San'Nen - Humanos de outra Terra escrita por Mahii


Capítulo 2
Escavações secretas em Amir Nada


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!

(Já que o prólogo não dá muito gosto, um capítulo fazendo parzinho hoje,)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/804223/chapter/2

hu·ma·no 

 
(latim humanus, -a, -um
 

adjetivo 

1. Do homem ou a ele relativo. 

2. Que mostra sentimentos de compaixão, benevolência ou solidariedade. = BENÉVOLO, BENFAZEJO, BONDOSO, COMPASSIVO, COMPREENSIVO ≠ DESUMANO, INUMANO, INCOMPREENSIVO, IMPIEDOSO 

substantivo masculino 

3. Mamífero primata, bípede, do género Homo, em particular da espécie Homo sapiens. = HOMEM 

 
"humano", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/humano [consultado em 03-07-2021]. 

 

  

[...] 

 

O que faz dos seres humanos, “humanos”? 

Normalmente, quando perguntados, eles têm a tendência de citar coisas que os diferenciem dos animais. Dizem que: “são seres pensantes”, “têm sentimentos”, “têm sociedades organizadas", características que estão mais ligadas à capacidade intelectual da espécie do que com sua genética. Seguindo esse raciocínio, se existissem outras espécies de seres inteligentes, também seriam considerados humanos? Ou existe algo além da notável capacidade de pensar? Algo que, não importa onde a espécie se desenvolva, ainda assim terá? 

[...]  

Os coturnos gastos seguiam o caminho já conhecido pelas ruas de poeira e terra seca de AmirNada. O sol abrasador do Rajastão começava a perder a força, conforme se aproximavam do meio do inverno, com máximas em torno de 27 graus. O ar, por outro lado, constantemente lembrava os habitantes de que estavam em um deserto. Mas o rapaz já não reclamava, estava acostumado. Talvez, após morar por mais de seis meses ali, estivesse desenvolvendo uma espécie de amor pelo vilarejo. Percebera a tempo o quão ridículo era dizer “é impossível morar aqui" quando tantas famílias, de fato, faziam de AmirNada seu lar. 

Era possível ter uma vida feliz no deserto. 

Após virar numa das ruas largas, Daniel avistou a tenda da senhora Mahara. Inicialmente, vendia apenas as ervas e temperos que o marido trazia da cidade grande. Mas, após a equipe de pesquisa ter montado sua base no vilarejo, concordou em preparar e vender as refeições deles. 

Para ela, agora era como se fosse a orgulhosa dona de um restaurante! 

— Hailo, dona Mahara! – apesar de ainda não ser fluente, Daniel já se virava bem no híndi – O que está cozinhando aí atrás? 

— Hailo, Daniel! É o almoço de vocês para amanhã. Não olhe, é segredo – sorriu, se afastando do fogão e indo até o começo da loja. 

— Mal posso esperar – sorriu com gosto. A comida indiana agora era uma de suas favoritas – Aqui, aceite por favor, o pagamento do próximo mês. 

— Obrigada. Vocês são uma benção aqui em AmirNada! Principalmente essa sua voz linda, amo falar com você! – recebeu o dinheiro e guardou disfarçadamente no bolso do avental. 

— A senhora é muito gentil – sorriu. 

— Nosso pequeno Kvanh! – se referia ao deus hindu local, que tinha uma voz forte como trovão – Ainda não sei como um menino desses pode ter uma voz potente dessas. 

— Bem... – sempre sem graça, não sabia se a senhora o estava cantando ou querendo arranjá-lo para alguma garota da aldeia. 

— Ah! Por falar em menino, conseguiu ir visitar sua família? 

— Eu tô bem aqui, não tô? Acabei não indo – sorriu amarelo. Já por meses, adiava um descanso daquela escavação. Tinha medo de sair do país bem no momento de alguma grande descoberta.  

— Sua família deve ter saudades. Não se esqueça de visitar seus pais em breve, e os obedeça – o rapaz parecia tão novo que ela não podia evitar aconselhá-lo – Você também já está na idade de encontrar uma noiva bonita e se casar, depois ainda virão os filhos... Um homem não pode viver sem uma família. Não se esqueça. 

— Bom... Eu voltarei quando o Prof. Lennox voltar então – brincou, os dois deram risada. 

— Vocês dois estão obcecados! Naquela idade ele ainda ser solteiro... Ah! Já acharam algo especial na escavação? – curiosa, repetia a pergunta de sempre. 

E lá vinha a mentira de sempre. 

— Ainda não, mas sabemos que vamos achar. Falando nisso, preciso voltar. 

— Aceita um copo de água antes? 

— Sim, obrigado. 

Também aprendeu a sempre aceitar gentilezas. Após beber a água, agradeceu novamente e voltou. 

Daniel respirou fundo antes de adentrar novamente a cabana. Com paredes de tijolos e cobertura de telhas finas, só não era um forno completo devido ao amplo tamanho. O lugar que chamava de casa, de sede e de laboratório, ainda estava vazio. Eram apenas ele e o Prof. Lennox até o final da tarde, quando os outros voltariam do sítio arqueológico de AmirNada, há apenas quatro quilômetros dali. 

— Não vai acreditar, Mahara me deu conselhos novamente – comentou irônico, se aproximando da mesa grande no centro do cômodo – Os indianos são tão... Daquele jeito

— Há, há, há. Espero que esteja controlando a língua e tratando ela bem – o homem mais velho continuou polindo o pedaço de pedra. 

— Sim, Sr. Professor. 

— Entende mesmo o que ela diz? 

— Você não? – parou ao lado do outro, observando o trabalho que fazia. 

— Umas cinco palavras – ajeitou os óculos, relanceando o aluno. 

— Então você tem sorte. 

— E você tem um dom incrível para aprender idiomas, Daniel. Fluente em híndi em apenas 6 meses é de surpreender qualquer um, sabia? 

— Ah, mas... Minha leitura ainda não é boa – sorriu de lado, tirando a tábua de pedra da mão do outro. 

— Já é incrível que consiga ler alguma coisa – cruzou os braços. 

— Esse é um pedaço da parede principal lá de baixo? – passava a ponta dos dedos pelas letras talhadas na pedra. 

— Não – puxou o notebook, abrindo o mapa simples em 3D e apontando – É das câmaras inferiores aqui, da primeira. Estava junto com os objetos coletados ontem. Hoje os meninos estão terminando de liberar o corredor aqui à frente. Parece que tem quatro metros de largura. 

— Uau! É incrível que isso esteja tão fundo – sorriu, voltando a encarar a pedra – Já chegou à uma conclusão sobre o idioma nas paredes? 

— Você estava certo. Embora pareça muito com sânscrito antigo, não é. Mas dizer que é uma mistura de sânscrito e língua acádia é meio... Ousado, rapaz – o homem riu pelo nariz, bagunçando o próprio cabelo – Não são línguas contemporâneas, você sabe. 

— Queria que tivéssemos mais orçamento e mais pessoal. Um especialista em acádio ou sumério ajudaria muito – suspirou. 

— Mas, então, isso aqui estaria uma loucura agora – se permitiu dar risada – Há 20 anos, acharam uma estrutura semelhante abaixo do Göbekli Tepe na Turquia. Eu estava lá, seu pai também. E algumas dezenas ou centenas de outros professores e estudantes. A infraestrutura local não era suficiente, faltava comida, água, alguns grupos locais nos queriam fora dali. Também era perigoso e- 

— Eu sei, eu conheço a história, estive lá – rodou os olhos, não queria ouvi-la pela milionésima vez – O Prof. Kabir foi com o grupo de hoje na expedição? Chegou a falar com ele sobre o idioma? Ele é muito bom em sânscrito antigo, talvez ele já tenha visto esse formato de- 

— Eu falei, falei há muito tempo. Ele nunca havia visto algo assim – balançou a cabeça – Disse que com certeza não é sânscrito. 

— Prof. Lennox! Isso não é incrível?! – sorriu largo, incapaz de prender seu entusiasmo – Vai por mim! Isso é com certeza uma mistura de sânscrito e acádio, eu reconheço esses símbolos. Talvez seja uma língua mais antiga, da qual essas outras vieram, ou pelo menos seus sistemas de escrita. Quero dizer, pode ser coisa da minha cabeça, mas não parece que aqui está escrito algo como “tocar a campainha”? E aquela peça que trouxeram semana passada não parecia mesmo uma campainha? – se achando ridículo, deu risada – Ainda que rudimentar.  

— O quê? Conseguiu ler isso? – franziu as sobrancelhas. 

— “Ler" é uma palavra muito forte – entortou os lábios – Eu fiz trabalhos sobre esses idiomas, e você sabe que meu pai sempre lia coisas em acádio e outras línguas mortas pra mim... Talvez seja intuição? Ainda assim, diria que tem uma parte que eu não reconheço, uma influência desconhecida. 

— Por que não estuda esse fragmento e as fotos que chegaram? Eu vou considerar qualquer coisa que você identificar – se espreguiçou – Faça isso enquanto eu tiro uma soneca. 

— Ah... Claro! – observou o homem se afastar – Prof. Lennox! Antes de ir... 

— Sim? 

— Eu gostaria de ir com eles amanhã, o que acha? – cerrou os punhos, ansioso. 

— Ir até o AmirNada? Não! Não antes que seja considerado seguro. Já conversamos sobre isso, por que sempre volta nesse assunto? Eu prometi ao seu pai que te manteria em segurança e- 

O cortou. 

— Tem razão! Não precisa fazer um discurso, já entendi – rodou os olhos, se virando de costas. 

Daniel era filho de uma professora brasileira de dança e um conceituado professor de história da Universidade de Londres. O Professor e Doutor Dennis Richardson tinha um vasto conhecimento e já havia participado de escavações, mas, por não ser tão brilhante, há muitos anos se mantinha dentro dos muros seguros da universidade. Em uma das poucas aventuras de Dennis, havia levado Lennox, na época seu aluno. De forma que Lennox se tornara quase da família, algo como um tio jovem e divertido, que aparece de quando em quando, e tem a função de entreter seu sobrinho.  

Foi impossível para Daniel não se pegar envolto naquela paixão por história e arqueologia. A mãe até tentou, mas ele acabou ficando ainda mais fanático que o marido. A única coisa que o pai e o “tio" podiam fazer era se assegurarem de que ele não correria perigo algum. Mesmo que já tivesse 22 anos, ainda era o único e querido filho daquela família.  

E, como qualquer um que o conhecesse diria: cresceu numa bolha. 

Enquanto estudava as fotos, um e-mail chegou à caixa postal do professor. Daniel nem precisou olhar para saber que Lennox dormia, seu alto ronco o denunciava. O rapaz até tentou resistir à tentação, mas... Quando viu que o remetente era Lara Wood, a cientista de Londres que os ajudava em sigilo, acabou abrindo o e-mail. Dentre outras coisas, os olhos castanhos arregalaram-se ao ver a datação estimada do material que eles coletaram na escavação. 

— Minha nossa senhora...! 

...Entre 9 e 12 mil anos atrás...” 

Aquelas eram provas científicas, eram incontestáveis, eram a verdade. Daniel sabia que o registro escrito mais antigo, em sumério, datava em apenas 5 mil anos atrás. E tanto o sânscrito antigo quanto o acádio eram línguas uns mil anos mais recentes que isso. 

— Um registro escrito de 10 mil anos é como... mágica. 

Coincidentemente, esse registro era tão velho quanto o sítio arqueológico que seu pai trabalhara junto com o Prof. Lennox no passado, uma estrutura de câmaras inferiores semelhantes às de AmirNada, abaixo do Göbekli Tepe na Turquia, que datavam em 10 mil anos atrás. No entanto, em Göbekli Tepe não havia nenhum registro escrito, nem artefatos relevantes. O que mais chamava a atenção era a sala dos 30 portais. Com batentes bonitos, apenas uma das portas funcionava, a que, de fato, dava acesso à sala.  

Estariam os dois lugares relacionados? Feitos pelas mesmas pessoas? 4 mil quilômetros os separavam, 40 dias de caminhada. Indo da Índia e atravessando 4 países, estava o único lugar no mundo semelhante à AmirNada. Mas ainda não era semelhante o suficiente.  

O sítio arqueológico de AmirNada era muito diferente de qualquer coisa que o ser humano já havia descoberto. Daniel sabia disso. Sentia isso. E provavelmente, embora não quisessem admitir, o Prof. Lennox e o Prof. Kabir também sabiam. 

— Talvez... Talvez devêssemos olhar para esse idioma como se fosse completamente novo – em um devaneio, Daniel pensava alto. 

Abriu as telas com as letras nas paredes e as encarou sem se mover, por quase duas horas. Foi quando Prof. Kabir e os outros chegaram. 

Daniel queria surpreendê-los com as informações do e-mail, mas era o professor indiano que estava eufórico. Coberto de poeira e suor, e com o joelho ensanguentado, nunca parecera tão feliz. 

— Acorde o Lennox! Achamos algo incrível lá embaixo, depois do corredor! – falava em inglês, gesticulando animado. 

— Claro, ahn... Por que não se senta primeiro? – deu as costas, indo mais fundo na cabana. Não haviam paredes, mas algumas cortinas davam privacidade para a área onde eles dormiam. 

— Oh, e isso não é nada! Eu só escorreguei! – o homem gritou de volta, dando um pulo de animação.  

Daniel se abaixou ao lado do colchão do mais velho, respirando fundo.  

— Professor... – lhe sacudiu o ombro – James, acorda. O Prof. Kabir e os outros voltaram muito animados – sacudiu de novo, se atrevendo a dar-lhe tapinhas no rosto – Jim? É impossível que não esteja me ouvindo! 

— Eu estou! Estou! – em um alto som de descontentamento, se levantou – Da última vez ele tinha apenas encontrado alguns dentes humanos. 

— Professor! Eram dentes arrancados! Foi bem interessante – o lembrou, seguindo na frente até o tapete grande e almofadas que chamavam de sala. 

O Prof. Kabir recebia cuidados médicos de um dos três rapazes que ajudavam na escavação. Aparentemente eram todos alunos da Universidade em Nova Deli, além disso eram rapazes muito fortes e prestativos. Fora eles, haviam mais 2 estrangeiros, especializados em leitura de solo e abertura de buracos e passagens subterrâneas.  

Todos pareciam já saber da novidade, pois se dispersavam rapidamente em busca de banho e comida. 

— O que aconteceu com sua perna?! – Lennox torceu o cenho ao ver o corte um pouco abaixo da rótula do joelho. 

— Isso não é nada para um homem como eu, estou bem! – um pouco mais novo que Lennox, Kabir sempre se gabava da boa forma – Me machuquei quando algo incrível apareceu depois do corredor. Achávamos que só haveria terra lá embaixo, mas depois de apenas 10 metros uma escadaria livre apareceu. 

— “Escadaria"? – Lennox semicerrou os olhos, se jogando numa das almofadas. 

— Aqui, mostre as fotos para eles! – falando em híndi, chamou um de seus alunos com a mão. 

Apressado, o indiano mais jovem do grupo trazia um notebook velho, ainda à pouco conectado à câmera de alta resolução que eles levavam nas expedições. Colocou na frente dos dois ingleses, também os observando em expectativa.  

E foi bom olhar mesmo, porque a cara de surpresa dos dois chegava a ser engraçada. Daniel, o entusiasta. James, o desconfiado. 

— Então... – o professor mais velho se virava para o colega de profissão à cada nova foto revelada – ...Lá embaixo, depois de toda a poeira, havia uma escadaria de pedra como essa? 

— Não qualquer escadaria de pedra – Kabir apontava os detalhes – Os degraus tinham ângulos perfeitos em 90°. Olhe isso! E o material... O material é um tipo de pedra, talvez granito, é escuro e tem muito brilho. E vocês conseguem ver esses corrimões?! Parece prata, e tem desenhos talhados à mão e as mesmas letras das paredes das duas câmaras acima. 

— Mas... Como... – Lennox franzia as sobrancelhas – Será que é uma construção mais recente do que pensávamos? Talvez um esconderijo de uma pessoa rica de algumas centenas de anos atrás? 

— Ah! Teve algo importante hoje! – Daniel levantou a mão – James, eu olhei seus e-mails! Sua amiga de Londres, a Dra. Wood, enviou a resposta para a análise daquele material. A datação é de cerca de 10 mil anos. 

A reação dos dois professores foi dar risada. 

— Isso é impossível, Daniel! Você com certeza deve ter lido errado. Nós esperávamos que tivesse algumas centenas de anos. 

— Existe um ditado de que ficar muito tempo em AmirNada pode enlouquecer as pessoas. Acho que estão certos! – Kabir balançou a cabeça para os lados. 

— É verdade! Por que você não checa os seus e-mails antes de continuarmos a ver as fotos? – o jovem balançou o ombro de seu professor. 

Contrariado, Lennox puxou o celular do bolso, indo rapidamente para a resposta da Dra. Wood. O queixo foi ao chão ao ler o e-mail. A própria cientista, por não acreditar nos resultados, havia refeito os testes mais de 10 vezes! Wood ainda pedia que os dois mantivessem extremo sigilo sobre o assunto, pelo menos até que tivessem mais respostas sobre a escavação em AmirNada. A comoção que aquilo poderia gerar era imensa. 

Ainda mais se juntassem o fato descoberto essa tarde! 

— N-Nós precisamos coletar material dessa escadaria e enviar para Londres – Lennox diminuiu o tom da voz, passando a encarar as fotos – O que mais havia lá embaixo? 

— B-Bem, nós descemos por cerca de 100 degraus e então... – Kabir tocou o notebook, avançando algumas fotos – Havia esse... Enorme Salão, com mais 5 corredores. 

— O quê?! – Daniel se colou à tela pequena, não acreditando no que via – Isso é enorme! Quanto media o pé direito? 

— Cerca de 5 metros, e os corredores também são largos. Nossa iluminação não era boa o suficiente, mas as paredes estão cobertas por desenhos e longos textos, e o piso é o mesmo da escadaria. Conseguem ver? Tem um brilho dourado quando se olha de perto – o indiano já não estava mais tão eufórico, sentia o peso daquela descoberta. 

— Isso não... Deve ser loucura minha, mas não parece opala negra? Vocês sabem, aquela pedra preciosa que na verdade é um mineral e- – Daniel foi interrompido pelo outro inglês.  

— Você está certo! Isso parece muito com opala, mas... Acredito que nunca tenha sido encontrada nessa quantidade antes, ainda mais sendo usada no piso de algum lugar – Lennox mordia os lábios, começando a ficar ansioso – Conseguiram fotos das paredes? 

— Sinto muito, nossa bateria acabou bem nesse momento – Kabir sorriu amarelo – Mas eu acredito que vocês possam descer lá, é seguro agora. Ao menos parece bem seguro. As paredes são sólidas, e ainda não exploramos nenhum túnel, vocês deveriam ir. 

— Eu não sei se... – Lennox olhou para os brilhantes e esperançosos olhos castanhos, suspirando – Tudo bem. Nós iremos amanhã com vocês, logo pela manhã. 

Daniel quase gritou de empolgação, mas conseguiu manter a compostura. Se retirou da “sala de estar", e seguiu para fora da tenda. 

Debaixo do véu escuro da noite, deu vários pulinhos e juntou às mãos ao rosto, como numa prece. Não sabia a quem estava agradecendo por aquilo, mas, enquanto olhava às estrelas brilhantes no céu, um enorme sentimento de gratidão o preenchia. Era por causa disso que estava naquele trabalho! Era isso que buscava desde criança, alguma grande descoberta, alguma resposta para o passado desconhecido da humanidade! 

— Eu amo AmirNada. 

Sussurrou, olhando em volta. Aquele lugarzinho no interior da Índia um dia ficaria famoso. Talvez a dona Mahara até pudesse abrir um restaurante de verdade! Daniel estava tão alucinado que começou a desejar se mudar de vez para a cidade. Começava a pensar que morar ali por alguns anos em prol do seu trabalho seria um grande privilégio.  

Demorou quase uma hora para que Daniel se acalmasse e resolvesse seguir para o banheiro improvisado na construção ao lado da cabana. Sem iluminação, o banheiro tinha paredes de um metro e setenta, com um teto de telhas finas estilo guarda-sol, só um pouco para cima. No centro um banco baixo de pedra, com capacidade para até três pessoas, e uma portinha bamba que não fechava direito. A bacia sanitária ficava do outro lado, entrando por outra porta. 

O rapaz pendurou as roupas e a toalha na parede e se sentou, ligando a ducha fraca de água gelada que vinha do subsolo. Foi apenas nesse momento que notou a grande animação entre as pernas. Não era para menos, considerando o quanto estava excitado com as recentes descobertas.  

Sorriu fraco, sentindo falta de Londres. Mais especificamente da namorada que ficou em Londres. Por mais que fosse alguém calmo e controlado, sentia falta de ficar com alguém. O corpo também sentia. E não apenas isso, queria contar a novidade, queria ver o sorriso radiante no rosto dela, queria que os dois dessem pulos de animação juntos... 

Bom, o mais provável, entretanto, é que ela sequer desse atenção à AmirNada.  

É verdade que Natalie, a namorada, fazia aulas de dança nos finais de semana. Mas, tirando isso, era uma típica garota de cidade grande. Gostava do seu emprego no escritório de uma multinacional, de tomar o café-da-manhã na famosa rede de cafeterias, de ir à balada nos finais de semana e de se hospedar nos melhores hotéis nas férias de final de ano. Embora achasse história interessante, não consideraria nem por um segundo ir para um lugar como o interior da Índia. 

Sequer iria para a Índia! 

— Ah... Como sou idiota – acabou rindo de si mesmo, quando percebeu que estava chorando. 

Era difícil ficar longe de quem amava. Seus pais estariam sempre lá para ele, seus amigos também. Mas a namorada... Por quanto tempo esperaria um rapaz como ele? 

De repente, um dos estudantes da Universidade de Nova Deli adentrou o banho. Era Raj, que tinha por volta da sua idade, sendo o mais novo dentre os garotos indianos. Raj sempre tentava puxar algum assunto, parecendo até intrometido, mas seu sorriso sincero tornava impossível se irritar. 

— Hailo, Daniel! Hoje está tão frio! – sorriu, se sentando bem ao lado do outro – Mamadi! Devia ter tomado banho durante o dia! 

Daniel apenas resmungou, passando as mãos disfarçadamente pelo rosto. 

— Me desculpe... Estava chorando? – Raj sorriu de lado, inclinando o rosto na sua direção. Quando não obteve resposta soltou uma risada pelo nariz – Tudo bem! Só hoje eu já chorei duas vezes. 

— Ah, é? – acabou rindo. 

— O Prof. Kabir disse que isso é prova de que ainda somos humanos – deu algumas batidinhas no ombro do outro – É difícil ficar longe de todos, nesse fim de mundo. Somos homens da cidade, afinal. Ainda mais você. Você namora, né? Sente saudades? 

— É, Raj, eu acho que sim – respirou fundo, se recompondo. 

— Como ela é? – curioso, quando não obteve resposta, mudou de assunto – Há, há, já o Prof. Lennox... Ele nunca chora, né? – brincou. 

— É porque ele não é humano! – acompanhou a risada. 

— Bom, em momentos como esse você tem que relaxar! – levou ambas as mãos aos ombros do outro, começando uma massagem – Aproveita. Fecha os olhos. 

— Hum? Não precisa – num riso sem graça, Daniel resistiu ao impulso de se encolher. 

Daniel suspeitava que Raj estivesse dando em cima dele. Quando estavam sozinhos, o indiano sempre arrumava desculpas para lhe tocar. Achava que era uma pessoa “sem noção”, mas aos poucos percebia um padrão. E Daniel via um grande perigo nisso. Não odiar, como imaginava que deveria odiar, era um grande indício do perigo. Se sentia à vontade com o rapaz e, dado o tempo de isolamento naquele lugar, mesmo aquelas mãos masculinas nos seus ombros eram tão... Lhe fazia duvidar de assuntos que evitava desde os 11 anos. 

— Ah! Na verdade...! – se levantou, correndo para amarrar a toalha na cintura – Deixamos a massagem para outra hora? Eu ainda tenho que fazer uma coisa e... 

— Sério? Tá bom – com um sorriso, não houve protestos. 

Após um momento de silêncio, Daniel aproveitou a oportunidade de voltar para a tenda. 

O rapaz se vestiu, se ajeitou no colchão que lhe pertencia e tentou, pela primeira vez em muito tempo, ligar para a namorada. São 5 horas de diferença entre Índia e Londres, agora Natalie devia estar no final da tarde de sábado. Daniel achou que não seria atendido, mas logo via o rosto da outra na tela do celular. Ainda bem! 

— “Quem é vivo sempre aparece!” – brincando, com o cabelo escuro bem preso em um coque, exibiu o sorriso que Daniel tanto gostava. Largo, de dentes grandes e brancos, mesmo há quase 8 mil quilômetros de distância, passando muita alegria. 

— Natalie! Que saudade! – suspirou, sorrindo. 

— “Saudades? Deve ser por isso que você me liga toda hora” – o sarcasmo machucou. 

— Isso... – sorriu amarelo – É porque aqui é corrido, eu te disse. Ah! Você tá... Sem roupa? Que lugar é esse? 

— “Eu estou de biquíni” – mostrou o ambiente – “Olha que loucura! Lá fora está nevando, mas estamos numa festa na piscina! Uns amigos do meu chefe organizaram, trouxe as meninas comigo.” 

— Uau, parece divertido! – sorriu, enciumado – Não beba demais, lembre-se de ter cuidado. 

— “Ainda estou me recuperando das próteses, não posso beber. Devia ver como meus peitos estão grandes! Você vai adorar" – deitou-se numa espreguiçadeira – “Dani, você também podia estar aqui. Não era para estar? Não ia voltar no começo do ano? Você prometeu.” 

— É, eu disse que ia, né? Mas... – encarava os olhos azuis da namorada, por mais que fosse difícil – É que estamos no meio de algo importante, não creio que consiga voltar agora. Mas até o verão... Não, antes do verão. Dessa vez é sério, eu prometo que volto antes do verão. Pelo menos por umas duas semanas. 

— “Duas semanas?! Só isso? Vai passar férias em Londres, vai? Eu conheço muitos pontos turísticos, posso te levar se quiser” – Natalie voltou ao sarcasmo, balançando a cabeça para os lados. 

— Meu amor, é que... Você sabe, uma escavação arqueológica pode levar muitos anos, mesmo que seja apenas para ser iniciada- – foi cortado pela outra. 

— “Anos?!” 

— Não, Naty! Eu não quis dizer que vou ficar aqui por anos, é só que... – ao perceber que falava muito alto, deu uma olhadinha em volta e puxou o microfone até a boca – É só que talvez eu tenha que voltar aqui por alguns anos. Mas eu pretendo passar a maior parte do meu tempo em Londres, isso é claro. Com você. 

— “Oh... A maior parte...” – mordia os lábios, pensativa – “Daniel, nós estamos juntos há quase 5 anos. É difícil pra mim ficar tanto tempo longe de você. Eu... Eu me sinto muito sozinha aqui” – riu de si mesma, como se achasse ridículo. 

— T-Também é difícil pra mim! É claro! É algo novo, mas nós vamos conseguir lidar com isso. Os meus pais conseguiram! Por muitos anos meu pai trabalhou meio ano na Turquia e meio an- 

— “Mas agora eles estão se divorciando, não estão? Só... Me responde, Daniel. Não estamos juntos só por conveniência, né? Nós temos uma história legal e já fizemos muita coisa juntos e...” – olhava para algo fora da tela, distraída, pensativa. Não estava mais tão radiante. 

— Não precisa perguntar isso. Você é parte da minha família, não me imagino sem você – franziu as sobrancelhas – Eu quero você pra sempre. Isso é só... Temporário. 

— “Hum...” – balançou a cabeça, respirando fundo como se prestes a chorar – “Essa semana um cara legal me chamou pra sair, sabia? E eu recusei, é claro. Porque estou esperando por você. Esperando e esperando. Eu devo continuar esperando?” 

— Hã? É claro que sim. Eu vou voltar, Natalie! É claro que vou! Minha casa está em Londres. 

— “Tá bom, então tá bom. Eu acredito" – sorriu de lado, tocando os olhos com a ponta dos dedos – “Olha, eu estou perdendo a festa. Desculpa, preciso ir.” 

— Claro. Outra... Outro momento nos falamos. I love y— 

Natalie encerrou a chamada antes que o namorado pudesse terminar a frase. 

Não é preciso dizer que, por motivos diversos, Daniel não dormiu naquela noite. No entanto, por mais que isso possa soar triste para Natalie, a coisa que mais lhe tirava o sono era a emoção que lhe aguardava no dia seguinte. A arqueologia sempre vinha em primeiro lugar e, talvez, só algo de outro planeta pudesse substituir esse posto. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ah...! Espero que tenham sentido o gostinho de Amir Nada, kkkk. Uma história yaoi, um romance, mas que também tem conteúdo além disso: é meu objetivo! rs
Se for comentar não esqueça,
e até o próximo!
^3^ Kisus~~



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "San'Nen - Humanos de outra Terra" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.