Meros Encantos Mortais escrita por LittleR


Capítulo 5
A Origem da Ira


Notas iniciais do capítulo

"Há um monstro
em nossa floresta
E ela irá te pegar
se você não se comportar
Irá te arrastar por
folhas e galhos
Te castigar por
todos os malhos
Partidos teus ossos
cortadas tuas asas
Você nunca voltará
para casa."
— Holly Black, O Canto Mais Escuro Da Floresta

Boa Leitura!



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IV.

— Ekatherina Landford — disse o nakrash que os acompanhava.

O homem loiro se aproximou também e, por algum motivo, me senti confortável para olhá-lo. Os ossos nobres de seu rosto se achataram, os olhos brilhando num azul muito cheio de luz. O cabelo dourado era mais curto que o do Duque e bem menos liso, tinha ondinhas saltitantes por toda parte. Ele me olhou com expectativa.

— Qua-

— A rosa. Quatro pontas. Bem comum, eu sei. — Cerrei meus olhos. O coração retumbando. Meu rosto se virou para o Duque. Meu queixo estendido, não porque eu quisesse ser petulante, mas sim porque ele era simplesmente alto demais. A linha dos meus olhos somente alcançava seu peito. — Perdoe minha curiosidade, Vossa Graça, mas seria aquilo diante de nós a famosa Seldegra Floresta?

O Duque afiou o olhar. Consegui perceber uma faísca de surpresa em sua expressão, ou afetação, talvez. O vento frio agitou-lhe os cabelos, ele sequer se encolheu.

— É o que lhe parece, senhorita? — retornou a pergunta, como Kendare sempre faz; a rouquidão natural de sua voz se tornando mais profunda, quase cavernal. Engoli um estalar de língua.

— Sim.

— Provavelmente porque de fato seja.

Senti um resquício muito mal disfarçado de rispidez em sua voz, os espessos cílios se sobrepondo à íris de maneira angular. Afastei a pontada de medo que acertou meu coração e continuei repetindo a mim mesma que eu não tinha porque me sentir inferior. Talvez, se eu repetisse o suficiente, eu começasse a acreditar.

— Sabia que meus olhos não me enganariam. — Forcei um sorriso. — E por que é que estamos trotando direto para lá e não contornando?

Kendare ao meu lado estalou a língua ruidosamente e disparou um olhar enviesado para mim.

— Tem certeza de que essa é a pergunta que quer fazer, Katherin? Seja inteligente.

Eu devolvi o olhar para ela, impaciente.

— Eu já passei de fase de gostar de enigmas, Kendare. Respostas diretas me atraem mais e eu adoraria saber porque Vossa Graça estaria nos guiando diretamente pra morte dentro do Vespeiro da Besta.

Roman deu um puxão nada gentil na corda que me prendia, o que acabou me despertando do meu medo e irritação, e resmungou com uma voz arrastada entre os dentes:

— O que eu disse sobre gracinhas?

O homem loiro, lorde Yan se não me engano, riu e diminuiu a distância entre nós, os olhos azuis brilhando à medida em que se inclinou para me encarar.

— Deixe-a, eu gostei dela. Está preocupada se vai morrer precocemente, senhorita? Não se preocupe, o grande Ignir aqui — Deu um passo para trás e pôs um braço sobre os ombros do Duque. — vai nos manter a salvo. Certo, irmão?

O Duque afastou o braço de lorde Yan de cima de si mesmo. Sua expressão não se alterou muito, olhos desinteressados, a boca nunca fina linha rígida. Então, olhou para mim, minúscula diante dele, não só por altura, por tudo, porque eu não era nada nem comparada às luxuosas botas que ele usava; e disse:

— Viver ou morrer depende de você. Se será forte ou se será fraca, é escolha sua.

Meus lábios se comprimiram com amargor, a garganta se apertando ainda mais. Talvez, lá muito fundo, uma pequena parte de mim tenha considerado os danos que eu poderia causar a mim mesma ao abrir a boca, mas, se essa parte existiu, ela não teve nenhum controle sobre a situação.

­— Com todo o respeito, Vossa Graça, mas...  — Meu maxilar doeu. Quem sabe, pelo frio. Quem sabe, pela raiva. — Se reparar bem perceberá que, fora as garotas de origem nobre de cujos pais o senhor conseguiu consentimento para trazê-las consigo, nenhuma de nós, plebeias, escolheu estar aqui.

Deixei o ar sair pela boca suavemente. Ele não formou uma massa fria diante de mim e meus lábios formigaram quando continuei.

— Fomos roubadas de nossos lares e de nossos familiares para satisfazer essa sua... tradição que nem conhecemos direito. Muitas de nós tentaram fugir. Essa foi a única escolha que fizemos e, como pode ver, nenhuma conseguiu, então... — Fechei os punhos, meus dedos dormentes dentro das luvas. — Por favor, não diga que depende de nós. Porque obviamente não depende.

O vento do inverno chicoteou meus cabelos, assoviando no silêncio tenso, nos olhares arregalados que eu conseguia sentir em minha nuca. Eu, porém, não me encolhi. Não havia uma parte de mim que me permitiria fazer qualquer movimento. E assim, o vazio entre nós foi preenchido apenas pelos ruídos grotescos que vinham da floresta.

A primeira alteração significativa tomou forma no rosto do Duque Oriental. Ele franziu as negras sobrancelhas, o verde de seus olhos se tornando um pouco mais intenso (como cogumelos luminosos). Seus lábios se espremeram. Consegui provocá-lo. Eu... consegui...?

Eu não tinha porque me sentir inferior e toda vez que eu consigo provocar alguém, alguma coisa muito imatura em mim se remexe. Quentura e satisfação. Eu não tinha porque me sentir inferior e agora eu me sentia em pé de igualdade. Que tolice!

— Ekatherina Landford — sibilou o Duque, a boca tensa. Meu nome. Como um chiado de serpente ou um rosnado de lobo que me despertou memórias de infância. Quando minha mãe ficava irritada e ameaçava: “Ekatherina”. Resfoleguei.

Os dedos do Duque se moveram e subiram para o cabo da espada em seu cinto. A lâmina deslizou para fora da bainha com um assovio agudo que acordou todos os meus instintos de sobrevivência. Meus olhos se arregalaram ao encarar o brilho metálico apontado para mim, o gume roçando a pele fina de meu pescoço, onde minha traqueia se move.

Ouvi pequenos suspiros apavorados ao meu redor. Inquietação ondulando no ar e em meus tendões. Engoli seco o medo e o arrependimento, meus passos recuando, até que senti as mãos atadas de Illana em meus braços. Uma tentativa genuína de me dar apoio emocional. Ou quase. Seu corpo inteiro tremia como azaleias secas.

O Duque exalou ar lentamente entre os dentes, tinha caninos proeminentes.

— Sabe o que eu faço quando quero punir um subordinado? — Deixou a pergunta no ar. — Eu o mato? Não. — Deu um passo adiante. — Eu tiro dele algo com que ele se importa.

A lâmina deslizou de meu pescoço para o de Illana, que soltou um gritinho assustado. Meu coração tamborilou em minha garganta. Vislumbrei a silhueta de Roman atrás do Duque, olhos arregalados, resmungando: “menina estúpida”. Ele estava certo. Eu era estúpida. Eu era a tolice em pessoa, um bando de idiotice com pernas. Kendare tinha razão quando me mandou ser inteligente. Ela devia saber. Eu devia saber.

E agora se a única mulher que foi gentil comigo nos últimos sete dias morresse, seria minha culpa. E eu teria que carregar isso comigo pelo resto da vida, o que não deveria ser muito, já que provavelmente o Duque me mataria logo em seguida. E isso não seria de todo ruim, afinal.

Pensando bem, eu tenho desejado morrer com uma frequência assustadora ultimamente. Isso meio que nubla meu julgamento, porque enquanto eu penso em morrer, eu desejo que alguém me mate. Eu não tinha percebido isso até agora. Então, digo coisas que não deveria dizer e acabo prejudicando pessoas que não tinham nada a ver com minha incapacidade de lidar com meus problemas de maneira saldável.

Puxei Illana para trás e me coloquei diante dela, provavelmente outra de minhas idiotices, mas ao menos dessa eu tinha consciência. A lâmina estava de novo apontada para mim.

— Eu peço que não a arraste para isso, Vossa Graça — pedi, tentando disfarçar o pavor. — E imploro seu perdão, eu-

Minha voz foi engolida por um grito agudo. Virei meu rosto instintivamente na direção do barulho e vi uma das moças da fileira cair sobre os joelhos. Ela se contorcia, grunhindo sofregamente, regurgitando o próprio sangue na neve.

Observei, com horror, os ossos de seus ombros tremerem e se esticarem. Sua pele límpida enrijecer, o corpo inteiro se contraindo para dar forma a alguma outra coisa. Uma coisa que não sei o que é, nunca vi e, com certeza, vai aterrorizar os pesadelos que que terei de agora em diante.

As mãos de Illana me apertaram em pânico. Os olhos quase saltando do rosto ao encarar o monstro feroz, curvo, esguio e peludo que nasceu de uma das nossas.

— Corrupção — disse em tom baixo o nakrash que estava ao lado do Duque.

As Marcadas ao redor da criatura tentaram correr, mas estavam tão atadas a ela como eu estava a Illana e Kendare, não havia saída. A coisa se pôs de pé sobre dois cascos. Sua pele se fundira aos ossos, as costelas eram visíveis. Ela soltou um berro gutural que ecoou na noite, que fez os barulhos de Seldegra se calarem e, então, jogou-se sobre uma das moças ao seu lado. Minha mente me sussurrou para fugir, mas meus pés nem se moveram. As forças me fugiram das pernas e tive medo de não ser capaz nem de desviar meu olhar ou piscar.

Estava ainda paralisada quando uma lâmina lacerou o ar num chiado surdo. A cabeça da besta rolou longe, seu corpo desabou na neve. Deslizei os olhos vagarosamente em meu pavor para a figura alta do Duque, parado ao lado do corpo da criatura. Balançando o sabre em sua mão para livrá-la do sangue.

Eu não sei se sou capaz de dizer o que aconteceu. Em um instante, ele estava diante de mim, espada em riste. No outro, decapitou a besta sem fazer alardes. Sem dar passos na neve, sem correr. Simplesmente como se tivesse saltado de uma sombra para outra.

O Duque se inclinou e ajudou a garota que havia sido atacada a levantar-se. Perguntou alguma coisa para ela, que respondeu com um aceno. Então se virou. Para ninguém em particular.

— Senhoritas — disse. — Como devem ter percebido, tomaremos uma rota diferente em direção ao Jardim Oriental. Peço que não se alarmem, pois é necessário que façamos assim. O caminho por Seldegra Floresta nos economizará um tempo que não conseguiríamos ao contorná-la. E tempo é o que mais precisamos agora.

Acho que ele escolheu esse momento precisamente porque estávamos chocadas demais pra prestar atenção. Ou assustadas demais para contrariá-lo. Parte de mim se concentrou em ouvi-lo, a outra ainda estava tentando entender o que acontecera.

— O Equinócio de Primavera se aproxima e os Quatro Receptáculos estão mortos — Continuou depois de uma pausa. O frio intenso não parecia afetá-lo. — Este ano, a natureza escolherá outros Quatro. E a primeira deve ser a Dama da Primavera, que nasce em nosso país. É nossa responsabilidade deixar tudo pronto para quando ela chegar e preparar aquelas que a servirão é meu dever. Além disso, a floresta fará a pré-seleção daquelas que estão e não estão aptas para tal tarefa. Então... peço a compreensão de todas. E lhes desejo força.

Um burburinho preencheu a multidão assim que ele terminou. Não é todo mundo que vai só ficar feliz com “uma boa sorte”, quando ele estava tomando a mais arriscada das decisões e colocando a segurança de todos em perigo.

O Duque, porém, ignorou a todos. Claro, ele é o senhor desta terra e todos somos seus subordinados, em especial quando se é sua prisioneira. Ele virou-se e fez seu caminho de volta para a carroça. E eu apenas observei, imaginando se havia alguma maneira daquele homem se tornar mais desprezível.

Roman e os outros Recrutadores começaram a nos empurrar de volta a nossos respectivos vagões. Mas antes que eu sumisse dentro do carro, o rapaz loiro de olhos leitosos sorriu para mim:

— Espero que nos encontremos de novo, Katherin.

Então, partiu em direção à carruagem nobre que era sua por direito. Enquanto eu fui trancada de novo naquela cela móvel.


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Notas finais do capítulo

Nota para mim mesma: Cardan Greenbriar Supremacy!

Até mais!



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