A difícil arte de ser eu, Charlie escrita por Charlie


Capítulo 6
Se eu pudesse voar...




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Desço na estação do metrô de Siqueira Campos, em Copacabana, e sigo pela Rua Tonelero ao encontro da “Princesinha do Mar”, que me aguarda cinco quadras adiante ao tempo em que os carros costuram o asfalto e as pessoas andam num ritmo frenético, enfileiradas sobre as calçadas, ignorando sumariamente a presença de um mendigo que parece estar dormindo, espremido num canto de uma parede, embrulhado em trapos e folhas de jornal. Diminuo consideravelmente os passos ao atravessar a frente do espaço que ele ocupa, a fim de observá-lo. Talvez para ter a certeza de que esteja vivo, respirando. Talvez por mera curiosidade. Ou talvez para constatar o óbvio, e que não deixa de ser um grande absurdo: a empatia do ser humano, a capacidade de enxergar o próximo foi sugada pelo intenso campo gravitacional de um buraco negro e comprimida até ser destruída por completo.

De repente, recebo um esbarrão tão forte que me faz desequilibrar a tal ponto que, para não cair, apoio um dos braços à parede enquanto ouço um quase inaudível pedido de desculpas de alguém que segue em frente sem sequer olhar para trás.

E assim caminha a humanidade.

Deixo escapar um suspiro, forte e longo, bem longo, à medida que recolho o braço, endireito os ombros e esquadrinho mais uma vez a figura do morador de rua, ao passo que começo a refletir sobre um milhão de coisas que se mesclam numa velocidade arrebatadora em minha mente, dentre elas se lá em Nárnia também existem pessoas que são obrigadas a viver sem um teto, se o peso que estou dando à carga de inquietação a respeito da minha partida é realmente válido, se eu devo buscar algum tipo de serviço social para tentar me convencer de que existem problemas bem maiores que o meu, se fugir de casa é a solução acertada para acabar com toda essa confusão ou, vai saber, se tudo o que estou passando não é nada mais que um contínuo pesadelo.

Não consigo pensar. Não consigo ordenar o que seja. Nenhuma dessas hipóteses ou averiguações permite ser alcançada. Todas flutuam intangíveis numa espécie de exposição abstrata vertiginosa e daí eu chacoalho a cabeça num movimento mais que determinado a fim de jogar cada uma dessas especulações para longe conforme volto a endireitar os ombros, me forçando a recordar o propósito que me ajudou a sair daquele apartamento: preciso expurgar a baderna que tomou conta de mim, de cada espaço do meu ser... A praia... O mar... O mar vai me ajudar, tenho certeza disso.

Retomo o meu trajeto, por fim, antes que eu seja novamente jogado para escanteio por algum Neandertal desesperado em tirar o pai da forca, porém, não sem antes depositar um pouco mais de minha atenção por sobre o morador de rua, que, realmente, parece estar adormecido num sono pesado. Concluo, então, que no frigir dos ovos não devo ser tão diferente dos demais seres humanos, cuja empatia foi sugada por um campo gravitacional de um buraco negro. E isso me dá arrepios.

À medida que vou seguindo adiante, passo à frente de diversos botequins, bares de sucos, alguns antiquários e lojas de quinquilharias até me permitir parar defronte de um delas, encantado com sua vitrine tomada por uma variedade de modelos de bonequinhas Frida Kahlo feitas de material reciclado. Mas não me demoro. As miniaturas da icônica pintora mexicana são fofas, porém, é preciso seguir, ter foco, my heart will go on. Ergo a cabeça e olho para frente, contudo, mal dou meia dúzia de passos, logo me deparo com um casal passeando de mãos dadas, na direção contrária à minha, cheio de sorrisos e certamente segredando segundas e terceiras intenções.

Merda.

Evidente que troco de calçada conforme reflito sobre o quanto de tempo que vou gastar até me recuperar em definitivo da febre Ben, concluindo, entre derrotado e muito puto da vida, de que meu cupido deve possuir algum problema de visão seríssimo, ou talvez dois, uma hipermetropia + astigmatismo, vai saber, afinal de contas eu tô sempre, sempre shippando casais de amigos e sempre, sempre terminando sozinho ou com o cocô do cavalo do bandido.

O celular começa a vibrar. Num gesto automático, faço menção em resgatá-lo do bolso da bermuda, porém, hesito. Ser for o Ben pronto pra cobrar satisfação sobre a postagem no Secrets? Isso vai acontecer, mais cedo ou mais tarde, eu sei. Algo dentro de mim afirma e aos quatro ventos que sim, que o ordinário pseudo-hetero irá me cobrar satisfações...

O celular segue vibrando e eu continuo o meu trajeto tentando obstinadamente ignorá-lo, contudo é impossível.

Pode ser que esse momento tenha chegado. 1 2 4 5 visualizações, não posso me esquecer desse número, não posso. Eu apaguei a mensagem? Sim. Apaguei. Entretanto, tudo o que fazemos na internet deixa rastros. Tudo é monitorado por empresas e até mesmo pelo governo norte americano. Então para o Ben ou algum de seus amiguinhos ter tido acesso àquela mensagem e deduzir a quem pertence sua autoria, sem grandes esforços, não custou nada. E era esse o propósito, não era? A não ser que eu troque o número do meu telefone até depois de amanhã, o que vai ser praticamente improvável, preciso decidir como encarar essa bosta toda: ou desligo o celular definitivamente até entrar naquele avião ou me preparo como um homem de verdade para as consequências do meu ato idiota.

Inspiro e expiro. Meu coração palpita, acelera. A porra do celular e seu vibra call não param. Não me resta alternativa senão estacionar antes que eu tropece nos meus próprios pés e alguém passe por cima de mim como um trator desgovernado. O mundo não pode continuar a girar em torno do Ben. Ao menos não como antes.

Enfio a mão no bolso da bermuda com um cuidado incrível, como se estivesse caminhando por sobre um campo minado, ao mesmo tempo em que recosto na parede atrás de mim, já quase totalmente tomada pelas típicas sombras de um fim de tarde de outono e daí retiro o celular e o mantenho em minha mão. A palma fechada. Os dedos cerrados. Forte. O maldito aparelho insiste em dar sinal de vida.

A consciência pesada é uma merda.

“Charlie, meu amigo, você agiu por impulso. Se vingar de alguém nada mais é do que se igualar a outra pessoa...”.

A consciência pesada além de ser uma merda é também um carrasco infeliz.

“... Você abriu um precedente para que o Ben, de réu, assuma o papel de vítima nessa história.”.

Eu te odeio Elle!

Eu te odeio Elle!

Eu te odeio Elle!

Inspiro. Expiro.

É isso. Não vou atender. Talvez não seja uma boa ideia, não mesmo. Vou desligar a porra desse telefone.

A praia...

O mar...

O mar vai me ajudar...

Vibrando, vibrando...

Merda. Não posso. Tenho que atender. Sei que se não fizer isso, se enfiar o telefone de volta no bolso, não vou ter paz de espírito.

Merda.

Merda.

Merda.

Baixo os olhos. Os dedos da minha mão estão vermelhos, trancafiando o celular.

Um, dois, três...

Um, dois, três...

Abro os dedos.

Meu coração vai saltar pela boca.

No display, o número do meu amigo, Tao.

 

Pelo Criador! Aleluia!

 

Uma sensação de alívio sem intervalo no tempo e no espaço me invade como um relâmpago atravessando os céus numa noite de tempestade furiosa enquanto deixo escapar o ar dos pulmões, sem pressa, à medida que aproximo o aparelho do ouvido.

My friend... — ouço o habitual cumprimento no tom de voz moderado de Tao — Está podendo falar?

— Sim... — demoro um pouco a responder, como se minhas cordas vocais estivessem com dificuldade em relaxar — Estou caminhando. Por isso demorei um pouco pra atender.

— Ok — Tao faz uma pequena pausa antes de prosseguir — Então... Acabei de acertar os detalhes finais que faltavam com o administrador da Rainbow. Simplesmente sua festa vai ser inesquecível, digna de uma entrega do Oscar e com certeza será lembrada por muitos, muitos anos como a melhor despedida que alguém poderia ter...

Reviro os olhos e deixo os ombros caírem. Um balde de água super, hiper congelada é jogado sobre a minha cabeça ajudando num piscar de olhos a substituir a sensação de alívio por uma avassaladora contrariedade. A notícia dada por Tao funciona como um combustível queimando a fogueira da impotência dentro de mim, potencializando minha falta de confiança, nutrindo minha raiva, minha tristeza, minha ansiedade e o meu medo, fazendo-me beirar a irracionalidade. E me odeio por isso, por não estar conseguindo controlar esse monstro. E estou me odiando ainda mais por ser Tao, um dos meus melhores amigos, o fator desencadeador da vez. Todavia, é mais forte do que eu.

A pequena discussão que eu dona Jane tivemos hoje, no final da manhã, adentra covardemente o meu cérebro. Assim como as imagens de Nárnia, com sua via principal dividida por um canteiro extenso, como os da primeira metade do século XX que cruzavam a Rio Branco. Assim como a imagem da fotinha ridícula da priminha caipira com seu ar pedante por trás do sorrisinho cretino.

 

Querido, você vai para Laranjeiras antes de mim”.

“Querido, você vai para Laranjeiras antes de mim”.

“Querido, você vai para Laranjeiras antes de mim”.

 

Focar na respiração. Preciso focar na minha respiração.

 

“Charlie, serei eternamente grato a você. E, na boa, sei que não é desse jeito que eu devo te dizer isso, mas não há outro modo. Esse nosso namoro... Você... Não você, mas a relação, o que vemos tendo nesses quatro meses me ajudou entender, a ter a certeza de que eu curto garotas”.

 

A praia...

O mar...

O mar vai me ajudar...

 

“Charlie, nós temos mesmo que ficar tão sentimentais assim?”.

 

— Charlie, my friend, você ouviu o que eu falei?

A voz de Tao me resgata do meu iminente naufrágio emocional, mas apenas o necessário para que eu não afunde de vez. Ao menos por agora.

— Resolveram a questão das identidades? — pergunto, não conseguindo disfarçar meu desgosto e impaciência.

— Não como queríamos — Tao admite um tanto vacilante — Mas a boate vai ser todinha nossa! — a sua euforia do outro lado da linha continua a me incomodar, muita coisa.

 

“Por que não aceitou o convite de amizade que a sua prima Tori te enviou pelo Facebook? Ela está ansiosa por este contato”.

 

Respiro fundo, engolindo a raiva vermelha e crua antes que ela exploda de vez. Tão não merece isso... Todavia, é mais forte do que eu.

— Não como queríamos? — disparo. A voz cortante, repreensiva — Todinha nossa? — enfatizo os pronomes carregando-os com tanta ironia que faria o Coringa parecer uma criança ingênua dentro das fraldas — Bem, estamos em 2019, Tao. Isso significa que cada membro da nossa turma, sem exceção, vai poder cruzar a porta da boate sem a necessidade de comprovar que nasceu antes do ano de 2002, correto?

Ouço o sopesar da respiração de Tao seguido de um instante de silêncio. É mais forte, muito mais forte do que eu e sinto muito por isso, meu amigo.

— Charlie, de boa... — Tao inicia, e como sempre, dando sinais de que está escolhendo as palavras certas — Eu não quero parecer aquele tipo de gente que gosta de mostrar serviço, valorizando o próprio passe, cujo foco é ganhar a luta sem se preocupar em nocautear quem estiver à sua frente, mas você melhor do que ninguém sabe que fiz de um tudo para que sua festa acontecesse lá em casa, para que todos os nossos amigos pudessem ir...

Arqueio a sobrancelha e levanto os olhos para observar as pessoas passando à minha frente no pedaço da calçada que lhes deixei. Bem que a dona Sarah, mãe do Tao, poderia ter permitido que essa reunião acontecesse lá na casa deles, já que aquele palacete é o único lugar viável para um evento desses, onde sem sombra de dúvidas não nos preocuparíamos com espaço e tão pouco com horários ou a necessidade de comprovar o ano em que nascemos. A porra de um palacete que supera de longe qualquer salão de festas ou boate, ou qualquer playground dos apartamentos compactos onde todos os outros da nossa turma residem, inclusive eu.

Essa despedida, mesmo sendo um marco definitivo e infeliz da minha ida para aquela terra dos sem fim, é o último alento que resta para me ajudar a chegar com vida até domingo, antes de subir naquele maldito avião. Portanto, gostaria de aproveitar ao máximo cada segundo, me esbaldar, tomar todas, rir, chorar, gritar, e principalmente matar saudades dos meus amigos que já não vejo a uma semana desde que deixei a escola. Mas na boate isso não vai ser possível. E Tao nem precisou dizer isso com todas as palavras. Nem todos os nossos amigos possuem uma carteira de identidade falsa — diferente de eu, a Elle, o Tao e mais meia dúzia de outros tantos — para poder ter a passagem liberada.

— Charlie, você ainda está aí? — ouço a voz de Tao ecoando no meu ouvido, trazendo-me de volta, novamente, para o mundo real.

— Tao — meneio a cabeça e logo em seguida ajeito o telefone próximo à orelha antes de continuar — Não queria parecer ingrato, me desculpe... — preciso lutar bravamente contra o monstro da frustração, preciso — Sei o quanto você se dedicou pra que tudo isso desse certo, aliás, que dê certo. Inclusive uma boa parte da sua mesada acabou entrando nesse jogo, já que a “vaquinha” do pessoal não foi suficiente para o aluguel na boate...

— Se vamos falar sobre isso eu vou desligar... — Tao tenta me interromper.

— Me deixa terminar, por favor? — minha ordem disfarçada de um pedido é carregada de uma veemência quase cruel — Do que vai adiantar termos toda a Rainbow só para nós se uma parte do nosso grupo não vai estar lá para comemorar a minha fuga involuntária do Rio de Janeiro? — despejo num só fôlego enquanto vejo as pessoas transitando à minha frente, agora praticamente rente ao meu nariz, como se não houvesse mais espaço na calçada da qual estou ocupando apenas um mísero canto. E caso eu tente me espremer mais um pouco contra a parede atrás de mim, ficarei grudado como um decalque ou possivelmente irei atravessá-la, jogando por terra todos os princípios e conceitos da Física.

Outro instante de silêncio recai sobre a nossa ligação, porém dessa vez um pouco mais inconveniente que o anterior.

— Foi a sua deixa, Tao — sinalizo, por fim, num tom de voz rabugento depois que não ouço qualquer indício de manifestação por parte do meu amigo.

— Ok. Não acredito que eu ouvi esse discurso carregado de pragmatismo e autopiedade, Charlie — apesar de notoriamente desapontado, Tao não altera em nada o timbre moderado da sua voz — Até ontem à tarde, quando nos falamos pela última vez, você estava bem animado. Na verdade, se bem me lembro, estava eufórico para que chegasse logo a noite de hoje, mesmo sabendo que iríamos realizar sua despedida na Rainbow, com todos os contratempos que não puderam ser alterados. E o lance das identidades não ficou fora da nossa conversa. Ok. Era uma hipótese, mas uma hipótese praticamente descartada. A única diferença, agora, é que ao invés do espaço reservado que iríamos ocupar, vamos ter a boate só pra gente, e isso é um bônus... Realmente, não tô te entendendo.

Nem estou me entendendo.

Tao faz uma pausa, parecendo que está tentando recuperar o fôlego.

— Não consegui compreender, ainda, my friend, o motivo dessa mudança repentina de humor. Sua ida para a Terra do Nunca, até onde sabemos, é irrevogável, portanto já que o leite está derramado, vamos mexer os esqueletos em grande estilo sobre ele.

— Minha mãe me contou hoje que eu irei sozinho lá pro Sítio do Pica-pau Amarelo. Ela não vai mais comigo, pelo menos não de imediato, — comunico ao mesmo tempo em que miro o chão, me permitindo sentir envergonhado e resignado, ao menos um pouco, — Dona Jane disse que ainda precisa terminar de resolver algumas coisas por aqui... — promovo um intervalo dramático antes de continuar — Em suma, vai me jogar na cova dos leões e eu que lute.

— Charlie, é só uma questão de tempo — Tao retruca — Daqui a dez meses vais completar 18 anos e então vai poder seguir seu caminho, e quem sabe até lá você não acaba se familiarizando com seus parentes mineiros?

— Nem na próxima encarnação — devolvo irritado, voltando a encarar com indocilidade o mundo ao meu redor.

— Charlie, vamos conversar mais tarde, ok? Preciso resolver algumas coisas que a minha mãe está pedindo, na verdade está intimando... Você tem a dona Jane e eu a dona Sarah, então sabe muito bem como isso funciona...

— Eu tô pensando seriamente em ligar para o irmão do meu pai perguntando se eu posso ir morar na Alemanha com ele e a família — interrompo Tao sem pestanejar, pouco me importando se vou parecer ainda mais choroso.

— Ok... É uma ideia...

Consigo ouvir o tic tac na cabeça do meu amigo e por um breve instante acredito que ele irá desprezar a minha nem tão sutil demonstração quase histriônica de chamar atenção e sem qualquer cerimônia desligar o celular na minha cara.

— Primeiro my friend, você estaria trocando seis por meia dúzia, já que a família do seu tio é tão próxima de ti quanto à da sua mãe...

— Ao menos o irmão do meu pai mora na Europa, não no quinto...

— Segundo, você não sabe pronunciar nem um bom dia em germânico — Tao prossegue, me ignorando lindamente — E por certo, Charlie, você não iria conseguir viver vinte e quatro horas do dia enfurnado dentro da casa do seu tio e da sua família ariana até conseguir aprender o básico para se comunicar. Terceiro, se essa hipótese sequer fosse plausível, nós dois sabemos que a dona Jane não iria permitir que você fosse para lá, mas sejamos otimistas e consideremos que ela lhe apoie, aí então esbarramos no seu pai, que odeia o seu tio, sabe-se lá por que motivos, e por isso, tão somente por isso, seria o último lugar da face da Terra que ele concordaria em deixar a sua digníssima pessoa ficar.

— Então meu pai que me leve pra Curitiba — completo, deixando o peso do corpo sobrecarregar a parede atrás de mim — O problema é entre ele e o meu tio. Eu não tenho nada a ver com isso, assim como minha mãe, que não conseguiu resolver as pendengas dela, lá, em Tão, tão distante, e agora quer me usar como escudo... Aliás, olhando por essa perspectiva de ambivalência de vínculo paterno-fraternal, consigo entender, finalmente, os motivos que me fizeram ser filho único.

— Charlie, eu preciso ir. De verdade — Tao anuncia — Prometo que mais tarde, mesmo com toda a diversão acontecendo à nossa volta, iremos conversar sobre isso e tudo mais que você quiser. Ok?

Despedimos-nos e Tao é o primeiro a desligar enquanto fico olhando para a tela do celular por um bom tempo.

Assim como Elle, Tao também é uma alma irmã, mas no pódio das minhas amizades, se é que eu posso colocar dessa forma, ele ocupa o segundo lugar, e com uma larga desvantagem em comparação à minha amiga. Não que Tão não seja digno ou não se esforce em demonstrar incansavelmente o valor de uma verdadeira amizade. Só eu sei o quanto lhe devo... Tao é muito legal, companheiro, capaz de mover céus e terras por alguém que esteja ao seu lado, bem diferente dos outros filhinhos de papais que transitam no mesmo colégio que a gente, quer dizer, no mesmo colégio do qual um dia fiz parte. Mas é que ninguém, ninguém mesmo sobre essa Terra de Deus vai conseguir algum dia alcançar o patamar da Elle. Não mesmo.

Desde que eu conheci o Tao, há três anos, assim que ele chegou transferido de Brasília, nos tornamos amigos. Confesso que sua beleza física, aquele tipo de beleza da qual é impossível não se deixar arrebatar, enlevando até mesmo aqueles que se sentem inferiores e despeitados diante dos atributos físicos de uma pessoa formosa, foi o que me chamou a atenção de imediato. E também a atenção de todas as garotas da escola, cabe destacar. Tao, com quatorze, já possuía um rosto clássico, com traços fortes, mas agora, com dezessete, sua beleza está ainda mais realçada, tipicamente masculina, transmitindo força e equilíbrio numa face bem simétrica, sem falar no sorriso mega espontâneo que combina com seus olhos expressivos.

Não é pra menos que ele é considerado o cara perfeito, capaz de arrancar suspiros de onze entre dez meninas, fazendo-as se esbofetear, se essa fosse uma condição para tê-lo como namorado, mesmo sabendo de sua homossexualidade. Por sinal, algo que Tao fez questão de deixar claro logo que chegou por aqui, o que Elle, em tom de galhofa, até hoje, pontua ser um desperdício sem precedentes para o time feminino.

Deixo escapar um sorriso meio de lado ao me lembrar dos rumores que surgiram logo depois que eu e Tao começamos a nossa amizade, quando várias pessoas, incluindo os meus amigos mais antigos, não conseguiram acreditar, ou entender, que nós não éramos namorados, e quem nem sequer tínhamos ficado. Assim como a maioria não crê que um homem e uma mulher heterossexuais não podem ser somente amigos, também não se esforçam para compreender que dois gays conseguem manter uma amizade passando longe do desejo carnal, mesmo sendo dois adolescentes com todos os hormônios pululando por cada poro de seus corpos.

Guardo, por fim, o celular no bolso da bermuda e sigo em frente no que resta do meu trajeto. Definitivamente a adolescência é uma massa de bolo que ainda não está pronta, transbordando sofrimento e ansiedade num ritual cruel onde ficamos grudados, lutando bravamente para nos libertar.

A praia, finalmente.

Paro no final de uma calçada, ao lado de algumas pessoas, esperando que o semáforo libere nossa passagem, o que não demora a acontecer e então alcançamos, quase em sincronia, o famoso calçadão do outro lado da Av. Atlântica, onde não demoro a escolher a direção que devo tomar para começar o meu caminho reflexivo sobre o mosaico de pedras portuguesas em formato de ondas.

É claro que a enxurrada de pensamentos relacionados à mudança para a cidade onde mora minha avó não demora a invadir, de novo e mais uma vez, minha mente, e eu tento controlá-las, mas sem sucesso, óbvio.

Mas a praia...

O mar...

Eles estão aqui. Eu estou aqui. Eles vão me ajudar...

Inspiro e expiro pausadamente enquanto luto contra uma vontade absurda de gritar muito, muito alto e então paro e me viro na direção do mar e vejo o sol começando a se ocultar no horizonte, o fulgor vermelho na orla do mundo se tornando cor de rosa, o céu lentamente passando de azulão para um sutil azul esverdeado... De repente sinto meu rosto queimar e minhas pernas fraquejarem. Estou sufocando.

Preciso me controlar...

Preciso me controlar...

Um, dois, três...

Um, dois, três...

Silêncio! Sim. Silêncio. Um silêncio repentino. Cru. Isso me apavora. Balanço a cabeça, temeroso e logo o som ao redor retorna, mas um tanto confuso, embaralhado...

Merda. Merda.

Olho novamente para o horizonte, para o céu avermelhado, em busca de paz, porém, minha crise de pânico — eu tenho certeza de que é uma crise de pânico — parece que está aumentando. Meneio a cabeça de um lado para o outro, devagar, tentando controlar o quase incontrolável e dou meia-volta para encarar a rua... O zigue-zague dos carros na avenida, velozes como foguetes, desfila à minha frente e meus olhos correm tentando acompanhar a velocidade de cada um deles, mas é impossível... Sinto, então, uma tontura repentina e ato contínuo coloco as mãos sobre os olhos, cobrindo-os totalmente e mal tenho tempo de pensar, remoer o que seja, já que sinto uma mão pesando sobre o meu ombro esquerdo.

Amigo, está tudo bem?

E também ouço uma voz ao longe... Sim. Ela está bem longe. E parece que está me perguntando se eu estou bem.


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