Folklore escrita por Gorky


Capítulo 1
Quando não há mais você




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O telefone fixo da casa dos Gilbert tocou pela segunda vez na noite de vinte e três de maio. Emília Josephine Gilbert, a primogênita de Miranda e Grayson Gilbert, fazia o seu dever de matemática na mesa da sala, enquanto o pai assistia ao jornal no sofá. A mãe e o irmão mais novo estavam no andar de cima. Como ela era a mais próxima do balcão da cozinha, onde o telefone fixo sempre ficava, Emília atendeu a ligação. 

― Mãe? ― apenas uma palavra com três letras, mas Emília reconheceria aquela voz em qualquer lugar e qualquer circunstância.

― Sim, querida? 

A garota do outro lado da linha bufou.

― Cadê a mamãe, Mila?

― Tomando banho. 

― E o papai?

― Vendo tevê. 

Grayson olhou para Emília. Ele sibilou “quem é?” e Emília sibilou de volta “Elena”. 

― E o Jeremy?

― O que você quer? 

― Fala pra mamãe vir me buscar, por favor. Ou o papai, tanto faz.

― A festa terminou tão cedo assim?

 Não. 

― O que aconteceu?

― Nada, meu Deus. Só fala pra eles virem me buscar, por favor. 

― Você quebrou as duas pernas?

― Mila!

― O Matt não pode te levar?

Elena demorou alguns segundos para responder. Emília ouviu a sua respiração cansada. 

― A gente brigou. 

― Por quê?

― Eu não quero falar sobre isso agora, eu só quero ir embora daqui. 

― Eu sabia que vocês dois não iam durar.

― Ah, esquece. Eu me viro. 

― Tá bom, tá bom. Não desliga. Eu vou falar pra mamãe quando ela sair do banho. 

― Obrigada. 

― Tchau. 

Aquela foi a última vez que Emília falou com a irmã antes do acidente. Depois de ter falado com a mãe como prometeu, Miranda imediatamente pegou as chaves do carro. Grayson se ofereceu para dirigir e Miranda aceitou. Emília falou que aquilo não era necessário e que o pai não precisava ir junto. O lugar da festa não era tão longe ― quase nenhum lugar de Mystic Falls era tão longe ― e Elena só estava sendo dramática. Ela gostava de atenção. Quando anunciou que Matt lhe pediu em namoro, Emília riu e disse que eles não iam durar dois meses. Ela estava enganada. Eles duraram até tempo demais. Fica de olho no seu irmão, Miranda pediu. A gente não vai demorar, Grayson complementou. 

Aquela foi a última vez que Emília os viu vivos. 

 

 

capítulo um

Em setembro, Emília ainda pensava no acidente. Ela sonhava com o acidente, não exatamente com o que aconteceu, mas com o que ela achava que tinha acontecido. A irmã reclamando do namorado, a mãe sendo paciente e ouvinte, o pai perdendo o controle do carro porque a conversa entre Elena e Miranda tirou a sua concentração e por causa do escuro. Ela também pensava no antes. Como ela queria ir na festa até se dar conta de que Tyler era o anfitrião. Jeremy não foi porque os pais deles não permitiram. Emília nunca deixaria de imaginar o que poderia ter sido diferente se ela e o irmão estivessem com Elena. 

― Mila, a Bonnie vai passar aqui agorinha. Quer carona pra escola? 

Emília ergueu a cabeça para o espelho de sua penteadeira e viu o reflexo de Elena. Ela estava parada na soleira. Elena não entrava no quarto dela desde o acidente. Emília não entendia porquê. 

― Não, eu prefiro ir andando. 

Assim como ela não entendia como a irmã conseguia entrar em um carro só três meses depois do acidente. 

― Tá bom ― Elena respirou com alívio. Isso já era compreensível (e pouco ofensivo) para Emília. 

Assim que a irmã saiu, Emília abriu a sua garrafa de água descartável, pegou um comprimido do seu frasco de Zoloft e colocou na boca, juntamente com a água. 

― Mila! ― Jenna gritou da sala. ― Tomou o seu remédio?

― Sim! ― Emília gritou de volta. 

― Soube do Tyler? ― Jeremy perguntou no caminho para a escola, um hábito dos dois que começou muito antes da morte dos pais. 

Ela revirou os olhos. 

― Ugh, o que tem aquele filho da puta?

Ele riu antes de responder: 

― Ele tá com a Vicki. 

― Eu deveria saber quem é essa? 

― A irmã mais velha do Matt. 

Emília parou de andar e Jeremy a imitou, encarando-a. Ela e Matt nunca foram próximos, apesar de ele ser um dos amigos mais antigos de Elena o seu primeiro namorado. Emília não conseguia se lembrar se Vicki já havia entrado na casa dela, mas ela se lembrava de algumas coisas que Matt falara sobre a irmã mais velha. E não eram nada positivas. 

― Ah, meu Deus. Ele tá com a irmã drogada do Matt?

Jeremy hesitou por alguns instantes. Qualquer traço de divertimento sumiu do seu rosto.

― É. 

― Aquele idiota! ― ela voltou a caminhar e Jeremy a seguiu. ― O Tyler é tão bom em me fazer sentir melhor comigo mesma. Eu espero que ele morra. 

No gramado da escola, ela e Jeremy se despediram e tomaram caminhos diferentes. Ele normalmente ficava fumando do lado de fora, escondido com outros alunos, até a primeira aula. Ela preferia ficar do lado de dentro, em uma das mesas do refeitório. Emília não sabia bem o que Elena fazia, mas sempre que via a irmã pelos corredores, ela estava com Bonnie. 

Como o esperado, Emília achou rapidamente uma mesa vazia e sentou-se em uma das cadeiras. Ela abriu a sua mochila de couro e tirou um lápis preto e o seu caderno de desenho de lá. Há três dias, ela trabalhava em um desenho específico, de uma garota que não saía de sua mente. E de seus sonhos. 

― Oi, Gilbert ― Corinne apareceu enquanto ela desenhava as roupas da garota sem nome. 

― Oi, Montana. 

Corinne a abraçou por trás. Emília tocou no braço da amiga que a envolvia, sem tirar os olhos e a outra mão do desenho. 

― O que tá fazendo? ― ela se sentou do lado de Emília e deixou a sua mochila em cima da mesa. 

― Ah, só tô desenhando uma pessoa ― Emília deu de ombros. 

― Quem é essa?

― Só uma personagem daquela história que eu te falei. 

― Aquela que não tem enredo, só personagens espalhados?

― Essa mesmo. Eu pensei nela esses dias. Ainda não sei o nome, mas é algum nome nórdico. Ela é nórdica, talvez norueguesa. Ela é uma personagem diferente, porque os outros personagens não sabem que ela existe. Tipo, eles sabem, mas não sabem ao mesmo tempo. Ela não tá junto com eles por alguma razão que eu ainda não sei. Mas ela tá de olho neles; é como se ela conhecesse eles, mas eles não… não sabem que ela tá por perto. Eu ainda não decidi todos os detalhes ― Emília tirou os olhos do caderno por um segundo. ― Me fala de você. Tá tudo bem?

― É, mais ou menos. 

― Por quê? Alguma novidade?

― Meu irmão e a Marianne estão noivos. 

― Quê? Tão rápido?

― É, eu sei. Quando ele anunciou, minha mãe até deixou cair o copo. Meu pai falou que ela vai fugir na hora do sim. 

― Eu acho que ela não vai nem entrar na igreja. 

No instante em que Emília parou de desenhar e olhou ao seu redor, a sua primeira visão foi Caroline Forbes adentrando o refeitório com três de suas seguidoras (cujos nomes Emília nunca se esforçou para aprender; elas não falavam quase nada mesmo, só repetiam o que Caroline dizia). Ela estava sorridente e seus lábios se mexiam o tempo todo, mas as palavras que eles formavam eram incompreensíveis para Emília. 

― Que saco ― ela fechou os olhos e fez o possível para não voltar a encarar Caroline. Sabia que, se o fizesse, Caroline a notaria.  

― Que foi?

― Nada. 

A sua primeira aula foi História, uma das únicas que ela dividia com Elena. 

Apesar de gostar da matéria, Emília não suportava o professor Tanner (ela o conhecia há três anos e ainda não sabia o seu primeiro nome). Ela tinha absoluta certeza ― assim como literalmente todos os demais estudantes ― de que ele não era realmente qualificado para dar aulas de História e só o fazia para conseguir uma grana extra, já que ele também era o treinador do time da escola (profissão que ele exercia com muito mais paixão). Emília perdeu a conta de quantas informações incorretas ele já deu durante as aulas; além de que todos os seus testes até então tiveram as suas perguntas tiradas direto da internet ou até do próprio livro didático. 

Ele também era um completo imbecil. 

Emília não se preocupava mais em prestar atenção no que ele falava. Às vezes, ela dormia; às vezes, desenhava. Naquele primeiro dia de aula, ela parou para olhar se tinha algum rosto novo. Elena, Bonnie, Matt, Gary, Henry, Lauren, Kristin, Lizzie, Lucas, menino estranho de blusa azul… 

Esse não lhe era familiar. Nem um pouco. Emília não conhecia todos os moradores de Mystic Falls, então havia uma chance de aquele garoto já morar na cidade há um tempo, mas ela tinha uma sensação de que esse não era o caso. 

Emília logo notou que o garoto olhava para uma pessoa em específico ― a sua irmã gêmea. Eles se conhecem?, ela franziu as sobrancelhas. Talvez sim, talvez não. Emília e Elena nunca andaram nos mesmos círculos sociais; elas não dividiam amizades e tinham seus segredos e próprias vidas. Esse garoto podia ser um namorado secreto ou algo do tipo. Emília olhou para Matt. Ele estava tão intrigado quanto ela. 

É claro ele pode ser só u-

Emília acordou repentinamente. Nos primeiros segundos de sua consciência recém-recuperada, ela não soube distinguir as formas ao seu redor. Aquela era a escola? A sala de aula? Onde ela estava mesmo? 

― Oi ― a voz de Elena. A sua irmã estava de pé ao seu lado, na cama onde Emília encontrava-se deitada. Ela conhecia aquele lugar? Não era completamente desconhecido, mas a mente de Emília não conseguia de fato identificá-lo. ― Como se sente?

A Gilbert mais velha ergueu o torso e esfregou os olhos. Ela logo percebeu que havia mais de duas pessoas ali. 

― Confusa. O que aconteceu? ― sua voz saiu baixa e embaralhada. 

― Você desmaiou na aula de História. O aluno novo me ajudou a te trazer pra cá. 

― Quem? 

― O menino novo! Ele tava lá na aula, com jaqueta preta e blusa azul. Você deve ter percebido, ele era o único novato da sala. 

― Ah. 

Emília sentiu uma luz acendendo-se sobre a sua cabeça. Ela estava na aula chata do professor Tanner, observando os alunos, especialmente o novato mencionado por Elena, que por acaso estava olhando fixamente para Elena durante a aula. E então tudo ficou escuro. Agora ela sabia que havia desmaiado e sua irmã e o novato a levaram para a enfermaria da escola. 

O novato não estava mais lá, entretanto Tyler, sim. Emília soltou um “ugh” ao vê-lo parado perto da parede, distante dela e de Elena. 

― O que ele tá fazendo aqui?

― Mila, não começa ― mais uma vez, Elena tentou imitar Miranda. Só conseguiu deixar Emília mais irritada. 

― Eu soube do que aconteceu e fiquei preocupado ― Tyler se explicou, as mãos no bolso da jaqueta.  

― Muito fofo, mas eu não preciso da sua preocupação. A irmã do Matt precisa. 

― O que tem ela? ― Elena falou antes de Tyler. 

― Não ficou sabendo, Lena? O Tyler não perdeu tempo depois do nosso término. Ele já arranjou outra: a irmã viciada do seu ex ― Elena tentou repreendê-la, mas Emília a ignorou. ― O que vocês fazem juntos? Metanfetamina?

― Eu vou deixar vocês conversarem ― Elena contornou a cama e dirigiu-se à porta. Emília percebeu que ela não estava mais usando a sua blusa de frio.

― Não precisa sair, Elena. 

― Eu preciso, na verdade. Eu fiquei de avisar pra Jenna qualquer novidade. 

― Você contou pra Jenna? ― Emília rosnou. 

― É claro que sim, ela é a nossa guardiã legal agora ― Elena não a deixou responder, adicionando: ― Agorinha a enfermeira vem pra ver como você tá. 

Emília respirou fundo com frustração e cruzou os braços, enquanto a sua irmã aproveitou para sair do quarto. 

― Ótimo. 

― Eu e a Vicki Donovan não estamos juntos ― Tyler deu alguns passos para a frente. Ainda não próximo o suficiente. 

― Não foi isso o que eu ouvi ― Emília se recusou a encará-lo, preferindo fitar o chão branco. 

― De quem você ouviu isso? Seu irmão? ― ele aumentou o volume da voz. ― Ele tá apaixonado pela Vicki, sabia?

Emília franziu a testa, esquecendo de sua regra e olhando o ex-namorado nos olhos. 

― Porra! O que essa menina tem? Por que vocês estão brigando por ela?

― Eu não tô brigando por ela! 

― Vai se foder, Tyler. Eu te conheço há anos. Você me traiu umas quinhentas vezes, namora três meninas diferentes toda vez que a gente termina. Mas namorar justamente a irmã-nunca-sóbria do ex da minha irmã já é outro nível de babaquice. 

― Ah, sim, eu esqueci do seu histórico imaculado de fidelidade.

Se ela não estivesse tão fraca, levantaria da cama e socaria a cara dele. 

― Quer saber? Foda-se. A gente não namora mais, você não me deve satisfação e eu não te devo satisfação. Faz o que quiser, eu não ligo. 

― Então por que você perguntou?

― Eu tava testando você e você não passou ― ela usou a primeira justificativa que passou pela sua mente. ― Olha, é melhor você voltar pra aula. Eu já acordei e eu tô me sentindo bem. Obrigada por ficar aqui. 

― Emmy…

― Vai embora!

Uma das enfermeiras da escola, que Emília sabia se chamar Vera, entrou no quarto e Tyler desistiu de continuar a conversa. 

Depois, Emília recebeu permissão para ir embora mais cedo. Elena lhe avisou que Jenna já havia chegado em casa e esperava por ela. Para o alívio de Emília, que ainda estava com a visão um pouco desfocada e as pernas bambas, a residência dos Gilbert não era muito distante da escola. 

― E aí? Como você tá? ― Jenna perguntou da cozinha assim que ouviu a porta da frente batendo. Emília se deparou com a tia preparando sanduíches. 

― Bem, mas exausta. Eu preciso dormir um pouco ― ela subiu os primeiros degraus da escada. 

― Não quer comer alguma coisa antes? Você não comeu nada no café. 

Emília parou no meio do caminho. 

― Eu nunca como nada no café, tia Jenna. Eu só preciso descansar na minha cama. Quando eu acordar, eu como. 

Pensou em perguntar sobre a reunião que Jenna teve com o orientador da tese que escrevia para o seu mestrado, mas desistiu. 

Emília largou sua mochila no chão e se jogou na sua cama. Mil vezes mais confortável que a cama da enfermaria. Dormiu em menos de dez minutos. 

Quando acordou, foi pior do que acordar na enfermaria. Sua respiração estava ofegante e seu cabelo escuro pingava de suor. Ela não sabia quantas horas eram, mas viu que escurecera lá fora. Nenhum barulho vinha do corredor. Seu estômago roncava de fome e sua cabeça doía. Mesmo tendo acabado de despertar, ela não tinha nenhuma lembrança de seu sonho, que provavelmente havia sido um pesadelo, mas a sensação final que aquele sonho causara não desapareceu. 

Não é seguro aqui.


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