A difícil arte de ser eu, Charlie escrita por Charlie


Capítulo 7
A pessoa certa na hora errada?




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Amigo, está tudo bem?

Uma voz...

Tontura...

Ainda sinto uma tontura e junto dela ouço uma voz...

Eu não sei de quem é essa voz...

Amigo...

Uma voz... E uma mão... Uma mão continua pesando sobre o meu ombro esquerdo.

Descubro os olhos e imediatamente volto a me deparar com os carros sobre a avenida passando como flechas disparadas habilmente, rumo a um destino certo, sem interrupções, ao passo em que um resquício de vertigem volta a me assolar enquanto busco o equilíbrio entre a necessidade de sobreviver com o mínimo de dignidade ou mergulhar de corpo e alma dentro desse mar de agonia que vem me acompanhando desde o instante que dona Jane me deu A NOTÍCIA.

Balanço a cabeça num gesto quase imperceptível.

A NOTÍCIA. A NOTÍCIA.

A ida para a cidade da minha avó... sozinho.

Não terei todos os meus amigos na minha despedida...

Elle... Como vou sobreviver sem você?

De novo, não consigo pensar. De novo, não consigo ordenar o que seja. Todos os meus pensamentos, de novo, flutuam intangíveis numa espécie de exposição abstrata vertiginosa.

Merda.

Amigo...

Uma voz... E uma mão também continua pesando sobre o meu ombro esquerdo.

Fecho novamente os olhos e súbito meu cérebro é tomado pelas palavras que dona Jane me dirigiu depois das minhas primeiras manifestações dramáticas e de rebeldia quando fui informado da virada de 180 graus que minha vida iria sofrer. Minha mãe, evidentemente, buscou abrandar, ou reduzir, vai saber, todo o meu sofrimento afirmando que as pessoas possuíam altos e baixos em algum momento de suas vidas e que nutrir pensamentos ansiosos sobre uma situação estressante seria normal, mas — é claro que sempre existe um “mas” — nem todo mundo que sofria de ataques de pânico teria transtorno do pânico.

Ter ou não ter uma mãe psicóloga? Eis a questão. Elas racionalizam tudo. Não nos deixa dramatizar, padecer e com isso nos tira o direito de atravessar as tais fases do luto que elas mesmas apregoam — a negação, a raiva, a negociação, a depressão e a aceitação, e essa última eu não sei se vou alcançar. Alguém avisa para a doutora Jane que eu estou sofrendo perdas irreparáveis e quero passear, e com escalas, entre todas essas fases?

Mais uma vez a tal voz distante perguntando se está tudo bem. Não consigo identificá-la. Será que essa voz é real ou é pura e tão somente a minha mente, o meu corpo sinalizando a aproximação de um colapso definitivo e inevitável?

Preciso me controlar...

Preciso me controlar...

Um, dois, três...

Um, dois, três...

Balanço a cabeça bem, bem devagar enquanto percebo o som ao redor voltando a ser captado pelos meus ouvidos de forma cristalina, sem interrupções, atropelos, desordem...

O mar...

A praia...

O mar...

Eu vim até aqui para ver o mar, a praia...

Mas onde eles estão?

Respiro forte, profundo, meus pulmões quase arrebentam tamanha a força com que inalo todo ar à minha volta, ao mesmo tempo que sinto mãos envolverem meus braços com firmeza, me forçando a recuar alguns passos, como se eu estivesse prestes a sair correndo, sem destino, incontrolável...

Você está bem perto da rua, sabia?

Abro os olhos e de pronto miro o chão. Não havia percebido que eu estava em pé, na beirada de um meio fio.

Mais um ou dois passos e você poderia ser atingido por um carro...

Minha alma volta para o corpo instantaneamente. Não que eu tivesse notado sua fuga. E com este retorno à realidade, uma sensação de medo, uma falta de respeito e tolerância a mim mesmo acaba por acender um pavio em meu peito, de novo e mais uma vez, alimentando o mesmo combustível na fogueira da minha sensação de impotência quando Tao me deu a notícia sobre os arranjos finais para a despedida na Rainbow...

Vergonha e culpa... Sinto vergonha e culpa e raiva...

— Amigo? Você está me ouvindo?

Pelo Criador. A pessoa não pode sequer ter um ataque de pânico em paz?

Beirando o contrassenso, viro a cabeça para o lado, na direção dessa voz misteriosa que está aporrinhando a minha paciência e daí eu me deparo com um jovem esquadrinhando sem qualquer cerimônia cada canto do meu rosto.

Era só o que me faltava!

Mesmo notando sem grandes esforços uma brandura genuína no semblante dessa pessoa, não consigo deixar de me sentir incomodado. Mas, talvez por isso, somente por isso, por esse seu ar distinto, semicerro os olhos na tentativa de encontrar algum traço familiar em sua fisionomia que justifique essa postura insolente, porém, claro, não encontro nada! Nenhum resquício de que eu e esse jovem, essa pessoa, tenhamos qualquer identificação.

Pronto. Fiz a minha parte!

— Independente de qualquer coisa, a vida é muito bela para que a desperdicemos.

— Como é que é? Você está achando que eu vou me atirar embaixo desses carros?

Pergunto, ofendido, ao mesmo tempo em que trato de encarar com demasiado desdém o indivíduo de pé, ao meu lado para, no instante seguinte, baixar os olhos na direção dos meus braços que estão enlaçados pelas mãos dele, retornando, sem demora, a fitá-lo e com cara de poucos amigos, pois quero, sim, quero que essa pessoa entenda o tamanho, a extensão do meu desconforto. Mas, por incrível que possa parecer, não recebo qualquer resposta, tão somente o carinha afrouxa suas mãos, sem pressa alguma, até deixar os meus braços totalmente livres, enquanto seus lábios se movem, ensaiando um sorriso carregado de indulgência, ao passo em que seus olhos transbordam uma firmeza e segurança inacreditáveis, como uma embarcação navegando de forma absurdamente tranquila em meio a uma violenta tempestade, e isso me deixa ainda mais puto.

— Não quer se sentar?  — o carinha pergunta, evidente, com a maior desfaçatez.

É impressão ou esse ser humano realmente não parece nem um pouco afetado com a minha reação deliberadamente hostil? Por que algumas pessoas precisam ser tão filantrópicas e simpáticas? Reflito com demasiada amargura e impaciência, prendendo o fôlego para liberar em seguida o ar lentamente, conforme volto a encarar a avenida, e de vez em quando, de soslaio, olho o sujeito ao meu lado, que permanece parado, a poucos centímetros, exalando receptividade.

Merda.

Segundo dona Jane, poucos indivíduos conseguem aceitar críticas, mesmo sendo construtivas e com isso a insegurança acaba nos forçando a vê-las como um ataque pessoal e aí colocamos em discussão a própria autoestima reagindo de maneira passivo-agressiva ou até mesmo abertamente agressiva e eu estou fazendo isso agora. E sabe-se lá o porquê, estou me sentindo mal reagindo dessa maneira... eu acho.

Reunindo todas as forças possíveis e imagináveis, conto até dez e inclino a cabeça, voltando a fitar o chão, o meio fio onde meus pés estavam se equilibrando e então conto até dez novamente e num esforço hercúleo, sim, sim, desesperadamente num esforço gigantesco, eu peço desculpas ao tal rapaz, mas entre os dentes, sem baixar a guarda, e depois ergo a cabeça, com toda dignidade que posso reunir, e me viro por completo na sua direção.

— Não se preocupe. Só estava um pouco pensativo, distante... — remato, dando de ombros enquanto o meço de cima a baixo sem cerimônias. Agora, de frente, percebo que temos a mesma altura, só não arrisco a mesma idade, mas ele não deve ter mais do que vinte e três.

— Desculpe se te ofendi...

O jovem parado à minha frente inicia com um sorriso meio sem graça, mas, daí, alguém grita o nome “Nick” e ele se vira imediatamente.

— Estamos atrasados cara — vocifera um rapaz a certa distância.

Nick — com aspas, porque não sei se realmente esse é o seu nome. Em verdade, é apenas um apelido, não é mesmo? — acena com a palma da mão direita, sinalizando para o outro que o aguarde e se volta para mim logo em seguida.

— Realmente peço desculpas pela minha intromissão, mas você me pareceu um tanto distraído...

— É... Eu estava realmente pensando na vida... — respondo pouco me importando se minhas palavras irão parecer evasivas. Ainda estou na defensiva, fazer o quê?

Até que esse Nick com aspas não é feio. Olhos em tom de mel, cabelos bem cortados, sobrancelhas grossas, nariz empinadinho... E lábios finos? Ok, ninguém é perfeito...

— Vamos — ele aponta para o alto, atrás de mim — Te ajudo a atravessar...

De bom grado eu me viro e sigo a direção por ele apontada e dou de cara com o semáforo vermelho.

— Jura? — lanço minha pergunta carregada de descrença e sarcasmo conforme volto a fitar o jovem de lábios finos — Você está brincando, né?

Nick com aspas encolhe os ombros, claramente desconcertado, mas ainda assim não deixa de me encarar. Seus olhos tom de mel irradiam uma estabilidade surpreendente diante da saia justa em que eu o envolvi.

— Nick... — mais um chamado do seu amigo — Cara, estamos realmente atrasados.

Dessa vez Nick com aspas o ignora.

— Creio que abusei do demérito de ser indelicado... — recebo essa satisfação enquanto o vejo arquear as duas sobrancelhas, deixando escapar um sorriso meio tímido do canto dos lábios.

 

Demérito...

De ser...

Indelicado?

 

Pelo Criador! Quem, nos dias de hoje, consegue ser tão cortês, se preocupando em usar o português de maneira exemplar, já que nesse nosso país verde e amarelo as pessoas não só falam cada vez pior a nossa língua, como se interessam cada vez menos em aprendê-la?... Estou completamente desarmado. Esse Nick com aspas acabou de conseguir catapultar o meu humor da mais profunda depressão a uma felicidade exultante.

— Eu quem peço desculpas, por favor. É que estou um pouco ansioso, nervoso, ou qualquer outro adjetivo que termine em oso... — respondo já revirando os olhos após me arrepender dessa manifestação digna de um colegial. Detesto me comportar como um idiota, ainda mais na frente de um carinha da hora como esse que consegue unir na mesma frase um substantivo e um adjetivo com uma elegância ímpar...

— Preciso ir então — Nick (acho que vou parar de usar com aspas, né?) anuncia estendendo a mão direita, que eu, claro, trato de apertar sem demora — Meu amigo está me esperando e daqui a pouco vai “entrar em trabalho de parto”, e pelo andar da carruagem é bem capaz de parir elefantes gêmeos. 

Rimos da sua piada, mas ele sorri um sorriso contagiante, delicioso e que mais parece uma estrela brilhando bem forte no meio de uma tempestade...

— Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando estiver triste, porque nunca se sabe quem pode se apaixonar por teu sorriso.

— Como? — questiono sem pestanejar diante dessa inusitada declamação ao mesmo tempo em que nossas mãos se soltam — O que você disse?  

— Gabriel Garcia Marquez — ele responde sem afetação — Um dos meus escritores favoritos.

Gabriel Garcia Marquez?! Pelo Criador. Onde esse ser humano estava escondido todo esse tempo? Além de ter um olhar sincero, um sorriso largo, sabe se expressar sem hesitações, de jeito claro e tem um timing... Diferente do Ben, que só sabe falar de esportes, reality shows e de tantas outras coisas óbvias...

 

Peraí.

O que eu tô fazendo?

Esse Nick com aspas há cinco minutos estava achando que eu era um neurótico suicida...

 

Cérebro, coração — o senhor de vermelho principalmente —, vamos dar um tempo, ok? Não vou deixar vocês me jogarem dentro daquela espiral de carência me fazendo ver coisas aonde não existe, e o pior de tudo, alçando o prego do Ben a um patamar de referência.

— Você realmente está bem? — Nick quase sem aspas pergunta, rompendo o meu silêncio contemplativo e cheio de nóia.

— Estou sim... — não demoro a responder, me policiando a fim de evitar qualquer outra reação que me fará parecer um completo pateta — Obrigado pela sua gentileza e cavalheirismo. Está de parabéns...

 

Gentileza e cavalheirismo?!

Está de parabéns?!

Onde eu estou com a cabeça?

 

A minha carência deve ter alcançado níveis insustentáveis e alarmantes. Agora estou me expressando como uma donzela de algum desses romances de época estrelado pela insossa da Keira Knightley. Imediatamente me esforço para sustentar um semblante de paisagem.

— Tudo bem então. Mas tenha cuidado.

Nick — fodam-se as aspas — sugere, enquanto recua dois passos, sem tirar os olhos de cima de mim até se virar e começar a caminhar na direção do tal rapaz que o está aguardando com cara de poucos amigos. Eu, claro, aproveito a oportunidade para vislumbrá-lo por completo, ainda que ele esteja de costas, desde o tênis branco até os cabelos curtos e lisos e o corpo escultural, sem exageros, sendo valorizados por uma bermuda de sarja terrosa, rente ao corpo, e uma camisa polo branca levemente justa, que faz o favor de deixar alguns músculos visíveis.

Pode apostar que vou ter cuidado, sussurro para mim mesmo, extasiado, ao mesmo tempo em que fico admirando Nick se afastar por completo ao lado do seu acompanhante até começar a se perder no meio das pessoas que estão transitando pelo calçadão.

Uma estranha sensação de desespero me invade de repente. Sou tomado por um desejo arrebatador de seguir esse tal Nick e perguntar se por algum acaso do destino não nos conhecemos, ou para me apresentar, dar o número do meu celular, o endereço do meu face, qualquer coisa que possa abrir um precedente para nos encontrarmos novamente... Respiro fundo, bem fundo e fecho os olhos. Preciso me conter.  O que esse Nick — com aspas. Merda! — praticou foi tão somente uma boa ação me fazendo enxergar que a humanidade ainda não está de todo desperdiçada.

Abro os olhos e os direciono para a praia, para o horizonte que se desdobra diante de mim. A noite está começando a cair e uma brisa suave toca minha pele e então decido avançar para a areia, me afastando do calçadão onde o movimento dos transeuntes só faz aumentar, coforme rumino os motivos que levaram esse tal Nick a me citar a frase do Gabriel Garcia Marquez sobre alguém poder ser apaixonar pelo nosso sorriso. E justamente no momento em que eu estava sorrindo de volta para ele?

Não. Não.

Meneio a cabeça não acreditando nos devaneios que estou permitindo que meu cérebro crie. Estou mais uma vez parecendo uma destas protagonistas femininas de romances cafonas que são retratadas exageradamente como inseguras, sem personalidade e ingênuas, a ponto de olhar para um estranho na rua e pensar, nossa ali está o grande amor da minha vida, e em seguida ouvirem fogos de artifícios explodindo, sentirem a terra tremer e cheiro de flores inundando o local onde estão.

Não. Definitivamente não vou descer por esta estrada. Já sei onde ela vai dar. Dias, uma semana ou talvez duas criando expectativas, hipóteses, por alguém que nunca mais verei e para quê? Para desperdiçar o meu tempo e morrer na praia? Não. Desta vez vou optar pela racionalidade. Já tenho problemas demais acontecendo a minha volta para querer mais um... Talvez essa ida para Tão, tão distante — se realmente acontecer, mas é óbvio que vai acontecer, a quem estou enganado? — me ensine como lidar com essa minha falta de maturidade emocional...

 

Por que fui sair do meu quarto?

Devia ter ficado por lá, hibernando nessas últimas quarenta oito horas.

 

Paro de caminhar quando chego bem próximo do mar, o suficiente para sentir suas águas tocando os meus pés, molhando as havaianas com as quais estou calçado.

Ok. Fiquei impressionado com a postura desse tal Nick com aspas. Só isso. Ele parece ser bacana, inteligente, divertido, tudo o que o Ben não é e nenhum dos meus outros dois namorados também foram...

Merda. Merda. Merda.

Não sei por que estou gastando essa energia. Esse Nick com aspas nem sequer olhou para trás enquanto se afastava. Provavelmente o carinha que o estava chamando era o seu namorado... É isso!

Não resisto à tentação e viro a cabeça para o lado onde os dois se perderam na multidão, na expectativa de me surpreender com Nick voltando...

Até parece.

Idiotice e ingenuidade a minha, claro.

Procuro o celular no bolso da bermuda para poder ligar para Elle e sem demora constato o seu visor completamente apagado. Talvez o tenha desligado sem querer depois que falei com o Tao, busco me convencer enquanto certifico a probabilidade da minha teoria. Nada feito. A criança está sem bateria. Mas também não sei se minha amiga ia me dar a atenção que eu tô precisando, do jeito que está enrolada com aqueles dois trabalhos da escola. No mínimo ela iria me passar outro sermão, eu trato de justificar tentando combater minha frustração ao passo que devolvo o telefone para o bolso e então volto-me na direção do mar, cruzando os braços e erguendo um pouco o queixo enquanto semicerro os olhos, continuando a sentir a água brincando em volta dos meus pés.

Fato: meu cupido deve possuir algum problema de visão seríssimo, ou talvez dois, uma hipermetropia + astigmatismo, e dona Jane vai me torrar o saco porque eu estou demorando a voltar. Melhor achar o rumo de casa. Vai que ela decide colocar em prática o que prometeu e não me deixe ir à minha festa de despedida...

Pelo Criador.

 

Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando estiver triste, porque nunca se sabe quem pode se apaixonar por teu sorriso. Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando estiver triste, porque nunca se sabe quem pode se apaixonar por teu sorriso. Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando estiver triste, porque nunca se sabe quem pode se apaixonar por teu sorriso.

 

Acho que o mundo talvez não seja um lugar tão ruim assim.


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