Diário de Rosalya escrita por TiaManda


Capítulo 14
Domingo de reparos




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Domingo, o dia mais deprimente da semana. Tenho a impressão de que o mundo todo perde um pouco a cor aos domingos. É tão... Parado?

Porém, pela primeira vez, sentia um domingo fundir comigo.

Após lavar o rosto, sentei na cama, em frente a janela, desanimada. Não havia nada para fazer, a não ser admirar a árvore que ocupava toda a vista.

Um passarinho azul pousou em um dos incontáveis galhos, parecia concentrado na folha ao seu lado. Curiosamente, olhar para o pássaro trouxe memórias nas quais quis me perder. Dentre elas, Chris com seu monte de toucas azuis. 

"Era manhã de domingo, cinza e frienta, mas ele conseguia deixar o dia amarelo.

— Chris, nem vem!

— Ah, qual é? Você que começou! — falou agachado enquanto formava uma imensa bola de neve.

— Isso não vale! Tá muito grande! – contestei.

— O nome disso é vingança! – levantou e correu em minha direção. – Aaaaaaaaaaaa!

Fugi o mais rápido que pude.

— Não vai me alcançar nunca! – ri.

— Quer apostar? – ele gritou.

Um animal marrom passou rapidamente quase aos meus pés. Parei bruscamente na desesperada tentativa de não atropelá-lo.

Chris não percebeu que eu havia parado, e continuou correndo, até trombar comigo e cairmos os dois na neve. A bola se desfez, camuflando-se com outros montes de neve espalhados.

— Você tá louca? – gargalhou.

— Tinha um bicho no caminho! Não podia pisar nele!

— Aham, vou fingir que acredito.

— Cala a boca! – ri, empurrando-o de leve.

Ali, deitados sobre o gelo, fofocamos por cerca de, creio eu, dez minutos antes de começar a nevar.

— Vamos, Rosa. – ficou de pé – Ou prefere morrer congelada?

— Ah, que preguiça! – falei – Escolho a segunda opção.

— Seu nariz virou um pimentão de tão vermelho! Anda logo, vai ficar doente!

— Tá bom, mãe! Já vou! – sorri.

— Muito engraçadinho da sua parte. – estendeu a mão para que eu me levantasse também – Topa WayCoffe agora?

— Óbvio.

— Ótimo. – sorriu – Quem chegar por último paga! – falou antes de disparar."

Chorando de novo. Achei que havia esgotado o estoque de lágrimas ontem.

O som da campainha soou. Ouvi minha mãe conversar com alguém no andar de baixo. Não estava com relógio, mas aparentava ser manhã ainda. Por Deus, quem visita os outros tão cedo no fim de semana?!

A conversa cessou e foi substituída por passos na escada. Alguém bateu na porta e mexeu na maçaneta. Estava trancada porque não podia encarar o mundo. Não naquele domingo.

— Filha? Está acordada? – disse ela do outro lado. Não respondi. A última coisa que precisava no momento era falar com uma tia distante ou algo do tipo. – Eu sei que está acordada, Rosa. Você tem visita.

Permaneci em silêncio. E fiquei assim durante os dez minutos que minha mãe também ficou, até ela bater na porta novamente.

— Por favor, não insista! – gritei.

— Rosa, sou eu. – a voz masculina ecoou abafada no corredor.

Meu coração deu um pulo. O que ele fazia aqui?

— Pode abrir a porta? Por favor?

Relutante, girei a chave devagar na fechadura e prendi a respiração.

— Leigh. – sussurrei, ainda confusa. Tava difícil de assimilar ele de pé, bem ali.

— Oi – sorriu. Parecia sem graça com algo.

— O que você tá fazendo aqui?

— Nós ti-tinhamos, quer dizer... – limpou a garganta – Tínhamos... – parou de falar e desviou os olhos de mim com o rosto vermelho.

— Tá tudo bem? – perguntei, aflita.

— Não! – respondeu rápido – Q-quer dizer, s-sim...

— Leigh, se você desmaiar, não vou conseguir te segurar.

— E-eu... – coçou a nuca – Você está de pijama.

— O quê?! – conferi a roupa. Usava uma linda camisola. Desejei refutá-lo, mas, ao ver o estado de seu rosto ruborizado, preferi apenas vestir um roupão por cima. Me afastei para pegar o traje no banheiro, quando retornei Leigh havia ultrapassado a entrada, e parecia e observativo. – Aconteceu algo? – perguntei para que notasse minha presença.

— Seu quarto... – falou baixo, mais para si mesmo, porém ouvi.

— O que tem ele? 

— Bem, nada... – respondeu sem jeito – Não imaginava que fosse assim... branco e... vazio. – olhou para mim antes de continuar – Aquele dia você comprou... – parou de falar. Sua expressão mudou, aparentava preocupação. Levantou a mão, como se fosse tocar meu rosto, na verdade achei que o faria, porém apenas voltou a baixá-la – Rosalya, estava chorando?

— E-eu... Não! – virei em direção a parede, para secar as bochechas molhadas, no entanto a movimentação brusca evidenciou o que procurei esconder.

— Quer que eu saia? – perguntou baixo.

— Não! – apressei em dizer, retornando a vê-lo. Ele me olhava apreensivo. Isso, de certa forma, potencializou todos os sentimentos presos. Respirei fundo para não desabar, mas as lágrimas caíram, silenciosas, sem permissão. Tentei limpá-las com a manga do roupão, constrangida. 

Repentinamente senti braços ao meu redor. A confusão se dissipou quando notei o perfume masculino.  O abraço foi como uma alavanca, triplicando as emoções. Um soluço escapou, então percebi que chorava novamente. Permanecemos desta forma até eu me acalmar.

Desfiz o abraço e subitamente fui tomada por uma timidez irreconhecível.  Sentei na cama e escondi o rosto com as mãos. Não conseguia encará-lo.

— Desculpa —  murmurei sem pensar e em seguida desejei bater a cabeça na parede, questionando os motivos para agir desta forma.

O colchão foi levemente pressionado para baixo. 

—  Rosalya, não há motivos para se desculpar —  disse ele, ao meu lado. —  Quer conversar? —  praticamente sussurrou.

Fiquei em silêncio, encarando a árvore. Leigh, compreensivo, também se calou. Após o que considerei minutos, virei para ele e o vi olhando a árvore também.

—  É só um dia ruim. —  enfim, pronunciei. Ele me olhou de prontidão. —  Acho que precisava chorar para tirar todas as coisas de dentro de mim.

—  Quais coisas? - perguntou baixo, como se temesse me magoar de alguma forma.

— São pequenas situações juntas, que formaram um bolo de coisas. Aí eu explodi. — confessei. Ele me encarava, com atenção. — Tipo quando fazemos um vestido, aí acrescentamos os detalhes aos poucos, sem pensar muito, e quando percebemos, o vestido ficou um desastre! — Ele esboçou um sorriso e balançou a cabeça, a expressão absorta revelava que viveu esse tipo de situação milhares de vezes —  Parece drama, mas ficar longe dos meus amigos por tanto tempo, sem previsão de voltar, me deixa angustiada. Eles eram meu porto seguro. Além disso, não sou muito querida na escola, e sinceramente, não devia nem queria me importar com isso, mas é inevitável se entristecer em um lugar onde não é aceita. Talvez o fato de estar chorona pela Rússia me impediu de enfrentar os problemas no colégio. A única pessoa com quem me enturmei prefere escrever em seu bloco de notas ao invés de conversar. E também tive essa situação com meus pais... —  lembrei do motivo para o Leigh estar aqui. Não tive tempo para cancelar nosso compromisso de ir à loja, o celular foi confiscado antes. — Ai Leigh, me desculpa — falei depois de matutar.

Ele pareceu ler meus pensamentos, e fez um gesto com a cabeça, indicando ter assimilado a conclusão que cheguei.

— Fiz merda e meus pais ficaram bravos comigo e me puniram. Pegaram meu celular. Por isso não pude te avisar do castigo. — completei.

Leigh manteve-se em silêncio, me encarando. Seus dedos batucavam, inquietos, no joelho, tive a impressão de que ele raciocinava rapidamente. Quando finalmente abriu a boca para dizer algo, foi interrompido.

— Filha? — minha mãe apareceu na porta. 

 Dei um pulo, assustada, e de modo apressado, enxuguei o canto dos olhos. 

— Senhora Champoudry — Leigh levantou.

— Ah, querido, não precisa me chamar assim — disse ela — Crystal basta. — sorriu — Rosalya, tô saindo com seu pai agora. Nós vamos a loja de móveis planejados. Como havia comentado antes contigo, eu e seu pai queremos reformar a casa, e aquela amiga designer dele marcou uma reunião hoje. — Ela falou, e fez uma cara estranha ao me ver, possivelmente por perceber o rosto inchado, mas, apesar disso, não comentou nada a respeito.

— A-ah então é melhor eu ir embora — disse Leigh. Por uma fração de segundo, pude jurar ter visto a chateação em seu semblante. Ou talvez fosse o que desejei enxergar, afinal era como me sentia.

— Não, querido! — respondeu ela — Pode ficar se quiser. Não demoraremos para voltar. 

O quê? Me deixaria sozinha com um garoto? Mesmo de castigo?

Tive vontade de questioná-la, mas, com medo dela mudar de ideia, optei por apenas assentir.

— Tchau filha! Tchau querido! — falou antes de partir.

— O que você queria me dizer? — perguntei para Leigh.

— Hã?

— Antes da minha mãe aparecer, você queria dizer algo. O que era?

— Ah, sim, queria... — retornou a tamborilar as pernas — tem um lugar que talvez você goste...

— Leigh... — falei, desconcertada — estou de castigo, esqueceu?

— Posso conversar com seus pais.

— Não vai dar certo.

— Mas sua mãe acabou de…

— Eu sei — interrompi — foi a boa ação dela do dia. Estão bravos, não vão permitir que eu saia.

 — E se você propuser um acordo com eles? — pareceu esperançoso, de alguma forma — Se fizer algo que gostem, em troca de sair por uma noite? E depois o castigo se mantém? 

— É uma boa ideia! — sorri — Será que vai funcionar?

— Bom, com meus pais funcionava — coçou a nuca, envergonhado.

— Quem diria que Mister Leigh não é tão certinho. — o cutuquei com o cotovelo, para provocar — O que acha de um almoço? Ou melhor, um banquete? — falei, animada.

— Posso te ajudar, se quiser.

— Vou adorar!  — disse eu, por fim, e o puxei para a cozinha.

(...) 

Havia diferentes tipos de carne no congelador. Optei por uma de chester. Leigh pegava os temperos em uma parte do armário.

— Pronto, acho que temos tudo o que precisamos para começar! — despejei os ingredientes no balcão. — Vejamos quais temperos você pegou… Orégano, sal, louro, manjericão… Peraí, isso aqui é canela? — o olhei, confusa.

— Sério? — checou o pote em minhas mãos — desculpe, Rosalya! Não tenho costume de mexer com essas coisas… — corou.

— Sem problemas, bobinho! — ri. — Vamos fazer assim, você corta as cebolas, e eu faço o restante. Pode ser?

Ele assentiu.

O almoço seria composto por chester, dois tipos de macarrão com dois molhos diferentes — molho vermelho e molho branco — quiche lorraine e uma saladinha para equilibrar. Leigh gostava de uma tal salada caesar. Então teria ela também.

— Rosa, acho que sou alérgico a esse negócio! — disse ele, enxugando as lágrimas com o antebraço.

— O quê? — me aproximei preocupada e segurei seu rosto em busca de alguma mancha ou inchaço — Por que não me contou antes?

— Eu não sabia…

— Me diz o que tá sentindo? Tá com coceira? Falta de ar? Sua mão tá dormente?

— Meus olhos estão lacrimejando — os enxugou mais uma vez.

— E o que mais? 

— Só isso. — conseguiu, enfim, me encarar. Seus olhos, agora vermelhos devido a irritação, ainda lagrimavam.

 — Leigh, é normal chorar cortando cebola. Ela solta um líquido que faz isso com o nosso olho — apontei para seu rosto. Leigh, antes com olhos vermelhos, agora tinha o rosto todo ruborizado. O semblante transparecia o quanto ele não estava familiarizado com a cozinha.

— Desculpe… — disse, finalmente. — Não sei cozinhar… Detesto cozinhar!

— Tá tudo bem — sorri, achando graça da situação — Deixa que eu termino aqui. Você já me ajudou demais. Pode ficar ali na sala.

— Tem certeza?

— Claro — respondi conferindo as cebolas que ele havia cortado. Apesar dos tamanhos irregulares, alguns pedaços em formas quase cúbicas, outras em rodelas, dava para perceber que Leigh se esforçou para fazê-lo. — Só não temos TV aí na sala, mas se você quiser pode pegar meu notebook para assistir. Ele está no… Ah droga, esqueci! Foi confiscado. Nada de notebook.

— Sem problemas! Tem algo que eu possa fazer?

— Hum.. Acho que não.

— E isso aqui? — apontou para a caixa de papelão no canto da sala. — Ah, é a televisão. Não instalamos ela.

— Quer que eu instale?

— Fica a vontade! — voltei a mexer nas panelas. 

(...)

— Essa gracinha vai levar cerca de duas horas e meia para assar! — fechei o forno. Enquanto isso, posso te ajudar com a televisão.

— Terminei! — disse ele, entre os fios. 

— Sério? Deixa eu ver como ficou! Ah, tá perfeito! Obrigada, Leigh! — beijei sua bochecha.

— Tenho uma sugestão do que podemos fazer agora.

(...)

Leigh tropeçou em uma das incontáveis caixas.

— Tá tudo bem? — o ajudei a levantar.

— Tá sim! —  massageou o cotovelo, provavelmente o bateu no chão.

— Tem certeza de que quer decorar o quarto?

— Temos que esperar duas horas ainda. Por que não? Podemos começar pelo papel de parede. O que acha?

(...)

O alarme tocou, indicando que a comida estava pronta. O quarto, quase finalizado, aparentava ser mais espaçoso. A maioria das caixas, já vazias, ficaram empilhadas num canto da parede. Mudamos a cama de lugar, agora ela ficava embaixo da janela, encostada na parede. O cinza e rosa claro se destacavam no ambiente ao invés do branco antigo.

— Quer que eu termine aqui enquanto você olha o forno?

— Não se preocupe! Acho que só faltam os quadros, posso pendurar eles depois. — disse eu — Obrigada, Leigh.

Ele respondeu com um sorriso tímido.

(...)

— Podemos usar essa toalha de mesa —  sugeriu ele —  vai combinar com os guardanapos.

— Tem razão! Você pode pegar os pratos no armário, por favor? 

A porta da frente abriu repentinamente. Eram meus pais. Minha mãe entrou primeiro, ela logo deu de cara com a mesa da sala de jantar decorada. Sua expressão mostrava surpresa, completa surpresa. A de papai não foi diferente.

— Filha, o que é tudo isso? — sorriu, aproximando-se de mim.

— Nós fizemos um almoço! — sorri amarelo.

— Nossa que chique! — disse ela.

— Um almoço ou banquete? — perguntou meu pai.

— Os dois! — forcei mais ainda o sorriso. Estava nervosa porque queria que a ideia desse certo. Minha maior vontade no momento era fugir, pra qualquer lugar, e talvez pudesse se fizesse tudo direito. 

— E há algum motivo especial para esse almoço inusitado? — questionou ela, de forma sarcástica. Ela sabia, com certeza sabia que eu pediria alguma coisa.

— Sentem-se, por favor. — pedi, ignorando-a — Vou servir vocês.

(...)

Durante o almoço correu tudo bem. Meu pai fez incontáveis perguntas para o Leigh, sobre a loja, negócios e administração. Por outro lado a Crystal, vulgo mãe, permaneceu em silêncio, me olhando de relance às vezes. Mas ao contrário do que pensava, ela não parecia brava.

— Então… — cocei a garganta para chamar a atenção de todos — Leigh disse que tem um lugar… — baixei o tom de voz. Fazer aquilo era mais difícil do que achava — Posso ir com ele? — os encarei, eles me olhavam de volta. — Sei que estou de castigo, mas…

— Pode, filha! — ela interrompeu.

— Pera, sério? — a olhei, confusa. Meu pai também assentiu.

— Pode ir, filha. Só não volte muito tarde. — disse ele.

— Fácil assim? 

— Não me faça pensar duas vezes. — disse ela.

— Então tá. — concordei. A situação era muito estranha. Parecia que minha mãe escondia algo.

(...)

— Fico feliz que seus pais aceitaram. — disse Leigh, já na porta.

— E eu surpresa. Foi muito fácil. Alguma coisa tem…

— Ou eles perceberam que você precisa disso.

— Não sei não, Leigh… Mas, de todo modo, vejo você a noite! — sorri — Muito obrigada mesmo! — dei um beijo em sua bochecha.

— Até mais tarde!


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