A Sétima Zona escrita por Isa Chaan


Capítulo 5
Encontro fatídico


Notas iniciais do capítulo

Olá, queridos leitores! Mais um capítulo para vocês, como prometido. Desejo uma ótima leitura, espero que gostem! A gente se vê nas notas finais ;D



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05.

Som de floresta noturna

O acampamento já estava montado quando o véu negro da noite recaiu sobre a floresta. Logo, não tardou para os animais noturnos tomarem a vez dos pássaros na orquestra inigualável da natureza.

A orla iluminada pela fogueira é tudo o que separa o mundo conhecido do oculto. Em contraste ao vibrante mosaico de cores e luz concedido pelo espetáculo diurno, as horas noturnas preferiam uma encenação muita mais sutil, mas não menos espantosa; um teatro de sombras. Silhuetas negras que recortam o céu também negro – só não mais escuro, graças à infinidade de estrelas que se apossaram por um cantinho de sua extensão a bilhões de anos atrás.

A escuridão ao redor se condensa de forma quase palpável, provocando calafrios na espinha. E quando até mesmo a lua já se retirara de seu encargo, o melhor a fazer é não se atormentar à procura de uma justificativa para cada vulto que aparenta rastejar no breu circundante. Desta forma, só tenho olhos para a luz quente alaranjada, que derrama um calor bem-vindo em minha pele. E com uma manta quente sobre os ombros, aconchego-me perto do fogo crepitante para melhor me aquecer.

Minha barriga está a roncar havia horas, mas não me atrevo a ceder à gula. Assim como a preocupação de conseguir mais comida cresce diante da constatação prévia da escassez de animais na floresta, a decisão de continuar com o racionamento torna-se cada vez mais certeira. Uma refeição por dia deve ser o bastante. Precisa ser. Pelo menos até que a deusa da caça me sorria e presenteie-me com presas bem gordas nos próximos dias.

Para amenizar a dor no estômago, procuro desviar a atenção, folheando meu pequeno caderno de capa de couro até a última página preenchida. Dentre os rabiscos e anotações – um compilado de informações dos mais variados temas e assuntos –, desenrolam-se desde páginas com inscrições antigas e artefatos históricos até desenhos de constelações e ervas medicinais. Agora, a última página está preenchida com o esboço incompleto de um animal excêntrico – que eu torço para encontrar novamente em minhas próximas incursões.

Bem quando resgatava da memória mais alguns detalhes para acrescentar ao desenho – como as asas ilusórias que vira tremeluzir magicamente à luz do sol – sinto o bracelete vibrar no pulso esquerdo.

De início, não me sobressalto, acostumada à ondulação espontânea do éter pela floresta, que criava variações no sensor a quase todo momento, entretanto, o vibrar insistente me obriga a relancear os olhos, de reflexo. Quando o faço, porém, meu sangue gela até os dedos dos pés, e apenas encaro, inerte, os números do visor aumentarem exponencialmente, ultrapassando as casas das dezenas, centenas, milhares… em uma velocidade tão exorbitante que os algarismos viram meros espectros, atingindo as medições mais altas do que julgava possível.

Até que para; os algarismos congelam em uma sequência numérica específica. Não porque a medição de éter houvesse sido finalmente concluída, mas porque atingira o limite máximo de detecção do aparelho.

999.999.999 p.e (partículas de éter)

Dentro de minha mente se desenrola um filme em branco, onde a incredulidade e o pânico são os principais protagonistas. Por sorte, meu corpo reage de imediato sem precisar de qualquer comando.

Acionadas pelo instinto de sobrevivência, minhas mãos atiram a manta grossa sobre a fogueira, sufocando as chamas até virarem brasas em instantes. A escuridão então toma conta, tão intensa que se meus sentidos não estivessem tão atentos e certos do que fazer, talvez não conseguisse entrar na barraca a tempo.

A magia de invisibilidade que reveste o tecido do abrigo é a única barreira que me protege do que quer que esteja a rondar pela mata – e rezo para que seja suficiente. Memórias recentes me contam o que o meu corpo, arrasado por violentos tremores que nada tinham a ver com o frio, já sabe. O ser alado que saíra do vulcão.

A criatura lendária tomara infortunadamente a mesma direção que a minha. E o mais provável: notara minha presença antes que eu sequer suspeitasse de sua própria.

Encolho-me num canto, preparando-me da melhor forma que posso, a adaga na mão, os ouvidos alertas. Não tenho dúvidas de que minha defesa é mais do que precária contra a ameaça lá fora, mas ao menos o cabo da arma sob meus dedos me transmite um pouco da segurança desejada.

O silêncio da noite é cortado por passos sussurrantes. Tão leves, que eu só devo ser capaz de escutá-los por prender a respiração; apesar de meu coração martelar no peito feito trovoadas estrondosas.

Só depois de alguns segundos de uma indecisão ferrenha – uma batalha entre o medo avassalador e a curiosidade fervilhante – que abro uma pequena fresta do zíper da barraca. Estreito os olhos, tentando adaptar a visão à parca luminosidade provinda do céu majoritariamente nublado. Um pouco além da fogueira apagada, vejo uma forma escura pequena e indefinida. Ela se aproxima, circulando a manta sobre os restos em brasa com passos de seda, e se senta um metro a frente tão logo me vê espiar.

Não me mexo. Reconheço o animal, é claro: é o misterioso gato selvagem de antes. Ele inclina a cabeça, tentando entender meu jogo. Você trouxe amigos, não é?, penso ironicamente, ao ver a sequência numérica estática ainda brilhar na tela do bracelete. Seja quem for ou forem, está aqui. Esperando que eu saia da toca.

Em outras circunstâncias, eu teria adorado encontrar o filhote novamente tão cedo, e assim ter a chance de estudar melhor seu comportamento. Mas agora, tudo o que mais desejo é que o felino volte de onde veio, para um lugar bem distante. Ou acabará por delatar minha posição a uma potencial ameaça, desconhecida e expectante, embrenhada nas camadas ocultas da noite, pronta para o ataque.

Os minutos parecem virar horas, enquanto nada, nem mesmo o ar, aparenta se mover. Todos resolveram participar da brincadeira do ‘perde quem atacar primeiro’, de forma que estou decidida a não ser a primeira a agir – apesar das minhas pernas gritarem com a imobilidade da posição por tempo demasiado.

Inesperadamente os números do medidor voltam a decair para o valor inicial, e assumo aliviada, que saíra vitoriosa. Por ora. Aguardo um pouco mais, antes de me assegurar que a barra está limpa e com relutância, saio para a friagem noturna.

O gato continua sentado, tranquilo e alheio como uma pedra, a alisar suas patas com a língua. Ao me ver sair, ele se levanta, parecendo animado com meu súbito movimento e se enrosca em meus pés, enquanto já estou catando todos os meus pertences e guardando-os em meu repositório. A área não é mais segura. O quê quer que se fora, há de voltar. E eu estarei bem longe daqui quando isto acontecer.

Com o arco e a aljava nas costas e preparada para partir, percebo que uma bola de pelos atrevida está disposta a me seguir por todo caminho, emaranhando-se em minhas pernas. A rápida demonstração de confiança me surpreende, e quase me desdobro em carícias ao animal diante da fofura do ato. Quase.

Num ímpeto, tomo o filhote nos braços, e com um luminus – esfera mágica de luz temporária – em mãos, parto em retirada a passos acelerados. Tenho pressa, mas faço o que posso para não deixar rastros; disposta a varar a noite se preciso para garantir um distanciamento seguro.

Não sei por quanto tempo caminhei por entre arbustos e silhuetas sombrias; percorrendo trilhas estreitas, descendo e subindo barrancos, até eu ouvir o primeiro uivo. No mesmo instante, o gato, quieto e sonolento em meu colo, ergue as orelhas e assume uma nova posição sobre meus ombros, enfurnando-se em meus cabelos. Não tardou muito para o segundo, terceiro e outros mais se juntarem à sinfonia. A sinfonia da caça.

Florestas temperadas... nada menos que o habitat propício para espécies de lobos cinzentos – principalmente Dhara, famosa por uma espécie em particular, de tamanho superior à média, e popularmente conhecida como lobo-gigante. Que brilhante ideia desmontar acampamento na hora preferida da caçada dos amigos lupinos. Para encargo de consciência, lembro-me que a alternativa – manter acampamento – também não era a mais indicada.

Materializo o mapa mágico às pressas e sob o halo pálido do luminus, que se desvanecia aos poucos, cinco círculos vermelhos apontam o perigo iminente. Respiro fundo, buscando a calma fria de um caçador em ação. E desato a correr, destemida como uma amazona; a concentração variando entre os obstáculos à frente e a força das pernas. É hora de colocar em prática os frutos de meus treinamentos extensivos com Jellal.

Eles chegam em pouco tempo.

Sinto a dor de pequenas garras afiadas na clavícula, o miado alto e constante em meus tímpanos. As sombras se aprofundam conforme a esfera de luz perde energia, mas consigo vislumbrar o movimento do lado direito, o farfalhar de folhas a algumas dezenas de metros. Mais um, da esquerda. Outro, vindo de trás. Visualizo mentalmente o cerco se fechando.

O resultado desta fuga não será bonito se eu permanecer no chão a apostar corrida com predadores quadrúpedes, famintos com a escassez de presas na floresta.

As árvores, cúmplices da emboscada, têm seus galhos fora de alcance e bloqueiam minha rota linear; a distância presa-predador diminuindo preocupantemente a cada desvio. Medindo minhas melhores opções, quase findo a perseguição para encarar a matilha de frente, quando percebo o relevo sob meus pés iniciar um declive suave. Talvez…

Atiro o luminus à frente, seu rastro de luz clareia o caminho momentaneamente; o suficiente para diagnosticar a área e memorizar a disposição das árvores. Como previra, no vislumbre proporcionado pelo feixe de luz, metros adiante, as trevas romperam a regularidade do terreno, indicando um declive mais acentuado. É a minha chance.

Em posse de outro luminus, já diminuindo a velocidade, levo meio segundo para atá-lo a uma flecha; um para encaixar a seta no arco; dois para ajustá-la à mira e um milésimo para abrir fogo. A seta dispara e atinge com precisão o tronco de um ulmeiro, perfurando alguns centímetros do casco nodoso.

Mas eu excedera o tempo limite.

Atrás de mim, um rosnado precede o ataque do primeiro predador, uma enormidade de músculos e garras alvejando o meu rosto. Reajo rapidamente, saltando para o lado enquanto o silvo de uma nova flecha corta o ar e… atinge o alvo errado. Perto demais; o arco não seria de grande ajuda.

O gato selvagem, seus pelos arrepiados com o susto, pula de meus ombros para a escuridão antes que eu possa impedir. O movimento desnorteia a atenção do grande lobo cinzento por um momento, como se sopesasse qual das presas seria a mais vantajosa. Não tenho a chance de aproveitar a distração, pois logo que deslizo a adaga da bainha para um corte rápido, mais dois lobos-gigantes chegam para amparar o irmão – as pelagens brancas riscadas de cinza e os olhos claros raivosos a faiscarem em meio a iluminação débil provinda do céu.

Não recuo, tentando demonstrar força e domínio perante à ameaça. Em resposta, eles me analisam, calculando o risco do ataque, mas logo parecem concluir unanimemente a enorme desvantagem do inimigo.

Aperto o cabo da arma em posição de defesa, o desespero começando a gotejar de meus poros. Se ao menos eu pudesse usar magia…

Nenhum dos lados adversários antecipa os próximos desdobramentos quando ganidos fortes interceptam a atmosfera carregada de tensão. Os lobos levantam as orelhas, hirtos ao reconhecerem o choramingo dos companheiros, enquanto eu me afasto discretamente pé ante pé. Ao atingir uma distância razoável, aproveito a desordem e arremeto em direção à árvore-alvo.

Nunca dê às costas a lobos, a instrução soa como piada depois de violada. E como esperado, acionados pelo movimento, os animais recobram o rearranjo do assalto e avançam ágeis em meu encalço, dispostos a levarem a janta para casa mesmo com a advertência de perigo soando próxima. O hálito quente de uma das feras chega a roçar minha perna, mas já estou saltando pela depressão do barranco, o braço erguido à procura da haste da seta. Ela ameaça estalar tão logo meus dedos a rodeiam, prestes a romper com o peso súbito.

Dois lobos derrapam antes da depressão, mas o terceiro é mais obstinado. Não tenho tempo para cravar a adaga na madeira acima da flecha; a potência de uma mandíbula raivosa atravessa minha bota direita fazendo-me ver estrelas. Reprimo um grito e a haste cede.

Nossos corpos caem e rolam ladeira abaixo, mas o animal já está seriamente ferido – meu peso caíra como chumbo sobre si na queda – e mal consegue contra-atacar quando enterro a lâmina da arma em seu torso. O sangue verte assim que a arranco do couro e o lobo se prostra, finalmente inerte depois de um último expiro.

O fim do confronto não me causa alívio; respiro ruidosamente, a dor fazendo-se presente a cada resfolegar. Meu corpo inteiro reclama com os novos ferimentos adquiridos, mas a ardência na panturrilha é, de longe, a mais agonizante; tornando o ato de levantar, praticamente insuportável. Apavoro-me perante a ideia de que o resto da matilha resolva conferir o desfecho horrendo daquele embate. Em vez disto, os ganidos se afastam até extinguirem-se por completo. Um alerta de mau agouro, confirmado por algarismos enlouquecidos a me assombrarem pela segunda vez em uma noite.

Acalme-se, respire. Apoio-me em uma árvore, tentando me erguer. Não dá. Contorço o rosto de dor. Pense, Lucy. Pense.

De costas para o tronco, saco o arco e fico em posição. Esperando, esperando. O medidor atinge o limite mais uma vez – meus olhos esquadrinham a mata por todos os lados. Nenhum ruído me norteia, mas não afrouxo a corda.

Porque eu simplesmente sei… está aqui, está aqui. E a resposta não tarda.

Logo a frente, um fruto cai da árvore que me resguarda – como uma bomba a dispersar o silêncio – e o choque da realidade me incorpora, paralisa meus músculos, tornando-os pesados feito rocha.

Como todo bom caçador, os animais predadores também aprenderam a elaborar tipos específicos de estratégias predatórias. – A voz de Jellal ressoa, calma em meio aos pensamentos turbulentos, verbalizando as lições do dia. – Seja em grupo ou solo, elas se adaptam ao tipo de presa. Força e velocidade normalmente são as características mais importantes e essenciais. Mas por vezes, o mimetismo e o stalking são as mais eficazes.

— Stalking? – eu perguntara, concentrada no alvo pregado ao muro, enquanto alinhava a apontaria do arco.

— A técnica de rondar a presa sorrateiramente até a hora do bote. – respondera ele aprumado ao meu lado, no mesmo momento em que espalmava certeiramente o mosquito que o infernizava há algum tempo. A palavra bote não poderia ser melhor ilustrada ao infeliz inseto.

E eu nunca compreendera tão bem a expressão stalking ou o sentimento de uma presa prestes a levar o bote, quanto ao erguer o olhar relutantemente para a copa da árvore acima e encontrar olhos sobrenaturais a refletirem o meu pânico.

Verdes, luminosos e aterradores.


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Notas finais do capítulo

Hoho parei numa parte boa né? Quem será que a Lucy encontrou? Ou melhor, que encontrou a Lucy? Será que ela se encrencou um pouquinho ou muito? Aguardem até o próximo capítulo e descubram... Enquanto isso, contem-me suas teorias nos comentários, porque a má sorte de Lucy está só começando ;)
Até o próximo capítulo, queridos leitores!



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