Gótico... ou estrambótico? escrita por Tovarish


Capítulo 1
Quarta-feira no Cemitério




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I. Morte

Na noite quente do cemitério, no alto de um pinheiro, a Morte, e ela mesma, a Dona Morte, observava os jazidos. Todos eles lhe acompanharam em lentas caminhadas no final da vida, essas caminhadas tinham destinos variáveis — as vezes, terminavam no céu, em outras, terminavam no inferno, nos últimos tempos, muitos eram conduzidos ao purgatório.

Nos últimos séculos a Morte assinava seu ponto no purgatório, e a ceifadora já achava isso um saco desde o começo. Imaginem só, durante séculos, todos os dias, ouvir de São Pedro a piada sobre “a criança que achava que purgatório é onde você toma purgante”? Até a morte já achava que o purgatório era o novo inferno.

A lista nunca acaba. A quantidade de papel que existe no mundo (ou no outro mundo) pode ser limitada, mas a lista dos mortos nunca termina, e todos vão receber a visita, das vezes indesejável, Dona Morte. E hoje, sentada num galho grande no alto da árvore, a Morte pensava em sobre o porquê de ser considerada a “indesejável”.

Ela estava neste ramo já a muito, muito tempo, e já havia ceifado a vida de todo o tipo de gente. Milhões de anônimos, milhares de esquecidos, centenas de celebridades. E uma coisa sabia: seja quem for, o final da vida era sempre trazido por ela com suavidade e bom humor. Pasmem, a morte é gentil.

Podemos resumir a Dona Morte como uma mãe muito brava que gosta de seus filhos — almas que ela leva para o além-túmulo. A gentileza com quem está para bater as botas é sempre presente, e quando o defunto é famoso, rola até tietagem. Imaginem, como seria possível ceifar o Raul Seixas sem pedir um autógrafo?

Tratar bem defunto famoso é fácil, e embora a Dona Morte, ela mesma, seja uma alma gentil e sensível, nem ela aguentava os mortos chatos. Os mortos chatos, que ao morrer “batiam suas botas de chatos de galochas”, eram talvez os que mais a irritavam; outro grupo comum que irritava a Morte eram os góticos. Ô povinho chato! Esse pessoal que quer morrer antes da hora só atrapalha... Ora bolas, cada um tem sua hora pra nascer e pra morrer!

No alto da árvore mais alta do cemitério a Dona Morte agora observa o luar, a brisa quente passa por dentro do seu manto e lhe toca a pálida e gélida. O tédio era outro inimigo da Morte, mas o ócio era bom, ceifar as almas oito horas por dia era muito cansativo, e suas as férias deveriam estar vencidas a pelo menos dois mil anos. Seria bom falar com o Arcanjo Gabriel sobre isso um dia desses.

— Ô Dona Morte!

Quem ousa interromper o narrador descrevendo as brisas da Morte?

— Dona Morte! A senhora esqueceu a sua lista aqui embaixo de novo! Daqui a pouco já é de manhã e mais gente vai morrer, é melhor descer, se não o pessoal do céu vai chegar aqui loucos da vida!

— Não esquenta, Penado — disse a ceifadora se preparando para descer da árvore — Tô na minha hora. Só vai entrar alma nova de manhã, e hoje é quarta-feira.

Agora sim, segurando firmemente sua foice que até pouco estantes estava apoiada em outro galho próximo, a Dona Morte se levanta — Eu odeio quarta-feira! — esbraveja, e vai esticar as penas, e agora já no chão começa a pensar que quarta-feira é, pra quem mora no cemitério, o pior dia da semana, é o dia em que os góticos tentam pular o cemitério.

 II. Gótico

Na noite quente de quarta-feira, um exótico gótico ronda o quarteirão do cemitério. Olha pra um lado, olha pro outro. Jaqueta e coturno de couro, cinto de corrente e gargantilha, delineador borrado e sidecut na parte esquerda do crânio. Uma figura… diferente, que deve assustar até assombração.

Não tem ninguém na rua. O gótico chega perto do muro timidamente, pula, faz força, pronto! Pousando as solas duras do coturno na calçada de concreto batido do cemitério, ele admira o seu arredor, tudo é uma inspiração. As covas em terra mais simples, melancólicas e sem tumba em concreto, apenas com uma cruz fincada, fazem ele falar “Uau!”; os grandes mausóleos, com pilastras em mármore negro, grades talhadas em afrescos e acabamentos pontudos em cima, fazem ele exclamar “Nossa!”; as velas pretas e vermelhas, queimadas em cera na beirada das calçadas dos túmulos são para ele uma visão alucinante. O gótico se sente em casa no sinistro cemitério.

Aquele cemitério, especificamente, era o parque de diversões de qualquer gótico esquisitão. Lá haviam múmias, que faziam o gótico querer ser embalsamado; haviam muitos esqueletos, em uma antiga cripta feita em forma de ossuário, que faziam o rapaz umbral querer abandonar a sua carne; no ossuário haviam até caveiras sem o restante do corpo, e ele achava isso são shakespeariano! Fora isso, havia um plantel de assombrações boas de papo para quem era acostumado a conversar com as aranhas que passeiam pelo teto, ou com os morcegos que voam e revoavam.

Quando lá, em outra ocasião com seus outros amigos góticos (ou estrambóticos), eles haviam trocado presentes. Deu para um amigo um casal de dóceis ratazanas, e recebeu de uma amiga toda vestida na Siouxsie, uma lacraia, que como pet até hoje lhe acompanha. Nenhum desses mimos se compara, com o seu amor eterno, todo dia ele pensava nela e na visão alucinante que seria ver a Morte.

Ah, o gótico e seus hábitos tão estranhos. Não se enganem, para o narrador, todos os góticos são muito estranhos, imagino eu como que estas descrições devem ser difíceis para o nosso sóbrio leitor. Imaginem só que para chegar a ser gótico existem várias fases: esse aí, admirando o macabro já foi punk, dark, pós-dark e agora é…

— Nossa! Que visão alucinante!!

Mais hein?

Parece que o gótico viu, de canto de olho, a Dona Morte?

— Minha musa! Por favor, me leva! Me fulmina!!

Foi exatamente isso, leitor! O gótico encontrou a ceifadora, caminhando despretensiosamente pelo cemitério antes do turno começar. Tamanha foi sua comoção que ele já estava aos pés da intrigada Dona Morte, curvado, ao chão, tentando abraçá-la pelos tornozelos.

— Que isso? Sai do meu pé chulé, eu nem te conheço, seu fedelho!

Parece que a Morte não gosta de ser tietada.

III. O Gótico e a Morte

A Dona Morte estava desconsertada em ver uma criatura tão estranha de perto, quanto mais, grudada aos seus pés. Analisou o dito cujo dos pés a cabeça, era bizarro, mas era humano, era, porém, um gótico, e ele era um dos motivos que tornava as quartas-feiras enfadonhas do cemitério. Afinal, o que esse pessoal quer no cemitério? Eles ainda nem morreram.

— Desgruda do meu pé, menino! — Com um rápido chute na cara do gótico a Morte conseguiu se desvencilhar — Qual o seu nome e o que você quer comigo à essa hora?

— Dona Morte, você é a minha musa! Eu só quero morrer! Quero atingir a apoteose gótica sendo abraçado pela senhora...

— Eu nem te conheço, então sem abraço. — Disse a Morte se afastando — Qual é o seu nome, estrambótico?

— Rogério da Silva Reis!

Deveriam ser umas quatro e meia da manhã. Em algumas o sol ia começar a nascer, trazendo para os mortais mais encontros com a “indesejável”. Para morrer, basta estar vivo, não é mesmo? Por causa disso, a Dona Morte resolveu pegar a sua lista, e verificou se havia algum Rogério que deveria visitar o além naquela hora, ou pelo menos daqui há alguns minutos, e, justamente como pensava, não havia chegado a hora de ninguém naquele momento, e o gótico Rogério estava apenas atrapalhando sua pausa.

— Ainda não chegou a sua hora, passar bem. — A Morte deu sua sentença já colocando sua foice no ombro, virando as costas e partindo para outras bandas.

— Não!! — Mais uma vez, a estranha criatura estrambótica agarrou na túnica da Dona Morte. — Eu quero ser que nem a senhora! Não quero mais viver!

— Credo, moleque! Vai fazer uma terapia e me deixa em paz, vá viver a sua vida que a sua hora ainda não chegou!

É isto. O gótico Rogério havia sido rejeitado pela sua musa. Não havia, ainda e afinal, chegado a sua hora. Tudo o que ele poderia pensar é que estava arrasado, e não para menos, pense só: passar por várias tribos urbanas (ou suburbanas), para se encontrar na filosofia de vida gótica, e na melancolia da madrugada ser rejeitado pela morte. Que fase a do Rogério.

IV. Gótico ou... Estrambótico?

E chora o triste gótico rejeitado, e na choradeira, convence todas as almas penadas do cemitério de que sim, quarta-feira é o pior dia da semana para se ter o descanso eterno. Lá vai mais um fazendo baderna na hora do sono dos defuntos.

Uma bondosa alma penada, acordada pelo chororô do gótico Rogério, resolve averiguar o motivo da tristeza do esquisitão. Era mais comum que Penadinho quisesse assustar ou pregar peças em quem se aventurasse no cemitério naquela hora da madrugada, mas o estado lamentável do sujeito — e o delineador ainda mais borrado — despertarem curiosidade e até um pouco de interesse sobre aquela figura.

Resolveu se comunicar com o humano estranho, com a certeza que o assustaria.

— Por que você está chorando, jovem?

O gótico levantou sua cabeça, que estava próxima chão, ainda chorando pelo fora que havia levado da Dona Morte. Quando viu que estava pra começar uma conversa com um fantasma, uma alma penada, seu semblante ficou levemente mais feliz. Tratar com um fantasma significava que novamente estava seguindo do gothic life style.

— Fui rejeitado pela minha musa inspiradora... A Dona Morte não quis me levar, disse que ainda não chegou a minha hora! Passei por tanta coisa para chegar até ela... Eu só queria ser como vocês!

A alminha penada começou a encarar Rogério. Não acreditou no que ouviu em um primeiro momento. Depois, processou a informação e entendeu que aquele rapaz jovem queria uma alma vagante e sentiu uma certa indignação. Como uma pessoa viva, saudável e com tanto para viver poderia querer abandonar o se corpo para abraçar e gélida e sem graça morte... após a vida? Resolveu conversar com o gótico.

— Olha, moço. Não sei muito bem o que você está pensando, mas se quer ser um fantasma, mais ou menos igual a mim, eu preciso dizer que a sua cabeça não anda no lugar certo — pausou — Estar nesse estado na verdade, não é nada bom. Pra começar, nem eu mesmo lembro como que morri. Hoje em dia é quase impossível eu interagir com alguém, e com razão, porquê quando se vê um fantasma é melhor sebo nas canelas do que papear! Mas imagine só, eu não me alimento mais, ou seja, não sinto mais o sabor de nada, não sinto mais cheiros, nem calor e nem frio, eu sou praticamente só uma consciência fantasmagórica falando com você. Ninguém mais visita o meu túmulo e hoje em dia eu só consigo ter lembranças do meu pós-morte. Essa é a “vida” que você quer?

Rogério estava escutando Penadinho atentamente, e já não tinha mais seu rosto grudado no chão em prantos. Sua maquiagem estilizada agora marcava suas bochechas no caminho em que as lágrimas mais grossas tinham escorrido. Ouvia a alma penada falar enquanto a brisa abafada batia em seu rosto. Não sabia dizer por quanto tempo havia chorada a negativa da Morte contra sua vida, mas, em sua frente, os primeiros raios de sol começavam a surgir. O sol raiava por entre nuvens, e a luz branda ia expulsando a penumbra da paisagem do cemitério, parece que de uma hora para outra o céu estava se pintando em cores quentes e vibrantes.

A brisa ficou um pouco mais forte, e o balançar dos galhos e das folhas no alto das árvores enchia o ambiente com sons naturais. O vento parecia incomodar e acordar as corujas, que agora começavam a fazer seu taciturno piado, o nascer do sol se misturava com as nuvenzinhas, que não atrapalhavam em nada, e ainda deixam tudo mais bonito.

O nascer do sol pegou o gótico desprevenido. Começou a se perguntar a quantos anos não admirava aquele fenômeno natural, a quantos anos, afinal, não via o sol nascer ou se pôr, completando um ciclo diário? As palavras da alminha penada agora rondavam sua mente e seu coração. Sabia que o fantasma podia ver tudo aquilo, mas já não era mais capaz de sentir nada daquilo que ele mesmo, vivo, ali, estava sentindo.

Isso, essa visão, parecia arte. Se sentiu culpado por achar aquilo lindo, já chegou a achar o afago e positividade de outras repulsivo, mas aquela visão o seduzia, absolutamente do nada a vida tinha algum sentido, é sério? Momentos como este que nos fazem lembrar o quanto é bom viver para sentir o que está ao nosso redor?

— Eu... Não sei o que dizer... — sua visão começava a ser ofuscada pelo sol — Por que esse sol está tão bonito hoje?

Penadinho sorriu e começou a tentar se lembrar como eram esses momentos quando ainda estava vivo, tentava puxar as lembranças em sua consciência, mas elas sempre eram muito nebulosas. Seus pensamentos foram interrompidos por uma vez feminina, que parecia ser quase acolhedora.

— Eu trago boas notícias, Rogério da Silva Reis. — Disse a Dona Morte chegando próximo dos dois com sua lista na mão e o relógio de pulso à mostra. — Agora sim, às 6:45 da manhã, chegou a sua hora!

Não era possível, não podia acreditar, Rogério empalideceu, e de repente, sua musa inspiradora se transformou em uma visão desesperadora. Olhou para o translúcido Penadinho, com a luz do sol passando por seu corpo fantasmagórico e se lembrou do discurso do pequeno fantasma. Sentiu seu correr explodir em desespero. Que terror! Não se pode morrer tão jovem! Não agora que havia lembrado que a vida até que pode ser bela. Ficou se perguntando quantas chances perderia de ter uma visão como aquele nascer do sol se morresse naquele momento, e, de repente, até havia esquecido que era gótico. Em segundos todos esses pensamentos se resumiram à: Rogério, ex-gótico, correndo loucamente, gritando, e com os braços para cima com medo da Morte.

A Dona Morte suspirou, e caminhou em direção ao escandaloso corredor, com uma carta de cansaço em mais um expediente de meio de semana que se iniciava, só teve energia para falar:

— Ai. Ainda vai ser numa dessas que eu vou me aposentar.

E lá se foi a Dona Morte, gentil e serena, um pouco aporrinhada, ser novamente “a indesejável”.


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Notas finais do capítulo

Um texto parido com muito muito sacrifício, mas também com muito amor. Resolvi fazer da Turma da Mônica, escolhendo um personagem que nem o Nyah tinha como sugestão para colocar: a Dona Morte. Essa historia é totalmente baseada em uma historinha chamada "Gótico... ou Estrambótico?", de um almanaque do Cebolinha dos anos 90. Para formar o gótico eu me inspirei numa música do Rogério Skylab (que dá nome ao gótico), chamada Funérea, que eu até recomendo ouvir na hora em que o personagem é introduzido.
Espero que você goste, minha camarada!



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