A Teoria Dos Corpos escrita por LittleR


Capítulo 2
Adjetivos no Superlativo


Notas iniciais do capítulo

Memórias de um garoto que escolheu a gentileza.

Boa leitura!



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II. Adjetivos no Superlativo

 

— Você está possuída por uma maldição

Satoru Gojou.

Ele simplesmente não cabe nos meus verbos.

Ele não cabe em nenhum verbo.

Verbos são ação, mas Satoru gojou é um estado. Uma condição.

Ele é um adjetivo no superlativo absoluto, o meu tipo favorito.

E portanto, por algum motivo, eu já o amo.

— Desculpe, o quê? — pronuncio.

Estou sentada numa sala iluminada somente por lamparinas, meio bizarro demais pro meu gosto. Minhas mãos e pés estão amarrados, a cadeira onde me assento é terrivelmente desconfortável. Uma quantidade infinita de papéis com selos estranhos cobre todas as paredes da sala. Não sei o que metade deles significa, mas não me faz sentir bem, provocam uma coceira chata debaixo da minha pele.

Um homem de cabelos brancos está sentado relaxadamente numa cadeira à minha frente, de braços cruzados. Ele parece jovem, apesar da cor do cabelo e está usando uma venda. Os traços flexíveis de seu rosto me dizem que sua mente é ainda mais jovem que seu corpo.

— Sensei, isso é mesmo necessário? — profere Itadori, parado de pé contra a única porta do recinto. Ele também tem os braços cruzados, mas me olha pelo canto dos olhos. Não parece contente. — Não precisava amarrá-la, ela se entregou. Eu sei como é estar nessa situação, essa cadeira é horrível de dura.

O sensei suspira.

— Não podemos arriscar deixá-la vagando por aí, ela está possuída por um maldição que não conhecemos e não sabemos a classe. É perigoso, você sabe disso, Yuuji.

O rapaz grunhe. Desencosta da porta e enfia a mão entre os cabelos, bagunçando-os para se acalmar.

— Eu tive que comer o dedo do Sukuna pra ficar possuído. — Ele se vira para mim. — O que você fez pra ficar possuída?

Eu pisco.

— O que diabos é um Sukuna?

— Essa possessão é diferente — diz Gojou. — Ela não sabe nem como foi possuída nem quando. Você disse que tem lapsos de memória. Consegue se lembrar de quando começaram?

Minhas sobrancelhas se encrespam.

— São chamados lapsos de memória exatamente porque não dá pra lembrar.

Gojou solta uma risadinha.

— Mas você deve ter uma ideia de quando começou. Ou, pelo menos, alguém da sua família deve ter notado que você começou a agir diferente, sair em horários que não costumava.

Eu reúno orações e sentenças em minha cabeça, separo adjetivos, conjugo verbos, e não há nada aqui. Só vazio.

— Talvez minha irmã... talvez minha irmã possa ter uma ideia de quando começou — balbucio. — A única coisa de que me lembro é que noite passada, ao invés de ir dormir depois de terminar o dever de casa, eu sai e machuquei dois caras.

— Os dois que apareceram no noticiário? — pergunta Itadori, aproximando-se e agachando-se ao meu lado. — Sabe, eles... estavam foragidos da polícia. Eles tem um monte de crimes de violência sexual na conta deles.

Eu sinto a angústia tomar forma no meu rosto e o garoto provavelmente percebe também.

— Eles não estavam tentando me violentar. Eu os atraí pro beco com a intenção de triturar os ossos deles.

— Não foi sua culpa — ele diz. Itadori Yuuji ainda precisaria repetir essa mesma frase para si mesmo muitas e muitas vezes no futuro.

Minha boca se comprime e minhas expressões se suavizam. Eu aceito a absolvição que ele me oferece.

Não foi minha culpa ser possuída por um demônio. Assim como não foi culpa dele também.

O sensei suspira novamente e então se levanta.

— Muito bem — diz. — Nós vamos falar com sua irmã. Nós vamos avisar a ela que você vai ficar sob nossa custódia até resolvermos tudo.

Meu corpo se projeta pra frente num estalo. É mais forte que eu, mais rápido. A cadeira range no silêncio seco da sala. Tão súbito que Itadori toma um susto e quase cai para trás.

— Por favor — eu imploro, pateticamente. Minha voz sai errada, aguda demais, mas não me importo em ser patética. — Minha irmã não tem nada a ver com isso, ela nem deve fazer ideia que... Por favor, não a machuquem.

Itadori abre a boca, surpresa permeando seu lindo rosto de tons claros, mas é o sensei quem fala primeiro.

— Nós não vamos machucá-la — ele assegura, e eu imediatamente acredito. — Não é assim que fazemos as coisas, não se preocupe. Ninguém vai dizer a ela que você foi possuída por uma maldição, isso seria… complicado. Ao invés disso, vou convencê-la de que você está em um programa de intercâmbio do colégio Jujutsu. Vou resolver as coisas no seu colégio também.

Eu me derreto de alívio sobre a cadeira, meus músculos virando manteiga, minha respiração evaporando em lufadas suaves de vapor quente.

— Bem isso... — suspiro. — Soa bastante como tráfico humano.

O sensei ri, uma risada gostosa de ouvir.

— Você é engraçada, Midori Kaoroku.

Então, quando ele faz menção a deixar a sala, Itadori se levanta.

— Você não pretende deixá-la aqui, pretende?

— Você tem alguma objeção?

— Todas! Sensei! — Seu rosto veste tons adoráveis de um vermelho raivoso. — Ela não tem culpa de ter sido possuída, pelo menos deixe ela andar pela escola, não ficar numa cela presa. Eu não vou deixá-la ficar aqui, eu não me importo de ter que arrombar a parede pra tirá-la desse lugar.

Um sorriso ladino se estica nos músculos da face de Satoru Gojou. Um sorriso que diz que ele encontrou um tesouro escondido em uma sala secreta.

— O que é isso? Sentimentos pessoais?

Itadori se encolhe um pouco entre os ombros.

— Sim, são.

— Ótimo então! — Gojou bate palminhas de felicidade. — Eu vou deixá-la sair, não tinha mesmo a intenção de deixar uma mocinha tão bonita presa aqui, mas já que você tornou tudo isso pessoal, Yuuji, você vai ser o guardião pessoal dela, vai mantê-la na linha e garantir que ela não machuque ninguém até resolvermos essa situação, certo?

Itadori acena veementemente com a cabeça, um movimento quase violento, e eu me sinto como o filhote de cachorro observando meu mais novo dono convencer os pais de que pode cuidar de mim.

Itadori então se vira e começa a desamarrar as cordas que me prendem.

 

 

— Está melhor agora? — pergunta Itadori, tentando arrumar a bandagem que foi enrolada em minha cabeça. — Eu juro por deus que não sou bom nisso.

Eu mantenho os olhos no jardim que é visível da varanda do meu quarto. Meu quarto temporário no colégio Jujutsu, uma cela mais confortável que a anterior. Estou sentada na cama, vestindo uma calça e um moletom muito maiores que eu. Itadori os ofereceu para mim, uma vez que meu uniforme foi danificado no combate de mais cedo.

Flores de ameixeira florescem lá fora, e eu me pergunto se isso seria algum tipo de brincadeira do destino.

Ume.

Flor de ameixeira. É o nome da minha irmã mais velha, foi escolhido pela minha mãe, que tinha um gosto muito melhor para nomes do que meu pai, que escolheu o meu:

Midori.

Verde. Substantivo simples quando nomeia a cor a que se refere. Adjetivo simples quando qualifica outro substantivo.

Meu pai e minha mãe se foram há muito tempo. Um acidente de carro os tirou de mim quando eu tinha oito anos. Minha irmã é o que me restou e mesmo quando estou longe, ela está perto, como nas flores de ameixeira do jardim.

— Ieiri-san disse que você ficaria bem, mas mesmo assim… — Itadori divaga consigo mesmo, ainda tentando consertar a bandagem que a médica da escola, Ieiri-san, colocou em mim quando fomos visitá-la, logo depois de deixarmos a sala com os selamentos.

Eu movo a cabeça e o olho. Ele está perto demais do meu rosto, mas não me sinto desconfortável. Só… tímida. Subitamente tímida.

— Você não tem que se preocupar com isso — digo.

Nossos olhos se encontram.

— É claro que tenho, Fushiguro arremessou você de um trem. Me pergunto como sua cabeça não rachou.

— Acho que ela é mais dura do que parece. — Dou de ombros.

Itadori ri. Então pega meu braço esquerdo, também enfaixado onde o cão divino o mordeu, e o analisa.

— Isso vai deixar uma cicatriz.

— “Cicatrizes são medalhas de coragem” — parafraseio uma frase que vi no reddit uma vez.

Os olhos de Itadori se iluminam. Ele se projeta ainda mais para frente em minha direção, quase consigo sentir sua respiração contra meus lábios e meu rosto explode em vermelho, ondas de vapor subindo de minha cabeça.

— Cavaleiros do Zodíaco! Você também assistiu?

Eu solto uma risada nervosa, me afastando discretamente. A cama range com o movimento.

Odeio camas com mola. Barulhentas demais. As de espuma são muito melhores.

— Não brinca — zombo. — Não é do meu tempo, sou jovem demais pra ter assistido essas coisas velhas.

Itadori quase parece ofendido.

— Não é velho! É um anime transcendental, está além do tempo e do espaço, sabia?

— Você tem que admitir que é meio coisa de velho… — Paro. Reorganizo minha sentença. Percebo que falta algo. — Desculpe, eu… só agora percebi que não sei seu nome.

Itadori pisca. Cada movimento de seu rosto é simplesmente adorável.

— É verdade. Com tudo o que aconteceu, não tivemos a chance. Eu sou Yuuji Itadori.

Eu respondo:

— Eu sou Midori Kaoroku.

— É um prazer conhecê-la, Kaoroku, apesar das circunstâncias não serem as melhores. Vamos conviver bastante, então… — Ele dá um passo para trás e fica de pé, ereto. Em seguida, se curva respeitosamente. — Vamos nos dar bem.

Eu sorrio e aceno.

— Por favor, cuide de mim — digo para finalizar nossa introdução. Quando Itadori levanta e volta para se sentar na beirada da minha cama, eu pergunto: — Itadori-kun, você parece ter a minha idade. Você não deveria estar na escola?

— O colégio Jujutsu é uma escola — fala com orgulho. — Eu, Fushiguro e Kugisaki, estamos no primeiro ano. Os nossos senpais também são muito legais. Nosso professor é o sensei Gojou, você o conheceu mais cedo.

Eu aceno, as palavras que ele diz formando imagens na minha cabeça e então ideias, conhecimentos a longo prazo.

— Então vocês… lutam contra essas criaturas nascidas dos sentimentos ruins das pessoas, certo? Tipo… tipo em Bleach?

Os olhos de Itadori se iluminam novamente.

— Exatamente como em Bleach!

— E você tem uma bankai?

Ele parece desconcertado por um instante, o que é adorável.

— Bem, não… er… não é exatamente como em Bleach, mas chega perto.

— Perto como? Você tem um super poder? Aquele outro garoto que estava com você… Fushiguro, não é? Ele pareceu fazer tipo um jutsu de invocação com aquele cão, foi muito legal. Você faz algo assim também?

— Hmmm, não. Eu sou forte.

Eu ergo uma sobrancelha para exprimir apenas uma centelha divertida de desprezo.

— Isso não parece muito super.

Itadori cruza os braços, ofendido outra vez. Eu me sinto tentada a ofendê-lo mais, porque seus olhos ficam mais escuros e sua testa se enruga, e os lábios se comprimem  e ele fica muito, muito bonito.

— É bastante super sim! Olha, é bem super se você considerar que o All Might era só um cara muito forte.

Agora sou eu que estou ofendida. Eu balanço um dedo na frente do rosto de Itadori.

— Não, não! Você leu o mangá? O poder do All Might não era só super força, era uma concentração de energia passada entre gerações e que acumulou poder de outras sete individualidades. Falar que é só super-força é muito simplista.

— Eu li o mangá, a ideia ainda é a mesma.

Eu cerro os olhos para el, desafiada.

— Você por acaso consegue destruir um prédio com um soco, Itadori-kun?

— Er… não. Uma parede sim! Se… se não for de concreto armado.

Eu cruzo os braços, vitória genuína explodindo em meu rosto como fogos de artifício.

— All Might acabaria com você.

Itadori cerra os olhos para mim, desafiado. E eu amo todas as expressões dele. 

— Você pode vir comigo na próxima missão, aí eu vou mostrar o que minha super força pode fazer.

Mas eu aceno negativamente com a cabeça e recolho meus joelhos, abraço-os contra meu peito. A cama range.

— Eu vi você saltar sobre um trem em movimento, Itadori-kun. Eu não acho que quero ver de novo tão cedo.

Itadori se aproxima de mim de novo. A cama range.

— Kaoroku, poderia ser que você é uma otaku?

Eu franzo o cenho. Minha mente range.

— Não! Eu só gosto de ler mangás e assistir animes.

— Essa é a exata definição de otaku.

— Um otaku de verdade nunca admite que é um otaku. De fato, ele odeia outros otakus. Se você não contar aos outros sobre mim, eu não conto sobre você.

Itadori sorri, um sorriso que é luz nas formas suaves e doces de seu rosto, e estende o dedo mindinho em minha direção. Meu coração inteiro range 

(3. Epístrofe. Estilística. Vício de repetição. Figura de linguagem).

— Promete?

Eu entrelaço meu mindinho no dedo dele. E sinto que algo mais se entrelaça entre nós dois quando digo:

— Prometo.

 

 

"Se é teu destino buscar
que não há quem veja ou meça,
noite e dia hás de trotar
até que a neve te embranqueça,
e ao voltar dirás que baste
maravilhas que passaste
e que não viste então
uma mulher sem senão"

(Go And Catch A Falling Star, John Donne)


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Notas finais do capítulo

Adjetivos no superlativo absoluto sintético são adjetivos intensificados, caracterizados pelo uso do sufixo íssimo, imo e rimo. Ex: irritadíssimo, riquíssimo, lindíssimo.
Espero que tenham gostado. Até mais!



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