Folklore escrita por Gorky


Capítulo 19
O retorno




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/805534/chapter/19

Não é seguro aqui.

Na noite de 16 de setembro de 1998, Emília Josephina Gilbert, então uma garotinha alegre de seis anos de idade, deslizava o anel de seu pai ― uma herança de família, na verdade ― entre os dedos das mãos. Ela e Grayson voltavam de uma ida à farmácia; Elena estava com dor de garganta. Emília insistiu em acompanhar o pai. Ela gostava de passar tempo com ele. No rádio do carro, tocava Iris. A janela do lado da menina estava aberta; um vento gelado e incômodo percorria o veículo, mas Emília honestamente não se importava. 

Ela não desviou a atenção do anel, agora no seu dedo indicador da mão esquerda. Ela nunca conseguia desviar a atenção do anel. Por alguma razão, o objeto a fascinava desde bebê. Lápis-lazúli. De acordo com Grayson, esse era o nome da pedra no anel. 

(Como os olhos de Damon Salvatore.)

Grayson virou um pouco a cabeça para trás; para ver como a filha estava. Ela sorria para as mãos, para o anel. Quase parecia enfeitiçada. Posso ficar com ele, papai? Claro, ele é seu.

E então, Grayson perdeu o controle do volante. 

Nada nunca mais foi o mesmo. 



capítulo dezenove 

Ela havia ouvido um grito. 

Não foi?

Quando ela já se preparava para deitar na cama, as luzes já apagadas, ela escutou um homem gritando no andar de baixo. Mas havia sido tão rápido que agora Emília não sabia dizer se havia imaginado ou não. E ela temia descer as escadas e confirmar suas suspeitas. Sentiu-se, mais uma vez, estática e impotente. Lampejos de Jeremy e a sua raiva ― decepção ― escancarada lhe assombraram espontaneamente. 

Eu deveria dormir. É, eu deveria dormir e esperar até amanhã, pensou. Mas como ela conseguiria dormir com essa dúvida sufocante na sua cabeça? 

Mais um barulho foi registrado pela sua audição. Não era um grito, nem uma voz. Era só uma porta se fechando. No andar de baixo, novamente. 

Emília! ― berrou Elena. Emília assustou-se ao ouvir a irmã se aproximando, mas não se mexeu. Ela simplesmente observou enquanto Elena abria a porta de seu quarto, girava o interruptor de luz, e se jogava nos seus braços com medo e alívio. ― Que bom, você está bem ― ela murmurou, os lábios afundados nos cabelos louros de Emília. 

Emília a afastou com cautela. 

― O que tá acontecendo? ― ela perguntou, a atenção se virando para a faca na mão de Elena. Ela definitivamente não havia alucinado nada. 

― Você não viu nada? ― questionou Elena, não parecendo se importar com o objeto afiado que segurava e o pavor e incerteza no rosto da irmã. 

― Não ― Emília balançou a cabeça. ― Eu estava aqui o tempo todo.

Elena se calou por alguns segundos, contemplativa. Seu olhar se moveu pelo quarto de Emília, mas o seu raciocínio estava em outro lugar. De repente, ela encarou Emília com uma expressão de horror. 

― E o Jeremy? 

Emília cruzou os braços, confusa. 

― No quarto dele.

― Não ― sussurrou Elena, correndo para o corredor, em direção ao quarto de Jeremy. 

― Elena! ― Emília chamou, seguindo a irmã. 

E foi quando Emília se tocou: ela ouvira um grito masculino. E só viviam dois homens naquela casa. Jeremy. Ela acelerou os passos, pensando no pior. 

Mas Jeremy, de fato, estava no seu quarto; as duas o encontraram deitado na cama, com os olhos fechados. Nenhum ferimento à mostra, nenhum sangue escorrendo pelo chão. Nenhuma outra pessoa por perto. Emília quase respirou de alívio ― mas, então, Elena começou a gritar e sacudir Jeremy, implorando para ele acordar. 

Um pedido que não foi obedecido. 

― Jer ― sussurrou Emília, ficando ao lado da irmã, os joelhos sobre a cama de Jeremy. 

― Jeremy, acorda, por favor ― disse Elena, com a voz trêmula. 

Emília pôs as mãos em cima do peito do irmão, sentindo o seu coração bater lentamente. Ele ainda estava vivo. Ela separou os lábios, pronta para contar para Elena (que, no auge de seu desespero, não havia percebido), quando Jeremy bruscamente abriu os olhos. 

Emília pulou de susto. 

― Jeremy ― sussurrou Elena, ofegante. ― Você tá bem?

Ele parecia completamente desorientado. Piscava sucessivamente, os olhos voando pelo quarto e pelas irmãs debruçadas sobre ele. 

― Funcionou? ― ele disse após alguns segundos em silêncio. 

― Funcionou o quê? ― inquiriu Elena, mais furiosa do que antes.

Jeremy acenou na direção da mesa de cabeceira, onde estava (dentre outros objetos) um frasco amarelo de comprimidos quase vazio. Emília e Elena ligaram os pontos rapidamente. 

― Você tentou se matar? ― questionou Emília, em choque. Normalmente, essa era ela. 

― Não! ― ele respondeu como se ela tivesse dito algo impensável. E então, mais suavemente: ― Quer dizer, sim, mas… 

Ele sussurrou Anna. Menos do que um sussurro, na verdade. Mas Emília estava próxima o suficiente para entender. 

― O que tem ela? ― perguntou Elena. 

― Ela me deu o sangue dela. Pra eu me transformar.

Emília e Elena se entreolharam, ambas em dúvida sobre o que pensar, sobre o que fazer. Funcionou? 

Elena se ergueu da cama, abandonou a faca em cima da escrivaninha de Jeremy e atravessou a soleira. 

― Fica com ele, Mila. Eu vou ligar para o Stefan ― ela não esperou Emília responder. 

Emília revirou os olhos discretamente e se virou para o irmão, que, por sua vez, estava concentrado em si mesmo. Uma fúria terrível e dolorosa acumulou-se dentro dela e Emília não conseguiu se conter mais ― ela levantou a mão e deu um tapa no rosto do irmão mais novo. 

Ele grunhiu e a olhou com incredulidade. 

― Por que você fez isso?

― Por que você tem que ser tão idiota? ― ela rosnou, sem remorso. ― Quer mesmo ser um vampiro?

― Você não?

Emília congelou. Ela nunca havia parado para realmente cogitar essa possibilidade. Talvez porque ela tenha se envolvido pouco nesse novo mundo da irmã e dos irmãos Salvatore; talvez porque ela nunca tenha sido um alvo de verdade. 

Sobreviver à base de sangue? Esconder-se da luz do Sol (a não ser que uma bruxa benevolente enfeitiçasse um anel para ela)? Assistir quem ela amava envelhecer e morrer? Ficar confinada aos seus próprios pensamentos por toda a eternidade? Olhar no espelho todos os dias, por séculos, e nunca encontrar nada de diferente? 

Não era isso que ela queria para si mesma. 

Era? 

― Não ― ela sussurrou, fitando o edredom que escondia as pernas de Jeremy. 

Eles não falaram mais nada depois disso. Mal se moveram. Emília e Jeremy aguardaram pacientemente a ambulância adentrar a residência dos Gilbert. A princípio, Emília estranhou (e temeu) o barulho das sirenes, mas, então, ao descer para ver o que estava acontecendo, ela enfim entendeu: John havia sido esfaqueado. Além disso, teve três dedos da mão mutilados. Ele já estava desacordado quando os paramédicos o levaram; o sangue dele manchando o chão da cozinha ― mas não morto. E, por mais horrível que a situação fosse, Emília não podia mentir para si mesma e dizer que sentia pena do tio. 

Stefan chegou cinco minutos depois da ambulância. À essa altura, Emília havia retornado para o quarto de Jeremy, para conferir o estado do irmão. Ele permanecia parado, na mesma posição de antes, concentrado em si mesmo. Elena praticamente a empurrou para o lado ao entrar no cômodo acompanhada de Stefan. Emília não se zangou. Ela sentia o completo desespero e agonia da irmã. 

― Ele disse que a Anna deu sangue para ele e ele tomou uns comprimidos. E agora… eu não sei o que fazer. Ele parece bem, mas você também, então… sei lá ― ela gaguejou. 

Emília encostou-se na parede, com os braços cruzados, observando Stefan agachar na frente de Jeremy e examiná-lo como um médico faria. 

― Eu tô bem, tá bom? ― enfureceu-se Jeremy, tentando afastar as mãos de Stefan. ― Eu me sinto o mesmo de sempre. 

― Eu devo pedir para um paramédico subir aqui? ― perguntou Elena, em pé atrás do namorado. 

― Não ― respondeu Stefan, lentamente, apertando as bochechas do Gilbert mais novo. ― Ele está bem ― disse, soerguendo-se. 

― Então eu não sou um vampiro ― concluiu Jeremy. ― Que merda!

― Não fala isso, Jer ― repreendeu Elena. ― Como você pode querer algo assim?

Você namora um vampiro, Lena, pensou Emília, amarga. 

Jeremy se virou para Elena e levantou-se da cama, parando na frente dela. 

― Você ouviu o que aconteceu com a Anna hoje? ― murmurou, com menos fúria e mais tristeza. ― Ela morreu. 

Ele olhou para Emília e ela instantaneamente abaixou a cabeça, incapaz de encará-lo de volta. Fitou os próprios pés descalços por alguns segundos, sua mente viajando por várias palavras e cenários incoerentes. 

― Jeremy, Jeremy ― bradou Stefan, com urgência, forçando Jeremy a sentar novamente na ponta da cama. ― Eu sinto muito pela Anna, mas você precisa me escutar: a cada momento que passa, o sangue da Anna deixa o seu organismo. Se você tentar se matar agora, você pode mesmo morrer. 

O toque de Stefan era firme e agressivo. Emília engoliu em seco, percebendo que nunca havia visto aquele lado do Salvatore antes. Não era assustador, mas era certamente intimidante. 

Ei! ― ele exclamou, acertando um tapa na bochecha de Jeremy quando ele se recusou a responder. ― Você tá me entendendo?

― Stefan! ― advertiu Elena, tão surpresa quanto Emília. 

― Sim ― rangeu Jeremy, num murmúrio. ― Eu entendi. 

― Que bom ― falou Stefan, mais suavemente. O Salvatore suspirou e deu alguns passos para trás, enfim virando sua atenção para seus arredores. E ele imediatamente viu Emília, com as costas apoiadas na parede azul, usando apenas uma camisola branca e na altura das coxas, fitando-o de volta. 

Emília sentiu as próprias bochechas queimarem, como se ela tivesse levado o tapa e não Jeremy. Tarde demais, ela caiu em si e notou o que estava vestindo. Um contraste total às roupas fechadas e discretas de Elena. 

Ela precisava se trocar. 



Ela optou pelas peças mais simples que encontrara no guarda-roupa ― calça jeans, blusa cinza e jaqueta jeans. Prendeu o cabelo num rabo de cavalo e caminhou juntamente à Elena ao hospital onde John fora levado. Stefan ficou na casa dos Gilbert, para vigiar Jeremy. Antes de sair com a irmã, Emília conferiu o seu celular e leu uma mensagem de Jenna (enviada há cerca de trinta minutos) avisando que ela estava falando com os bombeiros sobre um incêndio acidental que ocorrera no consultório dos Gilbert. Emília quase engoliu a língua com a notícia. Incêndio? Quando? Por quê? Tinha algo a ver com a movimentação daquela noite? Com os vampiros da tumba? Com os planos das famílias fundadoras? 

Infelizmente, ela sabia que Jenna não tinha as respostas certas para essas perguntas, então ela guardou suas dúvidas para si mesma. Esqueceu de comentar com Elena a respeito, pois, na caminhada para o hospital, o único assunto foi John… e Caroline. Isso porque, quando as duas irmãs Gilbert atravessaram a varanda, Bonnie ligou e informou Elena que Caroline, Matt e Tyler haviam se envolvido num acidente de carro terrível e Caroline precisou ser internada às pressas. 

― E o Tyler? Como ele está? ― ela perguntou impulsivamente. 

― Não sei, a Bonnie não disse. 

― Você sabe quem esfaqueou o John? 

― Um dos vampiros da tumba, com certeza. 

― Quem?

― Eu não sei ― resmungou Elena, mais irritada. 

Por que esfaquear o John? Por que só não beber o sangue dele?, pensou Emília. Esses vampiros da tumba eram mesmo incompetentes. 

No hospital (o mesmo onde Sara estava internada, Emília recordou subitamente), Elena se preocupou em falar com a recepcionista e telefonar para Jenna, enquanto Emília se acomodou em uma das cadeiras verdes da sala de espera quase deserta. Ao seu lado, encontrava-se um Matt Donovan distraído e pensativo. Ele usava as mesmas roupas de quando Emília o viu pela última vez, saindo do Grill com Tyler e Caroline. Estava inteiro e aparentemente saudável, com exceção do pulso enfaixado (cortesia de Tyler, na noite em que ele e Emília terminaram). 

― Como ela está? ― Emília reuniu coragem para perguntar. 

Matt olhou para ela, um vislumbre de surpresa nas suas feições. 

― Mal ― ele sussurrou. ― Ela teve uma hemorragia interna e… não acordou até agora. A xerife está enlouquecendo. 

― Mas o que aconteceu? Que acidente foi esse?

― Eu… eu não sei. O Tyler estava dirigindo e, de repente, ele começou a ouvir algum barulho e perdeu o controle do carro. 

― Ele está bem?

― Sim ― ele balançou a cabeça. 

Emília soltou um suspiro de alívio que ela não sabia que estava segurando. Por que ela se importava tanto, afinal de contas? 

Pelos próximos minutos, tudo o que ela fez foi ser uma testemunha passiva dos acontecimentos. A xerife, como Matt descreveu, de fato estava desesperada. Percorria os corredores da emergência com avidez e agonia, ansiando por mais novidades do estado de sua única filha. Elena conversou com Matt e Bonnie sobre Caroline, e então com Jenna sobre John, assim que ela adentrou o hospital. A televisão da sala de espera estava ligada, o som um pouco baixo, mas não inaudível. Emília pôde entender perfeitamente quando a moça do noticiário anunciou a morte do prefeito Lockwood. 

Ela pensou em Tyler, se ele estava triste (provavelmente não), se ele queria companhia (provavelmente não a dela). 

De repente, ela foi consumida por um desejo pungente de ser uma pessoa diferente. De estar em um lugar diferente, com pessoas diferentes. Por que essa tinha que ser a sua vida? Por que tragédias lhe perseguiam onde quer que ela fosse? 

Em dado momento da madrugada, Elena e Damon saíram do hospital juntos. Eu só vou conferir como o Jeremy está, fica aqui com a tia Jenna, ela pediu, mais uma vez não esperando a confirmação de Emília. 

Ela estava começando a se sentir um fantasma.



― Os médicos disseram que o estado do John é estável. Aquele desgraçado tem muita sorte ― contou Jenna para a sobrinha, aconchegada na sua jaqueta jeans na sala de espera da emergência, as pernas cruzadas e os olhos pesados de sono. ― Já está muito tarde. É melhor a gente voltar pra casa e descansar. 

― Mas e a Caroline? ― murmurou Emília, exausta e faminta. 

― A xerife vai ficar aqui com ela. Se o estado dela melhorar, nós vamos ficar sabendo ― disse Jenna, confortando a sobrinha com um aperto no ombro. ― Vamos, você precisa dormir. 

Emília bufou de frustração, mas obedeceu a tia. Ela não era teimosa o bastante para acreditar que poderia lutar contra as necessidades de seu corpo. 

A alguns passos à distância, encontrava-se Bonnie Bennett, vigiando atentamente os movimentos e maneirismos da primogênita de Grayson e Miranda. O modo como ela se erguia e abraçava a tia, as pernas vacilantes e o rosto pálido e inchado. Bonnie e Emília se conheciam há anos, mas nunca foram realmente amigáveis uma para a outra, o que era um fato intrigante para ambas, principalmente Bonnie. 

Bonnie sempre foi uma garota gentil e Emília, mesmo com todo o seu histórico problemático e preocupante, jamais foi particularmente desagradável. Ela costumava acompanhar Bonnie e Elena para todos os cantos na infância; ela conhecia intimamente a família Bennett e a sua história, incluindo as partes mais dolorosas ― e, ainda assim, Bonnie nunca conseguiu confiar na garota. 

Havia alguma coisa… nebulosa ao redor de Emília. 

Alguma coisa que só as bruxas sentiam. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Folklore" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.