Meros Encantos Mortais escrita por LittleR


Capítulo 9
Magia Baixa


Notas iniciais do capítulo

"Houve um tempo em que eu era um camundongo. Não mais."
— Kendare Blake, Um Trono Negro

Boa leitura!



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VII.

 

Como as outras onze garotas, eu rapidamente me enfiei dentro de uma das cabines e arranquei aquela camisola. Era engraçado como nem o quarto nem a sala de banho eram frias, mesmo que estivéssemos no inverno. Em casa, para tomarmos banho correndo o risco de morrermos congelados, nós adiávamos essa atividade o máximo que pudéssemos.

Enquanto esfregava sabonete com toda a força que podia através de meus braços e cabelos, eu me lembrei de meus irmãos. Longe de minhas vistas, eu não duvidava de Caleb ou Ginny passem meses sem tomar banho. Mas Ana os colocaria no lugar. Eu havia deixado dinheiro o suficiente para que passassem por essa estação e a próxima caso fossem econômicos, o que com certeza era o caso de Ana.

Mas e depois? Eu ainda os veria alguma vez? Eu poderia voltar para eles, mesmo se sobrevivesse ao teste? Será que eles pensariam que eu os havia deixado, como suas mães e todo o resto?

Assim que terminei de me lavar, peguei uma das vestimentas da cabine e me enfiei nela. Era um vestido de tafetá e musselina em um azul empoeirado, simples e leve, apertado na cintura, com mangas longas esvoaçantes e gola colete. Peguei também um par das botas de couro que encontrei no armário ao lado e as coloquei. Eu sempre tive pés terrivelmente pequenos, como os da minha mãe.

Minhas mãos também são bastante parecidas com as dela, assim como quase todo o resto de mim. Exceto pelos cabelos. Mamãe tinha madeixas de um laranja vibrante, com cachos cheios como gavinhas. Os meus são de um negro opaco, secos e escorridos demais. Deduzo que são a única herança que meu pai me deixou, mas não tenho como ter certeza. Mamãe dizia que herdei os olhos castanhos da minha avó. Meu péssimo humor, esse eu adquiri com Arthur.

Soprei esses pensamentos de minha mente e me juntei ao restante do meu grupo que decidira dar uma volta pelo Palácio. Elas nomearam como líder da excursão uma garota de quadril largo, rosto redondo e muito vermelho, um cabelo castanho bem próximo do loiro, olhos doces, voz fina. Ela tinha um jeito tímido de falar e gesticular, mas parecia entusiasmada em nos guiar através da extensão absurdamente luxuosa da construção.

— Eu estive aqui quando criança — explicou ela, o que justificou ter sido a escolhida. — Passei só algumas semanas, mas me lembro bem. O castelo é dividido em quatro alas, a norte, sul, leste e oeste.

Eu tentei não parecer absurdamente encantada com a arquitetura do palácio. Com cada longo hall e cada vidraça, com cada curva dourada nos desenhos dos corrimões, nas arcadas dos salões, e nas tapeçarias escarlates. Eu tentei e falhei miseravelmente. Minha boca continuou se abrindo e meus olhos continuaram se erguendo, ficaram presos no teto, dezenas de metros acima de mim, entalhado com esmero e desenhos de nuvens, de raízes que se estendiam pelas paredes, de anjos, do sol e da lua.

E quando me cansei deles, reparei nos guardas. Eles estavam por toda parte, vestindo as cores do Jardim Oriental, segurando alabardas e usando armadura. São homens normais, não foram modificados com magia como os Recrutadores. Mesmo assim, parecem estátuas de ferro com vida. Não falam nada, não se movem. Mas sei que se alguma de nós fizer qualquer coisa fora do normal, eles não hesitarão em nos matar.

Fiquei ali por muito tempo, não prestei atenção em Yelena, preferi ficar com as chamas das velas nos lustres, bruxuleando. Dourado, escarlate e laranja, ouro na estrutura da luminária, prata e cristal reluzente. Marrom no carvalho dos móveis, óleo nas tintas das pinturas e prata nos bustos e estátuas de homens que não conheço e, portanto, não ligo.

Mesmo se eu vivesse cem vidas, mesmo se eu já nascesse rica em cada uma delas, eu não conseguiria pagar por tanta riqueza. Eu fui consumida por ela e, por um instante, senti o mal estar de não ter Caleb ou Gilly ali, eles adorariam tudo aqui. Eles adoram coisas nobres e bonitas.

Eu me retirei da decoração por um instante e conjecturei perguntar a Yelena porque o castelo era tão quente em pleno inverno, mas então fomos barradas por um segundo grupo de garotas. Esse bem menor, havia apenas quatro delas. Uma moça de cabelos amarelos, usando um vestido gola alta elegante e um colar de rubis mais bem produzindo que minha própria vida, permaneceu de pé diante de Yelena. Os ombros eretos, queixo erguido.

— Yelena Huston — saudou a garota loira. Os cabelos muito curtos oscilando quando uma brisa invernal passou por eles. — Que surpresa! Vejo que continua humilde, andando com a plebe. Eu soube que despertou uma rosa... Que bom. — Soltou um som seco nada gentil pela garganta. — Bem, se treinar bastante, pode compensar o fato de não ter uma Marca melhor.

Uma risadinha estúpida ecoou do grupo que a acompanhava, como se todas ali compartilhassem algum tipo de piada interna. Alguma coisa grunhiu dentro de mim e, quanto eu fingi não saber o que era, comprimi o maxilar para conter a raiva.

— Frieda. — Yelena se acanhou. — É-É bom ver você de novo. Eu e as meninas temos que...

— Por que não me apresenta a elas? Ou está com vergonha de mim, prima?

Yelena se comprimiu ainda mais, tentando esconder-se em si mesma, e lançou uma olhadela em nossa direção. Eu sei que ela queria encontrar um jeito de se enfiar debaixo da terra, mas não dá, né? Eu conheço bem a sensação.

— E-Essa é Frieda Amorini, filha mais velha do lorde de Saltori, minha prima em segundo grau e...

— Se ela é da sua família, Santo Inverno, eu nem quero ver seus inimigos. — Peguei-me falando. Não foi proposital. Quando percebi, já tinha dito. Arregalei os olhos e todos os rostos se viraram para mim, uns com um olhar surpreso, outros com um olhar animado e, por último, Frieda com as sobrancelhas franzidas, o que não combinava muito com seu rosto de ossos suaves.

— O que disse?

Eu me vi tentada a repetir.

— E-Eu não disse nada, milady.

— Então agora você quer bancar a bobinha comigo? — Ela deu um passo em minha direção. Eu me xinguei mentalmente. Yelena tentou concertar as coisas.

— Prima, nós temos que...

— Acho que me entendeu errado, milady — continuei. Não tenho porque me sentir inferior. Repeti. Repeti. Estava difícil acreditar. — Eu quis dizer que não disse nada além da verdade.

O rosto tremendamente bonito e bem cuidado de Frieda se contorceu e reconheci o nojo em seus olhos.

— Quem você pensa que é? Eu sou a filha de...

— Eu não ligo pra quem você diz ser — interrompi-a, mas era mentira. Eu sabia que estava cavando minha cova. — Aqui somos todas a mesma coisa: marionetes no show do Duque. E uma vez que a senhorita está no palco junto comigo e não na plateia, eu não irei performar nenhum espetáculo para você.

Sirena provavelmente me daria uma chicotada bem no meio da cara se me ouvisse falar assim e fiz disso uma nota mental para aprender a ser mais contida, mas não é culpa minha. Ninguém me ensinou a ficar quieta, ninguém me ensinou a não retrucar ou ter um filtro de situações. Os olhos de Frieda, muito mais alta e elegante que eu, adquiriram uma coloração bem próxima do dourado. Algum instinto de sobrevivência em minha mente foi alertado, um de meus pés foi para trás. Yelena ao meu lado resfolegou em pânico.

— Qual o seu nome? — perguntou Frieda, entre os dentes e muito lentamente, o que não ajudou a me acalmar.

— Por que quer saber? — Engoli a batida desajeitada que meu coração deu. — Olhe, se nos dá licença, nós...

— Seu nome, sua plebeia ridícula! — Ela ergueu a voz, os olhos dourados brilhando.

Meu corpo inteiro relaxou quando alguma coisa, alguma energia que eu não reconhecia o invadiu. Tinha o cheiro ferrenho de sangue e era quente, como ser mergulhada em uma banheira até que sua cabeça submerja com seus olhos, sua boca e seus ouvidos. Então, você é só um corpo à deriva no meio de uma névoa sem começo e nem fim, flutuando nessa coisa. E que quer que essa coisa fosse, tirou-me do comando de meu próprio corpo.

— Katherin Landford — respondi contra a minha vontade, meus lábios se movendo sem que eu desse a ordem.

Um sorriso cruel se esticou nos lábios de Frieda e eu quis gritar. E gritei realmente. Não com os lábios. Estava gritando, em silêncio.

— Agora se ajoelhe e beije meus pés.

Yelena levou à mão a boca, desesperada.

— Frieda, deixe ela...

— Ajoelhe-se agora e beije meus pés, sua imunda!

Eu queria xingá-la. Eu queria socá-la bem no meio daquele nariz perfeito e daqueles olhos dourados até sentir o sangue dela nas mãos. Eu queria me socar também e arrancar meus próprios cabelos por ser tão estúpida. Por demorar tanto até eu perceber que Frieda era uma Marcada com o coração, o que significava que a magia dava a ela autoridade sobre os seres vivos.

Mas era tarde agora e meu corpo simplesmente começou a obedecê-la. Tentei resistir. Tentei fechar meus olhos e invocar aquele poder ancestral maldito que me colocou nessa situação em primeiro lugar, mas ele não respondeu. Ele me deixou órfã, como todos os outros.

— Ora, Katherin, você está bem? — Um par de mãos suaves pousou sobre meus ombros. As garotas ao meu redor prenderam as respirações e vi os pés de Frieda se afastarem. — Que garota difícil, eu estive procurando por você a manhã inteira.

Ergui as vistas e encarei, com surpresa, os olhos cremosos do irmão do Duque. Bem, ele havia chamado o Duque de irmão. Seu nome era Yan, se me lembro bem. O choque de sua súbita aparição trouxe meu corpo de volta para mim. Pisquei em confusão ao encará-lo.

— Milorde — disse Frieda, em uma reverência elegante. Sua voz numa cadência doce que me fez ter vontade de vomitar.

— Senhoras, imagino que estejam tendo um momento de interação para se conhecerem, mas me permitam roubar Katherin por alguns instantes — ele disse, cortês, um sorriso iluminando seu rosto. Então, virou-se para Yelena e as outras. — Devem estar indo encontrar Aleg no pátio, certo? Darin, pode acompanha-las, pra que elas não se percam?

Notei, então, que o mesmo homem baixo e emburrado da primeira vez em que vi o Duque e lorde Yan também estava ali. Ele soltou um suspiro pesado e começou a caminhar.

— Sigam-me.

Yelena e as outras fizeram uma reverência a Yan e seguiram com Darin. Antes de sumir nos corredores da mansão, ela me lançou um olhar. Acho que estava agradecendo, pela forma como seus lábios se esticaram e suas sobrancelhas suavizaram. Mas não tenho como ter certeza. Eu sorri de volta e acenei.

— Muito bem, vamos então, senhorita. — Yan estendeu o braço para mim e eu ainda estava confusa, mas aceitei. — Senhorita Amorini, até mais ver.

Yan fez um aceno de cabeça para as outras, sempre educado e cortês. Elas retribuíram, e então, nós nos viramos e ele me guiou pelo palácio, como se soubéssemos exatamente o que estávamos fazendo. Como se tivéssemos mesmo combinado. De costas, confusa e grata, senti os olhos flamejantes de Frieda sobre mim. Mas agora eu estava longe demais de seu alcance.


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Notas finais do capítulo

Notas para mim mesma: Fushi supremacy!!

Ate mais!



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