Meros Encantos Mortais escrita por LittleR


Capítulo 3
A Origem da Indisciplina


Notas iniciais do capítulo

"— A senhorita é uma ameaça, senhorita Sheffield.
— E o senhor, lorde Bridgerton, precisa de botas mais grossas."
Julia Quinn, O Visconde Que Me Amava

Boa Leitura



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/802299/chapter/3

II.

Pelo que eu ouvi por aí, os Recrutadores possuem alguns tipos de habilidades sobrenaturais. Eles são o exército pessoal do rei e dos Duques, usados para todo tipo de propósito. Durante seu treinamento, passam por testes tão absurdos, que seu próprio organismo é alterado com feitiços e encantos para lhes dar poderes.

Alguns conseguem farejar pontos de magia, outros são muito fortes e há ainda aqueles que conseguem antever o futuro para rastrear uma presa, onde ela estará, o que fará e quando. Antigamente, eram chamados de Caçadores, mas o último rei, tentando tirar a má-fama de seus principais cães de caça, decidiu renomeá-los assim.

Ora, recrutadores. Normalmente qualquer pessoa que ouça a palavra "recrutar" pensa em um acordo onde há escolha. Não é bem o que acontece. Aqui, nós somos forçadas. A natureza nos semeia e estes homens nos ceifam. Caçadores combina mais com eles. E soa mais legal.

Minhas forças acabaram no sétimo dia de viagem e a comida, dois dias antes disso. Achei que morreria congelada na floresta de Balika, já nos arredores da fronteira, mas os Recrutadores me acharam primeiro. Lutamos, eu perdi. E, enquanto parte de mim entrava em pânico por meu infeliz destino e pelas crianças que eu deixara para trás, a outra parte estava apenas feliz não ter mais que fugir.

Quando acordei, eu estava vendada, amarrada pelos pés e mãos e jogada de barriga para baixo sobre o lombo de um cavalo. A posição era terrivelmente desconfortável. Alguns dias se passaram assim. Eles nunca me tiravam a venda ou desamarravam, apenas me desmontavam do cavalo e enfiavam pão e água pela minha boca para que eu não morresse de fome.

— É assim que tratam uma dama? Jogando-a de qualquer jeito em um cavalo? — eu praguejei. — Meus deuses, os soldados do nosso amado rei são bárbaros! Eu teria um tratamento melhor se tivesse sido raptada pelos homens das Terras Selvagens. Não ensinam cortesia no lugar de onde vocês vieram?

— Ah, cale-se! — resmungou um deles. Pela forma como sua voz oscilou, imaginei que ele também estivesse trotando um cavalo bem perto de mim. — Você não é uma dama! Se dependesse de mim, nós a daríamos de comer aos lobos. Mas Ignir vingará meu dedo, sua pestezinha.

— Roman, não seja infantil — ralhou o outro. Reconheci pela voz que era o maior, o que me dera um soco. Ele tinha um timbre monótono, quase cansado.

— Ela não é uma criança, Bristol. E ela comeu meu dedo, não me peça pra ser educado!

— Pois saiba você que seu dedo tinha um gosto horrível — provoquei. Se ele chegasse perto o suficiente, eu talvez pudesse cabeceá-lo, cair do cavalo e, então, morrer. Não que eu quisesse morrer, mas, de repente, a ideia de qualquer coisa que me tirasse daquela situação começou a soar bem tentadora. — Você inteiro deve ter um gosto horrível. Você é uma pessoa horrível. A Balança vai cuspir a sua alma no dia do seu julgamento, porque nem ela vai aguentar você.

— Ah, sua vagabunda!

— Chega! — decretou o terceiro, com uma voz rígida. Aquele de olhos escuros e rosto sugado. Acho que eu tinha mais medo dele do que dos outros. — Roman, não se atreva a sair desse cavalo. Continue seguindo a rota. E, você, prisioneira, é melhor manter a língua quieta se ainda quiser tê-la quando chegarmos ao destino.

Eu me remexi.

— Que destino? Não planeja me levar daqui até o Jardim Oriental nessas condições, né? Sabe que eu vou morrer antes de chegarmos na metade do caminho. Embora a ideia não pareça tão ruim.

Jardim Oriental era a capital do Leste, um amontoado de cidades importantes e vilarejos bonitinhos, cercada por Seldegra Floresta e administrada pelo Palácio Oriental, onde o Duque e as cortes vivem. Diziam que era o berço de toda a magia do Pequeno País. Eu tinha pensado em conhecê-lo antes, em uma situação diferente, onde eu tivesse escolha de entrar e sair de lá.

— Ah, então você deseja a morte? — O terceiro sibilou com desdém.

— Não que você possa me proporcioná-la. Eu sei que não pode. Seu Duque mandaria enforcá-lo por matar uma Marcada.

O Recrutador soltou uma risada. O trote dos cavalos parou. Ouvi quando ele saltou do animal, suas botas afundando na neve, e se aproximando de mim. A venda foi puxada dos meus olhos e eles doeram quando a luz os encontrou.

— Se a morte é o que deseja — disse ele e apontou para frente. — Você de fato a encontrará. E eu não precisarei sujar minhas mãos.

Ergui minha cabeça e avistei a caravana logo abaixo da colina onde estávamos. As bandeiras que tremulavam ao vento do inverno em azul e branco eram do Jardim Oriental. Tinha mais carroças do que eu estava disposta a contar e eu juro pelos deuses que nunca pensei em encontrar tantos Recrutadores juntos em um único local. O terror de qualquer Marcada.

Aliás, havia montes delas. Garotas da área leste do Grande País, como eu. Um dia, dormiram sonhando com coisas de menina, no outro, acordaram delimitadas pela magia que nem sabiam existir. Qual o critério da magia para escolher pessoas? É aleatório ou ela escolhe baseado no seu histórico familiar, pra decidir quem vai viver e quem vai morrer?

Todos os anos, nessa mesma época, dezenas de garotas entre dezoito e vinte e três anos despertam A Marca. Uma Marca, melhor dizendo, já que podem ser diferentes para cada pessoa. Elas são um sinal de afinidade com magia, que pode ser útil ao reino e que ajudam os Receptáculos a manter a natureza em ordem. Também são um sinal de submissão ao Duque Oriental, Senhor do Leste. As Marcadas deste país são levadas ao Jardim Oriental e submetidas a uma espécie de treinamento, do qual só doze retornarão.

Essas mesmas doze, consideradas as mais aptas nos usos dos seus dons, ganharão um lugar ao lado da Dama da Primavera e farão parte da corte do Duque. Só os deuses sabem o que acontece com as outras, mas não é muito difícil adivinhar.

Os Recrutadores me puxaram de cima do cavalo e começaram a me arrastar colina abaixo, onde a caravana se preparava para sair. Vi que todas garotas paravam diante do escrivão da carruagem que as registraria, antes de serem empurradas para dentro dos vagões. Fui levada até perto de um dos últimos, diante de uma criatura esguia e encurvada, coberta por um manto com capuz.

— Essa é a última? — perguntou o Recrutador de olhos escuros à ela. O aperto de seus dedos em meu braço poderia ter arrancado meus ossos.

A criatura sob o capuz demorou um olhar sobre mim. Em seguida, inclinou-se em minha direção e me farejou. Mesmo eu conseguia dizer que ele não era humano. Ao menos, não totalmente. Suas mãos deslizaram das mangas da bata e seguraram meus ombros. Tinha dedos longos, pele enrugada, unhas amareladas.

— Criança... — a criatura sussurrou, uma voz rasteira, sibilante e rouca.

Sua longa língua bifurcada se esgueirou das sombras do capuz e lambeu minha bochecha. O choque foi imediato. Correndo através dos meus nervos, como se alguém tivesse repuxado meus tendões. Como ser tocada por um raio.

Vislumbrei por um instante o poder ancestral que a magia enfiara dentro de mim sem minha permissão. Tinha a forma das flores desabrochando na primavera e morrendo no inverno. Tinha a pureza das borboletas e a voracidade dos espinhos. Tinha vida e morte, e luz, e silêncio, começo e fim. Todos juntos. Ao mesmo tempo. Amarrotados. Apertados e vazando. Esmagando-me de dentro para fora.

Batendo. Batendo. Abra a porta, Katherin. Deixe-me entrar, Katherin . Deixe-me abraçá-la, Katherin. Aceite-me, Katherin. Seja um comigo, minha criança. Minha Beleza Florida, Princesa dos Espinhos, minha Luz do Sol. Minha Flor de Lotus, meu Verão e minha Primavera. Dê-me sua mão.

Os espinhos subiram de novo por meu peito. Rasgaram minha carne, abriram minhas costelas, enfiaram-se em meus rins. Eu desejei que eles fossem embora. Desejei, com pavor, que eles nunca sequer tivessem aparecido.

Alguma espécie de energia vibrou entre mim e a criatura de manto que me tocava. Algo antigo e irritável. Mandou-a voando para longe, arremessando-a contra uma das carroças. Meus pés permaneceram no mesmo lugar, paralisados, olhos arregalados e mãos tremendo. Houve uma comoção ao redor, um monte de cabeças se esticando e rostos virando-se para mim, para ver o que acontecera.

Nem eu mesma sabia o que tinha acontecido. E a secura em minha garganta se agravou quando vi mais Recrutadores se aproximando, ávidos, mãos nas espadas e nas flechas em suas aljavas.

— Yvney, o que aconteceu? — perguntou um homem parrudo, vestindo trajes dos Recrutadores e um manto. Deduzi que fosse alguém importante.

A criatura se levantou, limpou o manto e esclareceu:

— Está tudo bem, bando de abutres. É só uma descarga pontual de magia, não é sinal de corrupção, a menina está limpa. Agora, andando, vão, vão!

A criatura se aproximou de novo à medida em que os Recrutadores se dispersavam. Ela tocou minhas mãos e as olhou por um longo tempo.

— Ekatherina Landford. Sim, essa é a última — O escrivão registrou meu nome em um livro gigantesco. Então, Yvney inclinou-se e sussurrou em meu ouvido. — Cuidado com a raposa que espreita no Jardim, Luz do Sol.

Eu franzi para a criatura, seus olhos de serpente cintilando sob as sombras do capuz. O Recrutador de olhos escuros me pegou pelo braço e começou a me arrastar para o último dos vagões da caravana. Eu entrei em pânico.

— Espere! Espere! Meus irmãos, eu os deixei, no vilarejo de Morrigan. Por favor, mande alguém para avisar a eles que eu fui pega. Eles são órfãos, eu prometi que voltaria, eles... eles vão achar que eu os abandonei.

Fui empurrada carroça a dentro. Caí contra a madeira do piso, ante os pés sujos e gemidinhos assustados das outras que já estavam ali. O Recrutador soltou um sorriso que beirava a crueldade em seu rosto sugado

— Se são órfãos, tenho certeza que estão acostumados.

Então, fechou a porta com um baque. Berrei para ele os piores xingamentos que pude imaginar, ali mesmo do chão onde eu estava, mas duvidava que ele tivesse ficado para escutá-los.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Notas para mim mesma: escreva mais, desenhe menos.

Até mais!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Meros Encantos Mortais" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.