Marco zero escrita por Elie


Capítulo 2
Branco, bege e preto




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DEPOIS

Eu me senti ridícula por estar usando bege. Brancos e beges são reservados para ocasiões felizes como batizados e casamentos. Faltou preto em mim, como nos filmes americanos em que todo mundo veste preto em funerais. Só que mais uma vez, senti-me ridícula por estar pensando em cores num dos dias mais tristes da minha vida.

Tinham muitas flores em cima do caixão dele. Flores enviadas por pessoas que não estavam presentes e pessoas que eu não conhecia. O dia estava até bonito. Céu azul, grama verde, nem muito frio nem muito calor. O tipo de dia que as pessoas rezam para ter quando vão ao parque.

Era um dia tão bonito quanto era triste. Meus olhos estavam inchados e esbugalhados, então os escondi em óculos de sol que jamais usaria após aquela ocasião. 

— Saiba que estarei aqui para o que precisar - senti uma mão gelada em meu ombro esquerdo.

Voltei-me na direção daquela pessoa e agradeci aos céus por ser Bruno, um dos poucos amigos com quem eu conseguiria conversar ali. Sua namorada, Isabele, estava a poucos metros de nós para que tivéssemos espaço. Ela esticou os lábios em tristeza e acenou. Retribuí o olhar triste. Sempre gostei de Isabele, pois ela sempre sabia como se portar e o que falar.

— Isa está devastada. Disse que depois te visitaria - ele continuou.

— Obrigada. Vocês são incríveis. Não sei o que seria de mim sem seu apoio - minha voz permanecia embargada, rouca de tanto choro.

Então comecei a chorar desesperadamente mais uma vez e a pensar coisas bizarras, maldosas e sem sentido. Imaginei como seria se fosse Bruno no caixão e Isa no meu lugar. Não sei que atitude eu tomaria, nem se eu seria tão elegante quanto ela. Mas esse pensamento inútil e ruim saiu logo da minha cabeça assim que percebi o egoísmo nele.

— Trouxe mais água - minha mãe chegou, abraçou Bruno com força e pegou uma das garrafas que ela colocou numa cesta.

— Tão bom poder contar com um amigo como você, querido. Mande lembranças à sua mãe - ela disse e se retirou. Provavelmente não queria que eu a visse chorando por minha causa. Minha mãe já havia passado por muitas perdas recentemente. Esperei ela se distanciar para continuar a conversa.

— Ele odiava funerais - respirei fundo e expirei de uma vez só. - Dizia que era um ritual de adeus feito para quem fica.

— Normal. É traumático - Bruno permaneceu sucinto. Deveria estar com medo de me fazer chorar mais ainda. - Vamos, beba um pouco de água.

Quando Bruno me serviu, pude olhar como ele estava acabado. Olheiras profundas e rosto pálido, talvez um pouco emagrecido. Eu estava preocupada em diminuir os danos causados em minha mãe, mas eu também estava sugando a energia dos meus amigos. Naquele momento, eu precisava ser forte por mim e pelos outros. Respirei fundo.

— Vai passar... - murmurei. Nesse momento, lembrei do poema de Mário Quintana e meus olhos encheram de lágrimas, as quais eu segurei dessa vez.

Bruno me abraçou profundamente por um período que pareceu mais de cinco minutos. Foi um abraço inesquecível. Eu poderia ouvir o coração dele batendo junto ao meu, como se estivesse tentando dividir meu sofrimento para que eu tivesse cinco segundos de alívio. Apesar da situação ser a pior possível, senti-me com um pouco de sorte por tê-lo.

— Você sabe que pode contar comigo de... - ele iniciou nosso lema.

— Olhos fechados e dedos cruzados - dei o sorriso menos triste em muitas horas. - Criança inventa cada besteira - continuei.

— Não é besteira. Pelo contrário, é muito importante. Você sabe disso. E sabe que eu vou manter essa promessa.

— Obrigada - e voltei a chorar. 

Abracei-o mais uma vez e ele foi para perto de Isa, que estendeu sua mão, entrelaçou-a na mão dele e o beijou na testa. Desconectei-me da realidade mais uma vez enquanto eles se distanciavam, quando os gritos estridentes de Miriam me acordaram. Era a vida real e era um inferno.

— Meu filho! Meu filho! Meu filho! Não pode ser! Meu filhinho - o trauma rouba as palavras das pessoas. - Digam que é mentira! Não é ele! Olhem pro caixão, não parece com ele! Meu filho é muito mais bonito.

Cruzei meu braços e enfiei minha cabeça dentro deles, tentando me isolar.

— Sara! Sara! Digam que eles estão mentindo! - Miriam gritou.

Lentamente, tirei meu rosto dos meus braços, olhei para Miriam com os olhos vermelhos e fiz que não com a cabeça.

— Ah! - Miriam aumentava cada vez mais o volume de sua voz.

Alguns minutos depois, ela sentou-se ao lado do corpo e ficou chorando em silêncio, alisando o cabelo cacheado dele, beijando sua cútis arroxeada e desfigurada. Eu não tinha conseguido me aproximar.

"Se eu soubesse que seriam assim, teria reclamado menos dos cigarros", era mais um dos meus pensamentos irracionais.

— Eles vão fechar o caixão, Sara - minha mãe avisou. Era um lembrete que eu não o veria mais.

Levantei-me devagar e fui na direção do caixão. Quanto mais me aproximava, mais lento eu caminhava. Quando consegui chegar perto, não o reconheci. Estava longe de ser o Marco cheio de vida que conheci. Os olhos fechados, os algodões nos orifícios, nada remetia ao que eu lembrava. Daí só consegui chorar de um lugar em que consegui vê-lo sem encostar. Devia estar gélido e eu não queria mais essa lembrança sensorial.

Quando os homens fecharam o caixão, fiquei sem reação, estava em choque. Minha mãe chamou por mim e não respondi. Só pensava em como coisas ruins aconteciam com pessoas boas, o clichê de sempre.

— Sara, perdemos ele - Miriam segurou em minha mão e eu retribuí com um aperto firme.

— A gente deve ser forte. Ele jamais ia querer te ver assim. Vamos passar por isso juntas - não sei como consegui continuar.

Parafuso a parafuso, o corpo se tornou uma caixa de madeira fechada. As pessoas cantavam uma canção que eu desconhecia enquanto andávamos até a cova. Daí, colocaram o caixão na cova, jogaram as flores lá dentro, joguei o livro que eu estava lendo quando o conheci, cobriram com terra.

— É isso, ele se foi - falei sem perceber.

O reflexo no óculos de minha mãe mostrou como eu estava. Eu nem estava lá. Havia uma lápide como o nome dele: Marco Santiago. De vez em quando, eu me beliscava para acordar do pesadelo, mas só ganhei hematomas com isso.

Dei adeus ao amor da minha vida. Marco. Eu gostava de pensar que ele era meu Marco Zero e que minha vida estava dividida entre antes e depois de Marco, como o calendário é dividido entre antes e depois de Cristo, ou como a linha do Equador divide a terra em norte e sul. Essas coisas assim, óbvias e inesquecíveis. Coisas simples. Um Marco zero e uma Sara que sentia que nunca iria sarar.

 


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