Meros Encantos Mortais escrita por LittleR


Capítulo 10
Pequenos Feitiços


Notas iniciais do capítulo

"Alguns podem vê-lo como uma bebida forte, que queima a garganta, mas, ainda assim, revigorante. Você, talvez, peça licença para discordar. Desde que seja um pedido, ele não se importa nem um pouco."
— Holly Black, Como o Rei de Elfhame Aprendeu a Odiar Histórias

Boa leitura!



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VIII.

 

Eu estava caminhando pelo palácio há quase dez minutos com um homem que só vi uma vez, com quem não troquei uma única palavra e que simplesmente acabara de me salvar das garras de Frieda. Dessa vez, eu não estava mais presa aos candelabros e à decoração do castelo. Dessa vez, eu estava surpresa. E confusa.

— Milorde, hm... — comecei, meio incerta do que dizer. Meu braço atrelado ao braço de Yan formigava. — Eu... obrigada?

Ele me olhou de esguelha. Sobrancelhas arqueadas, olhos cintilantes. Yan tinha um rosto fino e nobre, cílios dourados. Captei uma suave semelhança de suas formas com as do Duque, mas, ao contrário do irmão, tudo em sua expressão era significantemente mais convidativo.

— Pelo que exatamente está me agradecendo?

Eu esbocei um sorrisinho sem graça. Eu não tenho nenhum motivo em especial para gostar deste homem, mas considero nesse instante que muito menos tenho qualquer motivo especial para desgostar dele. Exceto talvez ser irmão de Ignir.

— Talvez o senhor não tenha percebido, mas acabou de salvar minha pele.

Lorde Yan jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada pomposa.

— Eu imaginei que sim. As senhoritas filhas da elite normalmente não jogam limpo com garotas... hm...

— Pobres? Plebeias? Ralé? — insinuei, erguendo as sobrancelhas em desafio.

— Bem, eu não usaria exatamente essas palavras. Mas sim.

Eu me permitir rir um pouco. A luz do sol deslizou por meu rosto e pelos cantos dos meus olhos quando passamos pela ponte que ligava a ala leste do castelo à ala sul. E, de repente, me arrependi por não ter prestado atenção ao que Yelena estava ensinando sobre esse lugar.

— Mas você não se deixa intimidar fácil, aparentemente, Katherin  — continuou o lorde.

Eu balancei a cabeça.

— Muito pelo contrário, eu me intimido bem rápido. Acontece que eu sou boa em mascarar isso. Anos de experiência, acho.

Nós passamos por um dos salões ostensivos da ala sul e havia um bando de garotas reunidas, sentadas nos sofás em frente à uma tutora que carregava o broche do Círculo da Primavera. Lembrei-me de Alegreya e o que eu deveria estar fazendo agora mesmo, mas Yan parou, cumprimentou as garotas e elas se curvaram para eles, atenciosas e respeitosas.

Reconheci a cabeleira dourada e trançada de Illana entre elas. Ela tinha os olhos um pouco surpresos e eu não sabia bem o que diria a ela mais tarde, quando nos sentássemos para conversar sobre isso. Pensei em me mover até minha amiga, mas então, Yan estava me levando de novo pelo palácio.

— Eu fico feliz de saber então que você não é totalmente imune aos encantos da corte — ele disse, retomando o tópico da conversa anterior, e eu levei um minuto para lembrar do que estávamos falando.

Ah! Eu lembrei. E quase soltei uma risada bem pouco elegante.

— De onde tirou que eu era? — perguntei. E me dei conta de que estava à vontade demais ao lado deste homem.

— São suas sobrancelhas franzidas cada vez que olha pra nós.

— Eu não... — Fiquei nervosa. Limpei a garganta. Tentei relaxar. — Eu não acho que tivemos interações o suficiente para que possa apontar isso com tanta firmeza, milorde.

— Por favor, me chame de Yan. E não precisamos de grandes interações pra eu saber. Basta ver o jeito como falou com meu irmão. Seus olhos queimavam como se o odiasse.

Minha mente voltou para a noite em que falei com o Duque pela primeira vez. Sim, eu estava com bastante raiva naquele dia. Parte de mim... a quem estou tentando enganar. Eu. Eu, inteira, ainda estou com raiva. Mas...

— Eu... passei essa impressão?

— Sim! E justo no primeiro olhar.

Mas não era pra deixar tão explícito.

— Acho que foi por isso que gostei de você desde aquele instante — acrescentou ele, brilhando. — Pessoas autênticas me atraem mais que... você sabe...

Eu me arrisquei:

— A cortesia forçada das garotas nobres?

Yan riu, movendo os ombros, uma risada que soou mais espontânea do que as outras que ele havia dado. Ele brilhava. Ele quase parecia resplandecer e eu simplesmente parei de prestar atenção aonde estávamos indo. Ou, pelo menos, até chegarmos diante daquela porta onde paramos, em uma das alas mais desertas da parte sul.

Yan empurrou um gigantesco portão de madeira de mogno, talhado com figuras de elfos, faunos e fadas e ele se abriu com um rangido fino das velhas dobradiças. Meus olhos se encheram da vasta sala com piso espelhado, paredes brancas e azuis. Flores por toda parte, trepadeiras nas pilastras, rosas se enrolando nos lustres.

Reparei nos três pianos de calda do salão. Um negro, um branco e um marrom. Todos devidamente lustrados e limpos. Assim como os inúmeros outros instrumentos que também decoravam a câmara, violinos, violoncelos, harpas, flautas, trombones, uma parede inteira só deles, só de música suspensa, parada, esperando. Ao meu lado, Yan sussurrou:

— Como imaginei, eu gosto do seu humor.

— Que lugar é esse? — perguntei, atordoada.

Ele me puxou até o centro do cômodo e eu me deixei levar como uma boneca de pano, maravilhada demais para oferecer o mínimo de resistência.

— Uma das minhas salas favoritas do castelo. A Sala de Música.

Minha boca estava aberta. O ar foi roubado dos meus pulmões e do meu diafragma e minhas costelas foram preenchidas pela majestade de cada enfeite em dourado e marfim. Eu não conseguia absorver detalhes rápido o suficiente.

— É tão... lindo — balbuciei.

— Você toca?

Yan caminhou para o piano branco, seus passos ecoando no salão que foi provavelmente projetado para potencializar sons. Observei-o se afastar, cada movimento despojado e relaxado como se ele não tivesse que carregar o mundo dos ombros. Como se ele não ligasse mesmo pro mundo ou qualquer bobagem desnecessária. Eu ri um pouco, meio sem graça, meio encorajada por minhas próprias presunções a respeito de um homem que acabei de conhecer.

— Não — respondi. — Com certeza não.

— Então, eu a ensinarei. Sente-se aqui.

— Milorde, eu...

— Yan. — corrigiu, e parecia determinado. Não na voz, na expressão, sobrancelhas firmes. Os olhos dele simplesmente cintilavam, e isso era realmente lindo e assustador. — Vamos, as teclas não vão mordê-la. Ignir a morderia e Frieda a morderia, mas você não hesitou em desafiá-los, porque está com medo de um piano?

Eu não sabia porque esse homem me tinha em tão alta conta. Talvez eu seja exótica para ele, uma pobretona que ocorreu de falar demais. Nada diferente, exatamente como as outras cinco dezenas de garotas que foram arrastadas para esse lugar, mas eu não queria pensar nisso, então suspirei e me rendi. Sentei-me ao lado de Yan no banco do piano. Ele tinha dedos muito ágeis sobre as teclas e me disse exatamente o que fazer, quando fazer. E foi paciente com minha total falta de habilidade.

Não sei quanto tempo desperdiçamos ali. Sei que nossa música ecoou pela sala como se estivesse viva. Dançou pelas pilastras, acariciou as rosas, beijou cada luminária em cores mornas da sala e esparramou-se na opala do piso. Como se pulsasse em notas musicais e respirasse, eu as observei em êxtase pelo quarto, imaginando que se eu estendesse a mão, poderia senti-las nas pontas dos dedos. E se esticasse a língua, saberia se são salgadas ou doces.

— Esse castelo é antigo — disse Yan, as mãos ainda dando formas às notas. — Há mais espíritos aqui do que tijolos nas paredes. São eles que mantém a magia fluindo por esse lugar. Nas músicas, nas pinturas, nos jardins...

— Isso soa lindo... e assustador, claro. — Encolhi-me. — É por isso que não é frio aqui, mesmo se estamos inverno?

— Sim — ele sorriu de um jeito que me fez sentir inteligente por fazer essa pergunta óbvia. — Há muitos lugares fantásticos nesse castelo, mas há também lugares que devorariam você. Eu vivo aqui desde que nasci e não arriscaria pôr os pés em alguns cômodos.

— Você atiçou minha curiosidade. Quais cômodos?

Yan pensou, a testa se enrugando e as pupilas crescendo, desfocando. Só depois de um minuto, ele respondeu:

— O Jardim dos Corvos. Sob nenhuma hipótese entre lá. É o núcleo da magia desse castelo e quem entra, muito, muito, muito raramente volta vivo.

Um arrepio correu por minha espinha. Quase me perdi no ritmo da música.

— Até... até o Duque?

As pupilas de Yan reduziram de novo, focadas, e vi sua traqueia se mover. Nem sinal de alteração de humor nas notas que ele produzia, mas sua resposta não veio de imediato, como se ele escolhesse as palavras.

— O Duque é uma exceção. Junto com a Dama da Primavera, ele é a entidade máxima do Leste. Todo o poder corre para ele. E Ignir dentro dele garante sua supremacia sobre as bestas e a magia.

O jeito como ele usou as palavras só remexeu as brasas da curiosidade já queimando em mim. Na minha vila e em todos os lugares desse pequeno país, as pessoas falam do Duque como se ele fosse Ignir. Ele é Ignir. Mas também se fala de Ignir como uma besta, “Ignir vai devorar você por ser uma pestezinha” e do Duque se fala como se ele fosse um rei. Eu nunca havia parado para pensar em como diabos eles se conectavam.

— Ignir... dentro dele? — sibilei. — O Duque não é o próprio Ignir?

— Ah, você não sabe a história? — Yan piscou para mim, caloroso. — Bem, talvez um dia eu conte...

— Imaginei que estivesse aqui — disse uma voz rouca, quebrando a sonoridade da música.

Meu coração disparou, saliva quase obstruindo minha respiração. Tossi e acabei pressionando todas as teclas juntas. Um barulho grotesco de notas mal feitas ecoou na sala. Yan riu de minha falta de jeito e lançou uma olhadela sobre o ombro.

— Irmão, você me encontrou.

— Eu diria que detesto estragar seus momentos de lazer, mas... não, eu não detesto — disse o Duque, a assombrosa voz rouca surpreendentemente relaxada. — Inclusive, gosto bastante.

Virei-me lentamente para olhá-lo. Ele vestia um casaco de veludo negro com abotoaduras douradas e correntinhas de ouro que pendiam sobre o peito. Sombras dançavam no entorno de sua cabeça, acompanhando cada singelo movimento que ele fizesse.

O Duque virou o rosto para mim, olhos verdes e afiados como a ponta de uma agulha, encarando-me com superioridade.

— Senhorita Landford.

Eu me pus de pé e fiz uma reverência. Não vou me forçar a ser cortês, mas estou na casa dele, nas terras dele e, embora eu não goste, ele detém as chaves do meu destino.

— Vossa Graça — eu disse.

— Vejo que está viva — comentou suavemente, quase educado, mas eu percebi a nota de decepção e desdém em sua voz. — E bem.

Ótimo. Se a minha simples presença o afeta, meu Duque, então você não vai ficar feliz em saber que eu não gosto de ver você feliz.

— “Bem” não é exatamente a palavra que eu usaria. Mas, de fato, estou viva, meu senhor

— Sim. — O Duque deu um passo para perto de mim, olhos cerrados e um tom de voz quase sibilante, porque ele não é burro. Ele sabe que estou zombando dele, na casa dele, nas terras dele. As sombras ao redor crescem, e ele me olha de cima, como se eu fosse nada mais que um mero grão de poeira. — Eu sou seu senhor. — Lembrou. Ele faz questão de que eu me lembre, que estou sujeita a ele. Eu queria esganá-lo, mas ele se afastou o mesmo passo e sorriu, e eu achei que era um sorriso bonito. — O que faz aqui? A essa hora a senhorita não deveria estar treinando com sua tutora?

— É tudo culpa minha — esclareceu Yan, levantando-se e colocando-se ao meu lado. — Eu a sequestrei.

— E você não deveria estar agora numa reunião pra tratar sobre a colheita desse ano?

— Oh, é mesmo? Me perdoe, eu esqueci totalmente.

Yan sorriu amarelo, porque não estava mesmo tentado contar uma mentira convincente. Tive que morder minha bochecha para segurar uma risada triunfante. O Duque suspirou com cansaço, assim como quem simplesmente não está no melhor dia para lidar com crianças.

— Eu... eu irei voltar imediatamente — eu disse.

— Eu a acompanharei — Yan se ofereceu.

O Duque o interrompeu.

— Não. Você tem suas obrigações. — Então me encarou com o que deduzi ser a faísca de um sorriso perverso. — Tenho certeza de que senhorita Landford é suficientemente hábil para voltar sozinha. Estou errado?

Eu engoli uma resposta petulante. Tenho que me lembrar constantemente que este homem absurdamente bonito e arrogante diante de mim é o senhor desta terra. Não tenho porquê me sentir inferior, mas também não tenho porquê achar que posso desafiá-lo. Não posso. Não ainda.

— Não poderia estar mais certo — Não me dei ao trabalho de sorrir dessa vez. Virei-me para Yan e seu rosto pareceu um pouco perturbado. Fiz uma reverência e essa foi verdadeira porque eu não o detestava. — Milorde. Vossa Graça.

Fiz uma reverência ao Duque, essa foi a mentira mais educada que já contei. Não olhei para nenhum deles uma segunda vez e me retirei rapidamente do salão.


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Notas finais do capítulo

Notas para mim mesma: comecei a assistir Caminho das Índias de novo. Você não vai encontrar uma pessoa mais aleatória do que eu.

Até mais!



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