I - Herdeira da Noite: Êxodo escrita por Elizabeth Charpentier
Enquanto terminava de se arrumar em frente ao pequeno espelho do banheiro compartilhado, ouviu seu nome sendo chamado no andar de baixo com uma certa irritação e insistência. Amarrou seus cabelos ruivos em um rabo de cavalo alto, soltando alguns fios ao redor de seu rosto para emoldura-lo e desceu as escadas rapidamente, dando de cara com a irmã Sophie a esperando no último degrau.
— Nyssa, pensei que nunca mais sairia da cama. — repreendeu-a.
— Desculpe, não estou conseguindo dormir muito bem nas últimas noites e acabei acordando um pouco mais tarde. — confessou, postando-se ao lado da irmã enquanto andavam em direção a cozinha em passos calmos.
— Você precisa de acalmar, querida. Os próximos dias poderão ser bem conturbados, o ideal é sair com a cabeça limpa daqui e descansada.
— Tem razão, mas minha mente adora não fazer o que eu quero. — brincou.
— É natural do ser humano, mas você precisa aprender a lidar com ela antes que acabe tomando controle de suas decisões.
Chegando na espaçosa cozinha, Nyssa e Sophie encontraram as demais garotas conversando enquanto ajeitavam tudo o que era preciso para o café da manhã, andando de um lado para outro com diversos utensílios no colo. A ruiva andou ao encontro de Melissa que estava coando o café e se apoiou na bancada.
— Animada para seu aniversário de dezoito anos? — perguntou quando reparou a presença da ruiva.
— Sinceramente? Eu queria que demorasse um pouco mais. — disse um pouco cabisbaixa. — Não quero ter que sair daqui e me desligar de vocês.
Eram um pequeno orfanato nos subúrbios de Sioux Falls, em Dakota do Sul. A Igreja local acolhia aqueles que eram menores de idade e que por algum motivo não estavam sob a guarda de qualquer responsável legal — em linhas gerais, órfãos. A cidade os ajudava com doações e caridade enquanto as freiras cuidavam de todos e de sua educação, na medida do possível. Por mais que não tivessem qualquer ligação sanguínea, consideravam-se como uma grande e bagunçada família.
Nyssa não possuía qualquer memória ou documento que indicasse quem seriam seus pais biológicos ou de qual cidade veio. Irmã Sophie a encontrou na beira da estrada, desnorteada e sem lembranças, sem qualquer documento ou foto a acompanhando. Estimaram que poderia ter cerca de doze anos por conta da sua estatura física, mas ninguém sabe como aconteceu, como chegou até lá e desde o acolhimento, há quase seis anos, ninguém buscou por ela ou deu como desaparecida.
— Heei, terra chamando Nyssa. — Melissa a chamou balançando as mãos na frente da garota que se encontrava com o olhar fixo na chaleira. — Você está um pouco longe nos últimos dias, está tudo bem? — olhou-a preocupada, aproximando-se um pouco mais.
— Não se preocupe comigo, eu apenas estou nervosa sobre como serão os próximos dias.
Respirou fundo e olhou em seus olhos. Queria dizer a ela o real motivo por estar tão nervosa com sua saída do orfanato, mas não podia. Aliás, quem acreditaria ou não a chamaria de louca por querer ir em busca de dois estranhos que salvaram a sua vida anos atrás? Ter como um dos objetivos de vida ir em busca de duas pessoas que provavelmente não se lembravam de sua existência era no mínimo problemático.
— Estou bem. — disse por fim. — Vamos logo, as meninas estão esperando.
Sentaram-se à mesa e começaram a comer o simples banquete que haviam preparado. Todos estavam extremamente simpáticos e receptivos naquele dia enquanto tomavam o café da manhã juntas, parabenizando-a por enfim estar saindo do orfanato e seguir seus próximos passos rumo ao futuro, como elas mesmo disseram.
Dali dois dias completaria dezoito anos; o dia em que foi encontrada na beira da estrada e escolhido como a comemoração de seus anos. E como era costume e regra da Igreja, quando o órgão ganha maturidade e idade suficiente – e infelizmente nem sempre andavam juntos – eles resolveram "entregá-los ao mundo".
Nyssa já possuía um plano e um lugar para ficar. Possuía uma proposta de emprego como garçonete em uma das lanchonetes perto da rodovia e, se tudo desse certo, seria suficiente para pagar o aluguel de uma casinha barata em um bairro afastado de Sioux Falls. Infelizmente sem qualquer experiência ou formação além do Ensino Médio não conseguiria nada melhor por enquanto, mas seria o suficiente para iniciar as suas buscas.
(...)
— Você promete que não vai sumir? — Melissa sussurrou entre as cobertas, com receio de que as outras acordassem.
— É claro que não vou, não conseguiria deixar você para trás como num passe de mágica. — entrelaçou suas mãos e trouxe até o peito, como se estivesse a abraçando. — Podemos conversar por e-mail, ligação, você poderá ir até a lanchonete de vez em quando se tudo der certo... Temos jeitos de fazer dar certo.
Melissa sorriu, sentindo o calor em suas mãos. Desde que Nyssa havia chegado ao orfanato, as duas criaram uma ligação indiscutível e se tornaram amigas e confidentes desde o primeiro momento. Por mais que Nyssa tivesse um bom relacionamento com os outros órfãos, nada se comparava a amizade das duas, e esse era um dos motivos por ela sentir tanto pesar em ir embora, mas sabia que não era para sempre. Melissa era apenas um ano mais nova do que a ruiva e logo também poderia se juntar a ela.
— Promete também que contará tudo para mim, até se acontecer alguma coisa estranha? — Melissa a olhou profundamente e séria, como se entendesse que algo a mais aconteceria com a saída de Nyssa e por mais que tivesse se surpreendido com a pergunta, Nyssa assentiu enquanto sorria. Entendia a sua preocupação e não daria muitas brechas para preocupa-la sem motivos.
— Isso me deixa satisfeita, por enquanto. — frisou. — Eu te amo. — sussurrou.
— Eu também te amo.
(...)
Havia chegado o dia de sua saída. Todas as Irmãs e órfãos estavam no hall de entrada para se despedirem, desejando sorte em sua nova vida enquanto a abraçava. Depois de alguns minutos de abraços e choros, Nyssa foi em direção aos portões da Igreja. Olhou para trás e suspirou, encarando todas acenando para ela. Andou em passos calmos, segurando firmemente a alça de sua bolsa que levava todos os seus pertences, e saiu em direção à rua.
Andando para seu novo futuro, não podia deixar de lembrar o que a motivaria a partir dali e tudo o que acontecera.
Há cerca de três anos o Padre regente foi assassinado em uma espécie de ritual macabro. Ninguém soube o que aconteceu, quem fez isso ou porquê, e todos ficaram assustados com o que houve, por óbvio. Contudo, dois agentes chegaram até a Igreja pouco tempo depois perguntando sobre o suposto homicídio e investigando o local. Eles estavam interessados demais e pareciam saber mais do que a polícia ou qualquer outra pessoa ali, mas não falaram nada sobre o ocorrido.
Dois dias depois alguém ateou fogo em uma das alas do orfanato, especificamente onde Nyssa dormia. Acordou com o fogo já perto de sua cama, não deixando qualquer saída. Mesmo com todo o pavor daquele momento, lembrava claramente de ter visto uma silhueta entre o fogo parada, como se estivesse encarando a garota, mas não teve tempo suficiente para que pudesse pensar direito ou conseguisse ver alguma coisa além da sombra, já que um dos irmãos arrombou a porta do quarto e a tirou dali, salvando sua vida.
Ela lembra muito bem de seus nomes. Alaric e Michael Lockwood. Um nome diferente e rebuscado para as pessoas que moravam naquela cidade, mas bonito. Na noite em que houve o incêndio eles gritavam sobre coisas estranhas como demônios, fantasmas e ataques. Aquilo tudo parecia estranho para ela, mas desde aquele dia havia decidido que iria em busca de saber sobre aquelas coisas – afinal, quase havia sido morta por uma, aparentemente – e achar os irmãos Lockwood novamente.
Qualquer pessoa a chamaria de louca por acreditar naquilo que eles diziam ou ainda mais por querer ir atrás de duas pessoas desconhecidas, mas precisava daquilo, precisava entender o que havia acontecido e porque justamente onde morava.
Desde então reservou parte do seu tempo para ler diversos livros, artigos e qualquer fonte que existisse sobre aqueles seres sobrenaturais. Por sorte, a biblioteca da Igreja prezava pelo conhecimento – mesmo que um pouco diverso e contraditório com aquilo que pregava – e possuía diversos livros sobre o assunto. Cada fonte, cada relato, imagem ou símbolo indicavam a ela que tais coisas ou seres realmente poderiam existir. Estudou-os durante estes três anos afincos e estava convicta de que precisava ir atrás daqueles dois homens.
A coisa mais complicada do seu plano é de que não sabia absolutamente nada sobre eles além de seus nomes – isso considerando que fossem seus nomes reais. Havia uma pequena e mínima chance de morarem em Sioux Falls, mas também havia a chance de estarem apenas de passagem, pois nunca mais os viu pela cidade, porém isto não iria desanimá-la em achá-los.
Voltou a prestar atenção no caminho, segurando-se firmemente em suas esperanças de que tudo daria certo. Seu primeiro destino seria o seu novo emprego, queria ir para lá o quanto antes para garantir a sua vaga. Não era muito longe da Igreja e por isso não demorou mais do que quinze minutos para passar pelas portas da lanchonete.
— Olá! — cumprimentou uma das garçonetes que estava no balcão. — Sou a nova garçonete, Nyssa, e gostaria de saber se está tudo certo e quando posso começar a trabalhar.
— Ah sim, Christine avisou que você poderia vir hoje. Espere um pouco aqui. — apontou para uma das cadeiras do balcão e se dirigiu a uma fenda na parede que dava até a cozinha, conversando com alguém ali. Minutos depois uma outra mulher andou até o balcão sorrindo em sua direção.
— Olá, sou Christine, serei sua chefe enquanto você trabalhar aqui. — estendeu sua mão em direção a ruiva, cumprimentando-a. — Soube que saiu do orfanato hoje... Gostaria de começar a trabalhar quando? — olhou sugestiva.
— O quanto antes melhor. Se quiser, posso começar agora mesmo.
— Tudo bem! Venha comigo. — Christine andou até uma porta no canto esquerdo e Nyssa a seguiu.
Ela abriu uma porta nos fundos da lanchonete e andou pelo estreito corredor até alguns armários de metal. Nyssa conseguia ouvir toda a agitação da cozinha ao seu lado, bem como o vapor quente, então sabia que não estava muito longe dela. Christine abriu um armário e deu a pequena chave do cadeado.
— Aqui será o seu armário, poderá guardar suas coisas aqui juntamente com seu uniforme e objetos pessoais. — apontou para o espaço vazio e pegou um avental azul que parecia dar em seus joelhos. — Como você veio direto para cá, poderá apenas usá-lo, mas nos outros dias peço que use também uma camiseta azul e um jeans preto para ficar padrão com as outras meninas. Você ficará encarregada de anotar e entregar os pedidos, tanto no balcão quanto nas mesas, tudo bem? Qualquer dúvida que tenha as outras meninas podem te ajudar. — suspirou. — Vou deixar você se arrumar em privacidade, te encontro lá fora. — informou e logo saiu do pequeno espaço.
Nyssa jogou sua mochila no armário designado e fechou o cadeado, deixando a chave no bolso do jeans para não perdê-la. Amarrou seu cabelo até o topo de sua cabeça em um rabo de cavalo alto e ajeitou o avental de seu corpo, voltando para o interior da lanchonete.
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