Reflexos de uma boneca em estilhaços escrita por Dama das Estrelas


Capítulo 1
Aquela vida que não se perdeu no deserto


Notas iniciais do capítulo

Faaala, galera! Chegando com uma oneshot que eu estava devendo pra mim mesma. Na verdade ela é um exercício para um cursinho do qual eu tinha de escrever uma história breve com a temática de ansiedade. Como eu já estava pensando em escrever sobre os eventos após o Dead Doll, juntei o útil ao agradável.

CAROL, MINHA GRANDE E MARAVILHOSA AMIGA, CAROL, muito obrigada por sua paciência em me auxiliar com o nome da fanfic. Só a gente sabe o sufoco que eu tive pra finalizar essa capa aaakkkkkkk

Bru, minha querida, muito obrigada também pela paciência em ler meus choros e angústias para escrever essa fic. Agradeço, também, por ter lido o projeto em desenvolvimento e pelo seu feedback. Haja paciência pra aguentar eu surtando sobre isso kkkkkk

Bora com outra fic angstzinha? Bem, espero que gostem!!!



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O que você está fazendo? 

O som de sua própria voz ecoava pelo vazio.  

Não faça isso. 

Por várias vezes ela pedia para que sua agressora não continuasse com aquilo. Era loucura; loucura demais até para uma assassina sádica como ela. Ainda assim tentava convencê-la inutilmente a abandonar aquele plano. Razão já não se encontrava em sua mente, era apenas uma reação desesperada de seu corpo pela sobrevivência. Mas isto não adiantou. No momento, apenas seu gemido ecoando para o nada enquanto sua visão era bloqueada pela escuridão debaixo daquele carro. 

Um grito abafado a despertou do pesadelo. Sempre o mesmo. Acordou suando frio e se já não bastasse isso, o braço imobilizado doeu como o inferno. 

— Ei. Está tudo bem. Tá tudo bem. — A voz acalentadora ao seu lado buscava confortá-la a todo custo. Ele acordara assustado, porém teve de se recompor rapidamente para socorrê-la. Era mais um daqueles episódios. 

Ao perceber a luz acesa do abajur oposto, ela que olhava para o nada, sentiu o toque sobre seu braço saudável e depois sobre o rosto. Era quente, seguro; sua dose sedativa de todas as noites. Ele se achegou a ela de modo delicado e a trouxe para si. 

— De novo isso... — sussurrou ofegante, frustrada com o próprio corpo pela autossabotagem. 

— Vai ficar tudo bem. —  Acariciando seu braço direito, ele tentava induzi-la a respirar mais lentamente como o fazia. — Isso vai passar. 

Ela acabara de receber alta do hospital. O próprio quarto, a própria cama da qual se acostumou a dormir ao lado do homem que amava lhes pareciam estranhos. Noites de sono ruins e pesadelos. O virar do dia não tem sido bom para ela. Lágrimas lutavam para cair, ainda assim ela tentava resistir. 

— Quer um pouco de água? 

— Não... não. Obrigada, Gil — agradeceu assentindo. 

Observando seu semblante a saber se já havia se recuperado, ele afastou seus cabelos para o lado e beijou o canto de seu rosto. 

— Devia voltar a dormir — falou próximo ao seu ouvido. 

— E ver aquilo de novo? — Ela forçou um sorriso sarcástico, balançando a cabeça. — Não, eu não quero isso... eu quero... morfina — disse após soltar um breve gemido de dor. O braço engessado era um de seus empecilhos para conseguir dormir. E quando o conseguia, o cérebro era seu adversário da vez. 

A dúvida que pairava sobre Grissom era saber se ela realmente precisava do remédio ou se era o resultado de seu efeito viciante. Ele não resistiu no final; mal podia imaginar quão dolorosa e angustiante aquela "experiência" estava sendo. 

Ao se levantar da cama, Grissom foi ao banheiro e trouxe o comprimido que ela pediu. Assistiu-a tomá-lo e então se deitou ao seu lado novamente. Viu-a tentar se ajeitar na cama valendo-se somente de seu braço saudável e também a viu recusar sua ajuda. Ele se ajeitou para ficar de lado e suspirou. De vez em quando o peito doía ao pensar no quanto faltou pouco para perdê-la. O pouco que faltou para chegar tarde demais e encontrar a única mulher que amou sem vida. Talvez fosse a vez dele de tomar um calmante. 

Quando a viu sorrir por notar que era observada, foi como receber sua dose de anestésico. Desde o primeiro dia havia se apaixonado por aquele sorriso. Pensar assim o fez lamentar veemente as circunstâncias que os levaram àquela situação. E a vontade para dormir de novo? Seu relógio biológico, acostumado a mantê-lo acordado àquela hora da madrugada o obrigava a se manter em alerta. Deveria estar pronto para agir caso houvesse mais um daqueles episódios. 

E não foram poucos. 

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Deveria ser uma vitória a sua saída do hospital — lugar que tanto lhe deu calafrios — para casa. Todos à sua volta comemoravam sua recuperação; médicos, enfermeiros, seus amigos, colegas do trabalho. Seu amor. De certa forma ela também comemorava a passagem de um ciclo tão estressante quanto aquele. Todavia, outro ciclo se iniciava e desta vez não podia buscar auxílio nos anestésicos e outras drogas recebidas no hospital. Tinha de lidar com a realidade, que realmente saiu daquele hospital após quase morrer naquele deserto.  

A primeira noite em casa foi uma das piores. Quase não dormiu, mesmo sob efeito de remédios. A posição na cama não lhe agradava e não seria inconveniente o bastante para pedir ajuda a Grissom toda hora. O resultado disso foi insônia e pouquíssimas horas de sono completadas. Acordou com o corpo pesado, quase como se um caminhão lhe tivesse atingido. Após isto a maratona de início de dia começava: café da manhã, remédios, alguma atividade para movimentar o corpo desacostumado. Mais remédios, almoço e uma série de outros afazeres ao longo do dia até voltar a cama novamente. Tudo isto seria fácil se não fosse o próprio corpo sabotando sua vida. 

No primeiro dia passou o dia inteiro na cama e Grissom respeitou seu desejo. Ela não queria conversas longas, não queria contar o que sentiu naquelas horas e tampouco falar sobre o caso ou o desfecho dele. Quanto mais tempo passasse repousando o corpo, para ela, melhor. 

Mas chegara um momento em que adquiriu um estado de consciência pleno, aonde a mente voltava a funcionar e com ela, uma enxurrada de memórias e pensamentos acelerados. Teve que sair da cama antes que o corpo e cérebro definhassem e ela fosse destruída por seu próprio interior.  

Sentia-se diante de um espelho fragmentado. 

O sol da manhã era relaxante para maioria das pessoas. Este mesmo sol, entretanto, queimava seu rosto, sua pele. Ela fechara os olhos para não ser ofuscada pelo brilho cegante daquela estrela enquanto permanecia sentada ao lado de Grissom num banco. Era a área de lazer do condomínio aonde moravam; nada de parque, muita movimentação. 

Ao erguer o rosto para o alto ela sentiu a pele arder ainda mais, principalmente nas abrasões na face. Foi então que aqueles pensamentos voltaram. O dia estava quente e o tecido que cobria sua cabeça, arrancado da própria roupa, era quase inútil. Perdida e desorientada num vasto terreno desabitado, procurava por um caminho que a levasse de volta à civilização; todavia, a certeza de que estava realmente seguindo a direção correta esvaía com o vento. As pernas relutavam em obedecê-la e a cabeça já não raciocinava direito. 

Ouvindo um suspiro cansado acompanhado de um gemido, Grissom olhou para o lado e a viu se retrair. Parecia aflita. 

— O que foi, querida? 

— Quero voltar — sussurrou ao levar a mão ao peito; dava para sentir o coração acelerado. A mão direita suava assim como seu rosto. 

— Tá bom. 

Ele não saía de perto. Passava a maior parte do tempo à sombra de Sara para auxiliá-la ou para lhe fazer companhia. Nunca imaginou que pudesse fazer uso de suas férias acumuladas; elas vieram num bom momento, crucial. Ainda assim não importava se com elas ou se seria suspenso ou até mesmo demitido pela quebra do protocolo; só sabia que não voltaria a trabalhar até que Sara estivesse em condições melhores de se cuidar por conta própria. 

Ao chegar na sala de estar, Sara sentou-se no sofá e esticou as pernas sobre a mesa de centro, já equipada com uma almofada. Tentou relaxar os músculos ao se recostar no móvel; ao menos quando fechava seus olhos as lembranças não surgiam como lá fora. 

— Era aquilo de novo — comentou ao perceber que ele estava próximo. Parecia que tudo lhe despertava algum gatilho. 

Grissom se sentou do seu lado. Fitou seu rosto machucado e meio abatido e se sentiu impotente; incapaz de sanar suas dores. 

— Quer falar sobre isso? 

— Não — respondeu sem demorar. — É só... estresse... Vai passar uma hora. 

Ele ouvira do médico que sintomas como aquele poderiam surgir com o tempo e que precisaria ficar atento a cada detalhe. Sara podia ter maquiado o que estava sentindo, mas havia algo a mais por trás daquelas palavras e para ele isto era nítido. Percebia o quanto ela tentava não ser o centro de sua atenção apesar dos pesares. Não queria que a visse se sentindo tão frágil, por mais que já deixasse claro que podia contar com ele. 

— Gostaria de fazer alguma coisa? 

Ela balançou a cabeça em negativa. Parecia estar mais disposta a se levantar dali e seguir direto para a cama. Talvez fosse a melhor opção; já se desgastou demais por hoje. Antes que respondesse, todavia, o celular de Grissom tocou. A princípio não quis atender a ligação, mas olhou o visor para saber quem o chamara. Poderia ser uma ligação do consultório e este tipo de ligação era uma das quais tinha a obrigação de atender. 

Era Catherine. 

Grissom fez uma cara de quem não gostou, mas sentiu-se coagido a aceitar a chamada. Antes de fazê-lo, ergueu-se do sofá e lançou um olhar doce a mulher ao seu lado, dizendo que já estaria de volta.  

— Cath. Oi... Está tudo bem, sim — respondeu por entre um suspiro. 

Não era a primeira vez que Catherine aproveitava a brecha entre um caso ou a pausa no descanso para saber das novidades. Desejou melhoras a Sara inclusive, uma das primeiras coisas a falar pelo telefone. 

— ... Sara está bem. Está melhorando... 

Ela não pôde deixar de ouvir seu nome sendo citado. Virando o rosto em direção à cozinha no intuito de prestar um pouco mais de atenção na conversa, suas tentativas foram frustradas na medida em que Grissom, de costas, ia se afastando.  

— O quê?! — Ele aumentou o tom consideravelmente. — Ficaram loucos? Isso está fora de cogitação! Nem que ela fosse a única testemunha na Terra. Meu Deus, Catherine, ele não pode estar falando sério!  

Deviam estar falando sobre o caso Davis. Só assim para tirá-lo de seu estado normal. 

— Não, em hipótese alguma! Trabalhamos à exaustão para fechar esse caso, não é possível que o promotor precise dela! Ele que faça alguma coisa! 

Nada o tirava tanto do sério quanto aquele caso. A dor de cabeça após a prisão de Davis o levava aos nervos. 

Quando os olhos de Grissom e os dela se encontraram, ele percebeu que se excedera e preferiu se afastar ainda mais. Não queria de forma alguma que Sara tomasse as dores daquele caso. Quanto mais a alienasse sobre o andamento do processo, melhor seria. 

De vez em quando Sara se esquecia do quanto ele havia mudado nos últimos anos. Praticamente mudou de vida apenas para cuidar de sua saúde e ficar próximo dela. Em nenhuma outra ocasião poderia pensar algo parecido. Se achava que o relacionamento deles seria algo superficial e passageiro, pôde descobrir muito mais o quão fundo poderiam chegar. 

Ele estava lá para quase tudo. Desde os pequenos detalhes ao servi-la um café da manhã até acompanhá-la no banho, fazendo questão de ajudá-la enquanto se braço continuava imobilizado. Se o banho à dois era um dos melhores momentos do dia, tornou-se uma batalha de emoções. 

— Está um pouco tensa hoje — comentou enquanto a ensaboava por trás. Queria puxar algum assunto para saber como ela se sentia. Geralmente era o que menos iniciava alguma conversa ali e quando não estavam falando, passavam os minutos envoltos nos braços um do outro, lábios selados com beijos calorosos. A falta de diálogo poderia ser um sinal de alerta. 

— Nada. É só... — sabendo que não poderia esconder-se por muito tempo, desistiu. — Eu estava pensando no que você disse a Catherine. Audiência...  

Ele lamentou em silêncio pelo descuido que teve ao erguer a voz naquela ligação. Sara percebeu que se chateou ao sentir uma leve pressão sobre seus ombros. 

— Não precisa se preocupar com isso — garantiu. — Nós já temos tudo o que é necessário para levá-la a julgamento. Fique tranquila.  

— Não parecia... pelo jeito que você falava com ela... — Deu de ombros. — Se eu tiver de... de testemunhar... Se eles inventarem alguma coisa... 

Enquanto a ouvia falar, Grissom percebeu seus músculos se retraindo e tensionando, dando a impressão de que queria se esconder. A água quente ainda descia pelo chuveiro e mesmo assim viu a pele dela ser tomada por arrepios. Era seu dever afastá-la daquele caso até que a poeira baixasse, mas logo notou que não estava fazendo isso direito. 

— Fique tranquila, querida. — Percebendo que estava na hora de intervir, pôs-se à frente dela. — A última coisa que fariam agora seria envolver você — disse, tocando em seus braços carinhosamente.  

Ao tocar em seu rosto delicadamente e ergue-lo para que pudesse atentar para aqueles olhos castanhos, percebeu então o motivo pelo qual ela relutava em encará-lo frente a frente. Seus olhos, aqueles lindos olhos estavam vermelhos. Aqueles mesmos olhos viram a morte de perto e pareciam ainda estar vendo.  

Ele acariciou seu rosto com cuidado para não esbarrar nas abrasões ainda visíveis e beijou sua testa. Queria ser forte o suficiente para mostrá-la que estava bem e segura. Queria lhe dar o mundo. Mas quanto mais o semblante abatido de Sara se tornava frequente, mais o seu próprio mundo desabava. 

Tão absorto naquele olhar, não percebeu que Sara ergueu a mão para alcançar sua nuca. Somente aquele gesto não era o suficiente; ela o puxou para perto e o beijou. Tudo para mostrar o quanto tinha saudade de momentos como aquele. Não conseguia mensurar tamanho o desejo de sentir as mãos dele percorrendo sua pele; pressionando-a, puxando contra si. O quanto sentia falta daqueles lábios sedentos por alcançar os lábios dela e explorar cada canto de seu corpo como nas diversas vezes em que seguiam juntos para o banho e acabavam nos braços um do outro. Sentia falta de fazer amor não importasse aonde fosse o cômodo da casa, apenas a adrenalina, suas respirações ofegantes se misturando enquanto se consumiam de paixão.  

Queria muito isto; reviver os "velhos" tempos e ter a certeza de que tudo ficaria bem logo. Porém, era sabotada por ela mesma. Era como se o corpo acionasse um mecanismo que a impedisse de ir longe demais. Quando se deixou levar pelos toques e pelas carícias, soltou um gemido de dor. Inconscientemente tentou mover o braço imobilizado, que incomodou bastante. 

Já não havia mais clima para nada. 

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Eu vou ficar bem. Eu vou ficar bem.  

Pensamentos positivos para resultados positivos. Este deveria ser o seu motto, lema; e bem que ela tentou. Bem que tentou imaginar como seria voltar à sua vida normal, trabalhando ao lado — mas nem tanto — do homem que amava e de seus colegas de trabalho.   

Entretanto, caçoou de si própria ao se deparar com a realidade. Pensar realmente que sua vida voltaria ao normal era de uma tolice e tanto. Sequer imaginava a quantidade de comentários maldosos acerca do relacionamento dela e de Grissom, revelado à força. A mente conseguia criar muito bem os rostos e as feições daquelas pessoas que zombavam da "perita que dormia com o chefe" e sobre como um homem com a carreira feita quase perdeu tudo ao se deixar levar "pela sedução de uma mulher". O olhar executor iria pairar sobre eles — principalmente sobre ela — por um bom tempo, isso ela tinha certeza. Que tipo de vida normal estava imaginando para si? Foi inocente demais ao acreditar na mentira de que tudo voltaria ao normal. Nem seu corpo respondia do mesmo jeito, então por que imaginar que o mundo seguiria seu curso como se nada tivesse acontecido? Em seu reflexo interior não via mais que fragmentos do que foi algum dia. Sentia-se desfeita de alguma forma. 

Isto a inquietava demais. A mente, tão traiçoeira, criava as imagens do primeiro dia de volta ao trabalho. Seria o centro das atenções com aquele rosto escoriado e o braço enfaixado.  

Queria tanto ser reconhecida no trabalho, Sara Sidle, pois agora trate de provar o próprio veneno.  

Veneno. Esse tal veneno que Natalie Davis tratou de despejá-lo sobre ela, assim como a chuva; que em poucos minutos começou a aumentar sobre a região.  

Não abaixa a cabeça! Você vai se afogar! Não abaixa! 

A chuva não parava de cair e o carro do qual ela se encontrava presa começava a se cobrir de água. O pescoço se enrijecia de dor, mas era suportar a posição ou morrer simplesmente. 

— Gil...? 

Deitada sobre o sofá, acabou pegando no sono na metade de um filme que assistia ao lado de seu namorado. Num estado de pré-sono, os sons da chuva de certa forma a induziram a pensar naquele dia novamente, só que dessa vez foi mais rápida e conseguiu escapar do sonho. Esperava que Grissom estivesse ao seu lado, mas tudo o que encontrou foi o sofá meio ocupado. Nem Hank estava por perto.  

Um trovão rasgou os céus e a chuva começou a aumentar.  

— ... Gil? 

Nenhuma reposta. Era o estopim para desencadear mais uma crise.  

— Gilbert — falou ofegante enquanto olhava para todos os lados. Nenhum sinal do namorado. Ela fez um pequeno esforço para se levantar. — Gil?! — chamou por ele mais uma vez. O coração batia rápido demais e uma enxurrada de maus pensamentos fizeram sua cabeça. — Meu Deus.  

Alguma coisa devia ter acontecido a ele, não havia outra alternativa. Ela tentava afastar aquela ideia da cabeça de qualquer jeito, mas a mente era cruel e por isso os pensamentos perturbados prevaleciam sobre sua sanidade. 

Ela sentia o peito pressionar a cada minuto. Nem conseguia mais controlar o próprio ritmo da respiração, como se o ar estivesse sendo sugado para fora contra sua força.  

— Hank?! — chamou desesperadamente pelo cachorro que, estando há pouco no quarto, correu ao encontro de co-guardiã. — Hank, cadê o Gil? — Ela deu o comando e, com um latido, Hank correu até a porta da frente, onde ameaçou pular e voltou a latir.  

Ele não estava em casa.  

Ah não.  

O desespero se tornava maior a cada instante. Um vislumbre de um relâmpago reacendeu em Sara um alerta vermelho, o que ensaiou o despertar daquelas memórias mais uma vez. Se antes escapou da armadilha do sonho, agora tinha de lidar com o pesadelo na vida real. Chegaria o momento em que seria tarde demais para sair daquela situação.  

Como se sua vida dependesse disso ela pegou o celular deixado na mesa de centro e discou a chamada rápida. Podia sentir com todas as forças que estava a ponto de ter um ataque de pânico. 

Três toques. Questão de segundos que duraram uma eternidade. 

— Sara? Querida, está tudo bem? — Grissom já vinha se habituando a dizer aquelas primeiras palavras. 

— Gil? Gil, cadê você? — Ela disparou ansiosa.  

— Fui comprar algumas coisas para casa. Saí há um tempo e já estou voltando. Vi que você estava dormindo e resolvi não acordá-la... 

— Gil, tá acontecendo de novo. — Enquanto se encolhia por entre o sofá, Sara falava ofegante. A mão que segurava o celular tremia e se não tomasse cuidado o deixaria cair. — Eu não tô-, eu não tô conseguindo respirar direito. A... a chuva... ela... 

— Deus... — sussurrou brevemente. Ele temia que algo assim poderia acontecer enquanto estivesse fora e seu pesadelo se tornou uma realidade. — Sara, me escute. Vai ficar tudo bem.   

— Não, eu não-  

— Eu já estou chegando, está bom? — Grissom se adiantou. — Agora ouça a minha voz. Ouça a minha voz. 

Ela tentou. Tentou afastar tudo e focar unicamente na voz do homem que amava. Mas a sua voz parecia um ruído no meio de outros sons. Era difícil demais. 

— Respire fundo. Feche os olhos e vai soltando o ar bem devagar.  

— Eu não consigo!- Eu tô... Com falta de ar.  

— Sara, se concentre, querida. Vai ficar tudo bem. Só... respire fundo. Respire fundo.  

— Eu não consigo. — Ela repetiu. As lágrimas começavam a cair. — Droga! Eu não consigo, eu vou...  

—  Ei. Você disse uma vez que adorava ouvir o som da minha voz quando não estou chamando sua atenção no trabalho.  — Ele ergueu o tom para que fosse ouvido.   

— O quê? —  Confusa, permaneceu quieta a saber aonde ele queria chegar. Respiração ainda fora de controle, afastou o celular por alguns instantes no intuito de usar o torso para secar as lágrimas subsequentes. — O que você tá-  

— Nós dois estamos juntos na nossa cama. Eu começo a falar sobre o comportamento das abelhas operárias. Lembra? — perguntou sem esperar resposta. — Você ouvia tudo, chegava a rir e... A se vangloriar de ter um entomologista como... Seu namorado. — Ele fez uma pausa. Percebeu que ganhara sua atenção. — Você estava envolta nos meus braços, respirando devagar. Calma, tranquila... Enchendo de ar os pulmões e depois os esvaziando. Sem pressa. Lembra-se disso?  

De início ela odiou que ele falasse daquela forma pois tudo o que buscava no momento era uma saída para sua crise. Mas logo se viu fisgada por sua conversa. 

— Se lembra disso, Sara? — perguntou novamente. — Eu consigo sentir você descansar nos meus braços. Sua respiração calma... Inspirando... Expirando...  

Ela estava fazendo aquilo. As memórias trouxeram-lhe um alento, ainda que breve. Sara tentou se colocar naquela posição novamente aonde enxergava nada mais, nada menos, que a paz e tranquilidade que adquiriu ao começar uma vida nova. Foi trabalhoso, mas aos poucos a respiração frenética ia desacelerando. Só havia o som da chuva agora. 

— Eu tô chegando, querida. Vai ficar tudo bem.  

O ritmo cardíaco havia diminuído, porém nada disso conseguiu conter as lágrimas que não paravam de cair.  

— Não desliga — pediu quase sem voz. A ligação era seu único e maior escape para ela naquele ambiente (quase) solitário. — Fala comigo.  

— Tá bom. Eu já estou chegando, meu amor. Continue respirando devagar, assim como eu falei. 

— T-tá... — Com muito custo que seus batimentos entraram num ritmo decrescente. Ela tentou abandonar todos os pensamentos ruins para focar somente em coisas boas; a voz dele era uma delas.  

— Estou trazendo aquela batata recheada que você adora — continuou ele. Sem jeito sobre o que dizer adiante teve de pensar rápido — Vamos assá-la no forno hoje, o que acha?  

Ao terminar de respirar fundo, ela fechou os olhos, fungou uma vez e sorriu. Adorava ouvir a voz dele improvisando sobre os mais variados assuntos. Talvez nunca conseguiria agradecê-lo por tudo o que havia feito nos últimos tempos. Ela o amava demais e a cada sentia que era mais amada por ele. 

— Vamos — sussurrou, curvando os lábios num sorriso. 

Quase meia hora depois, quando retornou da saída, Grissom, que carregava dois pacotes carregados de compras nos braços, deixou os no chão para se encontrar com Sara.    

— Sara! 

Ela não tirava os olhos da porta desde o momento em que ouviu os ruídos.   

Grissom a encontrou encolhida sobre o lençol enquanto Hank fazia guarda no chão. A TV continuava ligada no canal que assistiam, ainda. Ao se virar para ele, antes mesmo que se levantasse, Grissom a envolveu em seus braços tomados pela angústia de tê-la deixado sozinha.  

— Ei. Você está bem? Me desculpe, eu- eu devia ter te avisado...  

Mesmo fazendo uso de um só braço, ela o envolveu fortemente, como um pedido para que não fosse embora.  

— Eu não sei o que tá havendo comigo. — Sara lamentou baixo. 

— Isso vai passar.  

De certa forma ela sabia, sim. Transtorno pós traumático. Era o que o psiquiatra havia diagnosticado ao longo se suas consultas. A maior parte delas um jogo de paciência para que Sara se sentisse à vontade para dizer o que se passava dentro dela. Um silêncio prolongado e incômodo para qualquer um, menos para o profissional que a atendia. Pare ele, aquilo dizia muita coisa. 

Era um lugar escuro e úmido, dizia ela. Tinha cheiro de óleo de motor, areia molhada e sangue, seu sangue, assim como naquele maldito carro. Quase tudo acionava um gatilho que a trazia de volta àquele dia. Pensar nele era fácil, tão fácil, que ao ser provocada para lembrar daqueles momentos, as imagens adquiriram uma atmosfera ainda pior. O cérebro lhe fazia um alerta "não faça isso. Você não vai querer se colocar naquele dia”. As memórias eram tão nítidas que a impressão que tinha era de estar vivendo o pesadelo novamente.  

O braço esquerdo, imóvel, lutava para se desprender de toneladas de ferro por cima dele. Respiração acelerada, tentativas frustradas para se soltar e nada mais que decepção.  

Então a chuva veio. E veio sem trégua.  

Um pequeno riacho formado pelo declive enchia o interior do carro do qual ela estava presa. Quando a água já cobria seu braço imobilizado deu-se conta de que tinha de sair de qualquer jeito ou iria morrer. Não precisava ser adivinho para ter ideia de que sua morte seria iminente. 

A chuva não parava de cair, assim como a água que entrava no carro e inundava sua "prisão".  

Vamos, Sara.  

E ela puxava e puxava o braço, mas não adiantava, era inútil.  

Vamos, vamos!  

A água já havia submergido boa parte do carro assim como seu corpo. Era fria, gélida, a fazia perder a capacidade de concentração para focar somente em manter o copo aquecido. Enquanto isso a água não parava de subir. 

Sai... SAI! 

Ela erguia a cabeça para o alto na tentativa de recuperar o fôlego e o ar para os pulmões. Descia para debaixo d'água numa série de tentativas frustradas para livrar o braço daquela prisão, só que o nervosismo para se livrar logo consumia seu estoque de ar. Quanto mais os segundos passavam, mais as suas reservas naturais naquele vão eram tomadas pela água. 

Ela tentava de todo jeito retirar a pedra que se postou acima do seu braço, mas aos poucos ia perdendo não somente o fôlego, como suas forças. De repente deu-se por si e já não havia mais banco de ar sequer. Era uma luta contra o tempo. Seu braço continuava preso. 

Vamos! Vamos! Droga! 

Ela sentia que não havia mais tempo. Seus pulmões se comprimiram tanto que haveria um momento do qual ela precisaria buscar por ar; só que não havia mais ar. A dor física era tamanha que mal conseguia pensar nos rostos de conhecidos antes que começasse a perder consciência. Só haviam borrões e uma presença inconsciente; sem rostos. 

De repente não suportou prender a respiração mais e aspirou por puro instinto. Em poucos segundos seus pulmões foram tomados pela água, obrigando-a a desistir de sua busca desesperada por liberdade. Mão à boca, seu braço continuou preso e ela não tinha mais esperanças de conseguir sair daquele carro. Seus olhos permaneceram abertos enquanto se afogava. 

Ela acordou de repente num grito desesperado. Tossiu sem parar após ao sentir que estava realmente se afogando. Mas não havia água ao redor e tampouco em seus pulmões. 

— Sara?... Sara! 

O grito dela o despertou num salto e ele se ergueu depressa ao seu socorro. Sara continuava a tossir.  

— O que houve?! Querida? Está passando mal? — Ele tocou em suas costas para socorrê-la, mas quando percebeu que estava engasgando tratou de pegar um copo de água. — Aqui. Beba um pouco.  

— Não, não... — ela protestou veemente e rejeitou o copo d'água. — Não dá. Eu não-... não consigo mais fazer isso...  

— Não consegue?  

— Eu tô quebrada! — Sara disparou. Sua voz ecoou pelo quarto esfriando ainda mais aquele cômodo. Foi a primeira vez que admitiu com todas as palavras o que vinha sentindo há algum tempo. Em seu rosto, suor e lágrimas se misturavam por entre a vergonha de deixá-lo a ver naquele estado.  

Ele assistiu com espanto em seus olhos a imagem que assombrava seus sonhos. Desilusão, angústia e desamparo misturados à dor física e emocional.  

— Foi só um pesadelo. — Grissom argumentou ao se inclinar para perto e confortá-la em seus braços. À luz de seu abajur conseguia enxergar as lágrimas sendo refletidas em seu rosto. Ele tentou secá-las devagar, mas no momento em que tocou em seu rosto, Sara se retraiu e virou-se contra ele.  

— Não! Você sabe! Tá tudo... Tá tudo errado. — Aquela resposta foi o estopim para que uma onda de tristeza desencadeasse o choro preso em seu peito. Com gemido abafado, ela se deixou cair em lágrimas.  

Ele sentiu o coração se desfazer em mil pedaços. Chegou a abrir a boca no intuito de dizer-lhe algumas palavras de acalento, mas sentiu-se impotente vendo a mulher que amava sofrer daquela forma. Temeu que fosse rejeitado num primeiro momento, mas não deixou que o receio o vencesse. Ele a envolveu em seus braços e a trouxe para si, sem frases ou palavras, apenas o silêncio.  

Não obteve protestos desta vez. Ele permaneceu daquela forma, dando-lhe tempo e o espaço que precisava que ela liberasse tudo o que estava preso. Em pouco tempo sentiu os seios da face congestionarem e os olhos arderem e torceu para que Sara não o olhasse diretamente. 

— Vamos... passar por isso juntos. — Rosto rente aos seus cabelos, ele sussurrou. — Isto é doloroso, é terrível... mas vai passar. — Ele resvalou os dedos sobre seu rosto e o acariciou devagar. — Você não está quebrada, Sara... Está apenas ferida. 

Sara sabia muito o bem o que suas palavras significavam e tentou de todo jeito acreditar nelas, acreditar nele. Estar quebrado significava a impossibilidade de "reparo", logo, não haveria retorno para o estado anterior; enquanto que um ferimento poderia ser curado e restaria apenas a cicatriz, a lembrança pelo que passou. Era difícil enxergar além do horizonte quando tudo o que via eram barreiras intransponíveis que a obrigavam a se conformar com seu estado. 

Ainda envolta em seus braços ela continuou a chorar. Apesar de não se importar por quanto tempo ficaria assim, preocupava-se caso não tivesse chegado tarde demais em fazê-la mudar de ideia. Mais que o trauma físico, a mente talvez tenha sido a mais prejudicada após aquele sequestro. 

Grissom beijou o topo de sua cabeça e acariciou o braço esquerdo na região do antebraço o mais de leve possível para não pressionar algum nervo sensível. Percebeu-a respirar fundo na tentativa de cessar o choro e a aguardou pacientemente se recompor. 

— Não quer tomar uma ducha quente? — sugeriu ao ajudá-la secar os últimos resquícios de lágrimas. 

— N-não... eu não acho que... — Sara recusou, mas foi vacilante. Não sabia o que gostaria, na verdade. 

— Eu vou com você — insistiu, beijando-lhe o topo da cabeça novamente. 

Ela não podia negar o quanto se rendia por completo quando ele agia daquele jeito, tão carinhoso, voz baixa e suave. Aquela voz a sustentou por muitas vezes e esta era mais uma daquelas vezes. Se estava de pé parte disso devia a ele. 

Sem responder com palavras, aceitou a sugestão de uma ducha rápida. Após o susto o sangue esfriou e ela sentiu frio, então o chuveiro quente lhe fez bem. 

Preferindo não induzi-la a se lembrar do ocorrido, o breve momento no banheiro foi marcado pelo silêncio. Atentando para suas expressões a todo o momento ele viu que o susto já havia passado, porém seu semblante continuava abatido. Aquele pesadelo ainda a atormentava. 

Fim do banho, retornaram à cama da mesma forma como seguiram ao banheiro: nenhuma palavra. 

— Vai ficar assim? — perguntou Sara ao notar que ele se virou de lado, na sua direção. 

— Apenas... me certificando que você vai...  

— Vai ficar me olhando pegar no sono de novo? — Ela deixou escapar um sorrisinho. — Desse jeito eu não vou conseguir dormir mesmo. 

Ainda naquela posição, Grissom tocou no canto de seus lábios com o polegar e o acariciou. Poderia ficar assim, apenas esperando que ela dormisse, aguardando em alerta caso fosse necessário agir. Se pudesse tomar seu lugar naqueles eventos não hesitaria em momento algum. 

— Eu... aquelas imagens ficam voltando e voltando...  

Falar sobre aquela madrugada era o mesmo que cuspir espinhos do fundo da garganta. Ainda assim, imaginou ser a melhor opção: pô-los para fora antes que seu interior fosse totalmente consumido. 

— Eu me vejo de volta lá... naquele carro... — desabafou enquanto olhava para o alto. — Todas as vezes que... eu tentava sair dele parecia que... eu não sei, meu corpo travava e eu perdia as forças. — Ela engoliu em seco. — Tento lutar para sair dali, mas eu nunca consigo. Presa no mesmo sonho... quase todos os dias. 

— Isso vai passar, querida. 

Ao sentir o toque Sara fechou os olhos e tentou descansar ao calor de suas mãos. Uma bola de cristal lhe faltava para saber quando isto iria acontecer. Reviver o mesmo pesadelo com um desfecho trágico, e o pior de tudo, tendo o cérebro como principal adversário fazendo com que acreditasse viver fisicamente o mesmo dia a desgastava cada vez mais.  

Tinha de fazer força para visar o próprio reflexo e não enxergar um espelho fragmentado. Acreditar que não passava de arranhões que com todo o cuidado seriam removidos. Não estava sozinha, claro, mas de certa forma sentia o peso de uma jornada solitária. 

 


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Notas finais do capítulo

E é isso, galeres!

Nossa, depois de atentar para esse período na vida da Sara, eu senti um peso gigante na vida dela. O quanto isso foi um divisor de águas e o quanto isso moldou seu comportamento nos meses seguintes. É muito pesado quando você a vê no decorrer da oitava temporada, suas feições e atitudes, e aí começa a entender o motivo que levou à sua partida.

Numa primeira vez que eu vi o episódio eu não entendi muito, mas depois, com uma "bagagem" mais enxuta, eu compreendi o quão grave aquele evento foi somado a sua história de vida. É muito bom vê-la nas temporadas seguintes (TIRANDO A 13ª) uma Sara renovada e que conseguiu enterrar seus fantasmas.

Bem, espero que tenham gostado da fic (e da capakkkk). Um beijão e até a próxima!!!



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