A Teoria Dos Corpos escrita por LittleR


Capítulo 4
Verbos Anômalos


Notas iniciais do capítulo

Memórias de um garoto que esqueceu de salvar a si mesmo
Boa leitura!



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 IV. Verbos Anômalos

 

Quanto a Itadori, eu não sei dizer o que ele sente.

É como se ele estivesse suspenso em um momento de contentamento eterno que só passa quando ele fica suspenso por um instante de raiva.

Itadori é assim.

Ou ele fica feliz ou com raiva. Raramente se permite ficar triste. Nunca se permite ficar triste por si mesmo.

Ele não quer sentir pena de si.

Ele não quer se dar uma chance.

Ele é do tipo que continuaria lutando mesmo depois que o mundo acabasse, porque sente que tem a obrigação moral de fazer isso.

Eu acho isso triste pra caralho.

E é isso que provavelmente vai matá-lo antes que ele morra de verdade.

Quanto a mim, eu me espremo entre meu sarcasmo e meu desconhecimento da vida enquanto Sukuna me impede de respirar.

Sua mão me ergue facilmente alguns centímetros do chão até que meus pés balancem do alto de meu desespero.

A criatura em minha mente me diz para não ter medo.

A criatura em minha mente sou eu.

Sukuna ri, seus olhos serpenteando pelas manchas brancas que tomam meu corpo.

— Eu ainda não decidi o que fazer com você — diz ele. — Eu a mato ou não? O garoto tem reações engraçadas quando está perto de você, como será que ele vai se sentir se eu destruir a felicidade dele?

Meu peito pulsa, minhas costelas explodindo. Minha companheira de cela amaldiçoada ganha mais força e então ri, uma risada que ecoa, profunda, porque vem do fundo do poço, onde estou. A mancha branca se ergue de minha mão até meus cotovelos.

— Sukuna Ryomen — cantarola a coisa com minha voz. Com minha satisfação. Com meu sarcasmo ácido, meus desejos mórbidos e meus verbos de ligação. — O grande senhor das maldições.

Sukuna sorri, e é largo, arrogante, bestial, estica todos os músculos da face de Itadori de um jeito que ele próprio jamais seria capaz, nem se tentasse muito.

Ah — ele exala. — Vamos fazer assim: se as próximas palavras que você disser forem do meu agrado, eu a deixo viver.

Minhas expressões escurecem. Eu ergo o queixo e um sorriso para exprimir desafio:

— Olhe só no que você se tornou. Sua criatura patética, recolhendo seus cacos no chão. Feito em pedacinhos minúsculos como se fosse confete, sobrevivendo das migalhas que uma criança dá pra você. — A mancha alcança meus ombros. É fria como uma tempestade de neve, mas eu me sinto tão confortável aqui. — E você ainda se atreve a se chamar de rei?

O rosto de Sukuna é fúria encarnada. Queima as expressões suaves de Itadori, as transforma em assassinato e vingança. Minhas vísceras se desfazem ante a onda de poder que ele emana, tão forte que afunda o solo sob seus pés, queima a pele de meu pescoço onde ele me toca.

Mas ele não pode me ferir. Toda minha pele é branca como cal agora. Eu sou toda amaldiçoada, desde a informação mais primitiva do meu DNA até os verbos anômalos que me definem como pessoa.

Eu fecho meus dedos ao redor do pulso que me segura no ar. Aplico um fluxo de poder que vem de meu diafragma e explode em minha mão. Ouço o barulho de ossos estalando e a mão de Itadori perde a força, larga meu pescoço.

Eu fico de pé, sorrindo cruelmente para a suave surpresa nos olhos de Sukuna, seu braço estraçalhado em minha mão.

O braço de Itadori.

Eu entro em pânico. Estou hiperventilando na sala claustrofobicamente fechada que é meu corpo, da prisão onde o demônio me colocou. Meu rosto não transparece o terror que sinto. Não sou eu ali.

Fogo estala nos olhos de Sukuna e ele ergue a mão livre para mim, para me esmagar como o inseto que sou, mas seu ataque morre. Seus olhos se fecham e ele, seus crimes hediondos e sua falta de moral, desaparecem da pele de meu amigo.

Itadori retorna com olhos arregalados para o braço que eu seguro, a dor estampada em seu rosto. Seus joelhos cedem e ele geme baixo. Um som que me apavora e me eletrifica.

Meu rosto sorri para ele, cheio de prazer e contentamento.

— Criança — minha voz diz. — Você não deveria se apegar tanto a alguém que morrerá logo.

Eu deixo a mão dele cair. 

A última coisa que vejo é o rosto horrorizado de Itadori enquanto minha visão desvanece e eu caio na escuridão. 

...

Eu tenho sempre o mesmo pesadelo.

Já faz um tempo que o tenho, mas não sei quanto tempo exatamente.

Estou submersa em uma escuridão infinita, completamente nua de tudo.

De roupas, de pensamentos, de verbos, de passatempos.

Sou uma sala vazia dentro de outra sala vazia, com apenas silêncio para me preencher.

E mesmo vazia, eu sou enlouquecedoramente pequena.

Eu me movo por minha sala, meus pés nus no chão frio, abro a única porta do cômodo.

Eu me esgueiro por um corredor também escuro e nu, que dá para uma sala muito maior e, portanto, muito mais vazia.

Eu paro no fim do corredor quando vejo a silhueta que balança diante de uma janela parcialmente iluminada.

Balança.

Do lustre.

Como uma pipa.

Eu sou incapaz de gritar. Minha garganta está desprovida de sons, não há um verbo sequer que me console, então todo o desespero se acumula em meu peito sem poder sair.

Meu corpo está vazio, mas meu interior transborda.

Meus pulmões secam, meus rins explodem, minhas costelas trincam e eu morro noventa e nove vezes ainda de pé, olhos arregalados para a pessoa pendurada pelo pescoço no centro da sala.

É minha irmã.

É a última coisa que tenho.

E agora, eu não tenho nada.

 

Eu sou agarrada do sono por uma mão gentil que me puxa em direção a um peito sólido, confiável e quente.

Eu reconheço o cheiro de shampoo masculino e sabonete.

É um cheiro que penetra meus poros e se instala na segunda camada da minha derme, me enche de interjeições e verbos intransitivos.

Eu jogo meus braços ao redor de suas costas e afundo meu rosto em seu peito.

Eu molho com lágrimas a camisa do pijama de Itadori Yuji, mas ele não parece se importar.

— Está tudo bem, está tudo bem, foi só um pesadelo — consola.

E eu sei, assim como sei que o céu é azul e que o sol nasce a leste e se põe a oeste, que foi nesse momento que me apaixonei por Yuuji Itadori.

Foi nesse momento, na escuridão do quarto, meu rosto em seu peito, a mão dele acariciando minhas costas, que eu soube que o amava.

E que desenvolver esse sentimento seria a coisa mais linda e mais triste que já me aconteceu.

Itadori era um rapaz que decidiu morrer.

E eu decidi amá-lo.

Eu me afasto de Itadori, ainda em choque e limpo minhas lágrimas, refreio os soluços que escapam por minha garganta.

No quarto parcialmente iluminado, percebo seu pulso enfaixado e sou atingida por uma onda alucinante de vergonha.

— Desculpe — choramingo. — Eu não...

Eu quero dizer que não tive a intenção, mas eu meio que fiquei cansada de repetir isso.

— Não foi culpa sua — ele diz.

— É o que você fica dizendo! — retruco, deixando a raiva tomar o  lugar da culpa. — Eu quebrei seu maldito braço e você me diz que não é minha culpa? Não é minha culpa, Itadori?!

Kugisaki dá um passo em direção ao quarto e só então percebo que ela esteve ali o tempo todo, na porta. Fushiguro ainda está lá, o mesmo olhar que não diz muito e que diz tudo.

— Kaoroku... — Kugisaki começa.

Eu me levanto da cama, me afasto de Itadori e piso pelo quarto numa fúria nervosa.

— Kugisaki, diga algo a esse garoto. — Aponto para Itadori. — Ele continua dizendo bobagens. Temos que falar com Gojou-sensei, vocês têm que me colocar de volta naquele quarto com os selos, algemada de preferência. 

Kugisaki me segura pelos ombros.

— Ninguém vai colocar você lá. Se acalme. — pede, e soa como uma ordem.

Meu rosto se franze e eu empurro seus braços de cima de mim.

— Onde você estava enquanto eu machucava seu amigo?

Itadori se levanta e intervém:

— Não foi bem ass...

— Cale-se!

Eu me afasto deles e vou até a varanda. É noite. Talvez duas ou três da manhã. A lua brilha linda no céu, branca e imaculada, uma fina curva que parece um sorriso.

Meus pés estão nervosos, eu estou tão nervosa, com tanta raiva de mim mesma que eu poderia me rasgar fora do meu corpo, mas não posso. Não posso me abster de mim, não importa o quanto eu tente.

— Era mais de uma maldição, nós acabamos nos afastando — relata Kugisaki.

— Vocês não sabem o que eu quase fiz. — Há tanto remorso em meu peito que as palavras saem apertadas pela minha garganta.

Eu atravesso o quarto em direção à porta. Preciso ir para algum lugar, qualquer lugar onde eu não possa machucar ninguém, talvez pra um prédio muito alto de onde eu possa pular ou para os trilhos de um trem.

— Kaoroku, espere! — pede Itadori, mas eu passo por ele sem hesitar.

Chego à porta e Fushiguro barra minha passagem.

— Sente-se — ele diz friamente. — Agora.

Minha boca se comprime.

— Não venha agindo todo arrogante pra cima de mim — acuso. — Nem é como se você se importasse comigo. Agora saia-

— Eu não me importo com o que você acha — ele ecoa. — Você é a portadora de uma maldição desconhecida, possivelmente nível especial pela forma como destruiu aquela outra, então eu não vou deixar você sair por aí fazendo o que quer e podendo machucar pessoas que não têm nada a ver com sua birra. Agora se sente e escute.

Eu mordo a bochecha até sentir sangue na minha boca. Engulo as lágrimas em goles duros. Giro sobre os calcanhares e volto para a cama. Afundo no colchão, as molas rangendo quando me inclino e apoio os cotovelos nos joelhos, a testa nas palmas das mãos. Ouço a voz repreensiva de Itadori.

— Fushiguro!

— É a verdade — ele responde.

Eu não acho realmente que Fushiguro é uma pessoa fria. Itadori me disse que foi ele quem o salvou de ser morto imediatamente no instante em que absorveu Sukuna.

Ele é sim caloroso, uma pessoa que se importa.

Eu só não sei lidar com ele, porque ele está numa classe totalmente diferente da minha. E ele não sabe lidar comigo, porque eu sou anômala.

— Desculpe. — Respiro fundo. — Me desculpem, eu... Eu não quero que ninguém mais se machuque por minha causa.

— Gojou-sensei logo vai estar aqui com informações sobre sua maldição — diz Fushiguro. Ouço seus passos quando ele se aproxima e se agacha diante de mim. — Kaoroku, você agiu em legítima defesa. A maldição que estávamos caçando atacou você e você revidou. Sukuna atacou você e você revidou. Na pior das hipóteses, sua maldição age pra defender sua vida, o que não é ruim. Poderia ser pior.

Itadori faz coro:

— É, sua maldição podia tentar matar seus amigos por diversão.

Eu rapidamente me sinto mal por fazer tanto drama. Itadori tem que dividir o corpo com Sukuna, o que é muito pior. Pelo menos, até agora, minha maldição não mostrou nenhum prazer em machucar pessoas gratuitamente. Eu afundo o rosto nas mãos quando sinto a vergonha subir como vapor quente sobre minha cabeça.

— Me desculpem.

Fushiguro suspira

— Espere até que Gojou-sensei volte. Ele vai saber o que fazer.

Eu balanço a cabeça e concordo. Fushiguro se levanta e vai até a porta. O silêncio na sala poderia se enroscar em meu pescoço e me sufocar, mas eu não me movo. Permaneço parada no mesmo lugar, desejando fugir de dentro deste corpo superlotado.

— Kaoroku…

Itadori tenta se aproximar, mas Fushiguro o segura. Ouço suas vozes quando eles sussurram entre si:

— Vamos deixá-la descansar.

— Mas…

— É melhor assim, Itadori — diz Kugisaki.

Eu não sei que tipo de informações super secretas, que sujeitos e que predicados são passados quando três amigos tão íntimos como eles trocam olhares, mas sei que deve ser algo forte.

Deve ser algo muito forte, porque os três concordam silenciosamente.

Então deixam, o quarto, um a um.

Kugisaki é quem fecha a porta. Antes de sair, ela espia pela brecha e diz:

— Certifique-se de dormir bem, Kaoroku.

Eu não exprimo resposta além de um aceno.

A porta, então, se fecha, me lançando de volta na escuridão.

 

"Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores."

(Grande Mundo, Carlos Drummond de Andrade)


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Notas finais do capítulo

Só existem dois verbos anômalos na língua portuguesa inteira. São eles os verbos ser e ir. São verbos que mudam inclusive o radical dependendo de como forem conjugados. Acho que representam bem a nossa protagonista.
Eu vou fazendo fanarts dessa história e postando no meu pinterest, então, interessados, me sigam lá.
Até a próxima!



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