.

— Será um prazer - pisquei para ele.

Considero esse dia nosso primeiro encontro. Despretensioso, feliz, tranquilo. Tudo muito Marco. Mais maravilhoso que camarão no ponto certo, manteiga feita na hora e claras em neve batidas com perfeição. Mais agradável que cheiro de bolo exalando do forno e até que calda de chocolate derretido se esparramando.

— Não quero abusar, mas se você estiver a fim posso te buscar depois do seu turno - ele sugeriu.

— Meia noite, então - pisquei para ele e segui meu caminho usual.

Fui trabalhar feliz depois dali. Até meus colegas de trabalho notaram que eu estava mais sorridente. Nem os gritos dos garçons me irritaram dessa vez e isso se refletiu na comida, pois ganhei elogios nesta noite.

Assim que pude, joguei o nome dele nas redes sociais, achei-o em uma delas, mas nada muito revelador. Fotos de paisagens, viagens e uma do aniversário da mãe dele. Assim como eu, ele era filho único. Já tinha conhecido a Europa inteira. Devia ter uns trinta e poucos anos. Deu vontade de saber cada vez mais sobre ele. Quis mandar uma mensagem, mas desisti, não queria parecer desesperada. Voltei ao trabalho. Bati o ponto na hora da saída. Mexi na bolsa. Achei um papel toalha riscado lá, era o desenho, ri. Abri minha agenda e deixei ele bem retinho para não amassar.

— Que cara é essa, Saralepe? - Bianca era a maitre do Louise. 

— Acabei de conhecer uma pessoa super interessante. Contador, alto, engraçado, gente boa. 

— E você não passa nem um corretivo, amiga? - ela parecia desapontada.

— Foi sem esperar, né? Na próxima vez eu me arrumo mais. O pessoal da cozinha trabalha nos bastidores, não somos como você que se arruma perfeitamente todos os dias - dei um tapinha nas costas dela, de brincadeira.

— Mostra foto - ela pediu.

Não tinha muitas fotos do rosto dele, o que a deixou meio desconfiada. Segundo a filosofia dela, os bonitos mostram o rosto, mas beleza não é tudo. O ex-namorado de Bianca era belíssimo e colocou um belo par de chifres nela na primeira oportunidade. Era um casal desses de televisão, pena que o relacionamento durou quatro meses e um mês de choro mais uma vida de desconfiança com o gênero oposto. Mas Bianca era jovem, tinha vinte e três anos e uma vida toda pela frente.

— O mercado está complicado - ela continuou. - Se o papo foi interessante, investe e vê no que vai dar. A última vez que você chegou feliz assim nessa cozinha foi quando encontrou caranguejos de pesca legal e sustentável. Eu nem acredito que exista uma pessoa que se preocupa tanto com caranguejos.

— Imagina se entram em extinção. Cruzes - retruquei.

Bianca então me lançou aquele olhar meio materno meio irônico.

— No próximo encontro, você prepara seu melhor vestido, faz uma maquiagem bem sexy e cozinha qualquer coisa afrodisíaca que quiser. Aliás, faz um prato só com alimentos afrodisíacos e se for bom a gente pode vender em potes. Com certeza ficaremos milionárias. 

— Caranguejo afrodisíaco com molho de pimenta e  gengibre, marinado na catuaba selvagem, com farofa de castanha de caju. Até Santo Antônio vai querer a receita - zombei.

Ao ouvir isso, Bianca tentou segurar o riso, como se julgasse minhas escolhas, mas logo caiu na risada. Peguei minha bolsa e saí pela entrada de serviço. Marco estava lá em sua moto branca e azul, com um capacete na cabeça e o outro que empunhou na minha direção.

— Acho que não... - sempre fui tive medo de altas velocidades.

— Prometo que vou devagar - Marco tinha olhos escuros e brilhantes.

Fiz que não com a cabeça e ele não escondeu sua decepção.

— Vamos fazer o seguinte... Deixa a moto por aqui e vamos caminhando até a estação de metrô - propus.

Imagino que ele planejou alguma corrida pela cidade, mas eu não subiria naquela moto por nada, ainda mais que eu só o conhecia há algumas horas. Se por um lado parecia divertido, meu lado racional sabia que era loucura. Compreensivo como ele era, logo estacionou a moto por perto e veio me acompanhar.

— Guarde o que falo... Você ainda vai pedir para andar nessa moto comigo - a iluminação da rua não escondia os dentes aparecendo naquele sorriso mordaz.

— Sabe, alguns clientes são ricos o suficiente para comprar uma garrafa de vinho que custa quinhentos reais para deixar dois terços da garrafa intactos - mudei de assunto. - Que sorte a minha que a maitre é minha amiga! Topa?

Olhei para ele com um sorriso malicioso e tirei a garrafa da minha bolsa. Marco devolveu o sorriso.

— Topo!

Fiquemos um pouco em silêncio durante a caminhada, mas não foi um silêncio desconcertante. Senti como se estivéssemos admirando a beleza da praça, cheia de adolescentes andando de skate e patins, ao mesmo tempo. Não sei se era isso que ele pensou, mas gosto de imaginar que sim. Estava um frio agradável e as únicas luzes que tínhamos eram as luzes do tráfego e os postes.

Eu não estava nervosa. Parecia que Marco já era um amigo antigo. Não demorou muito até ele segurar minha mão. Confesso que me senti meio boba andando de mãos dadas com ele. Dividimos o vinho e o álcool me aqueceu, tomamos diretamente do gargalo. 

— Sara, já sentiu que sua vida toda caminhasse para o agora?

— Isso aí é redundante - ironizei.

Percebi na hora que ele não gostou do meu sarcasmo. Não levei muito tempo para entender que Marco não gostava de quando eu me escondia atrás de ironias.

— Entendi o que você quer dizer. O mundo tem infinitas possibilidades e de alguma forma nós dois viemos parar aqui nesse exato momento. Talvez seja coincidência, talvez não - tentei não acabar com o clima.

— É isso - Marco tinha aquele sorriso que fazia seus olhos se fecharem.

E aí nos beijamos pela primeira vez. Ficamos ali por uns vinte minutos. Não queria ir embora, mas o último metrô sairia em dez minutos e eu não queria ir de moto para casa.

— Avisa quando chegar em casa, Sara!

Corri para pegar o último metrô e não via a hora de vê-lo novamente. 


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