Primeiro amor escrita por Bruninhazinha


Capítulo 6
Primeira bebida




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Habituada aos sons dos amigos, Ravena não pôde deixar de estranhar o silêncio que pairava no quarto. A Torre sempre foi um lugar cheio de ruídos, mesmo nos momentos de paz. Havia um falatório incessante no prédio, com os passos pesados de Ciborgue soando nas paredes e a voz cochichada de Koriand'r. 

Não hoje. Hoje o prédio estava sem seus residentes.

Só havia Ravena e um silêncio incômodo. 

Horas mais cedo, depois de mais uma luta contra a H.I.V.E., os Titãs decidiram que seria uma ótima ideia comemorar a vitória indo à pizzaria. Já era tradição isso de lutar, sair para comer e colocar o papo em dia. Ravena, porém, sentia-se exausta; recusou a proposta na primeira oportunidade que surgiu e ainda inventou a desculpa mais esfarrapada do mundo para Richard, na cara de pau, como se o rapaz não fosse um detector de mentiras ambulante. Felizmente, o líder não fez objeções e a empata se teletransportou para casa o mais rápido que conseguiu, antes que ele pudesse mudar de ideia. 

Agora, deitada na cama, com o notebook acomodado nas pernas e uma lata de refrigerante em mãos, ela terminava a primeira temporada de um programa de noivas. Como chegou a esse ponto? É difícil explicar. Tudo começou quando resolveu ver vídeos aleatórios no Youtube. O buraco só afundou a partir daí.

Franziu o cenho no momento que uma noiva começou a reclamar do orçamento do vestido – logico, sua idiota, você só tem novecentos dólares, como pode querer uma peça de cinco mil? –, tão entretida que levou um susto ao sentir o celular vibrar no bolso do short. Sequer se deu o trabalho de verificar o visor, apenas atendeu, sabendo que só existia duas possibilidades. Ou era Estelar querendo contar alguma fofoca ou...

— E aí, Rae?

Garfield.

A julgar pelo tom da voz, parecia estar se divertindo na pizzaria.

— Diga. — apoiou o celular no ombro, tentando alternar a atenção entre conversar e assistir.

— O que está fazendo?

— Você me ligou só para saber o que estou fazendo? — foi impossível esconder a descrença na voz.

— Credo, custa responder?  

— Estou procrastinando. — esticou o braço para colocar a lata de refrigerante em cima da mesa de canto. — Não que isso seja da sua conta. 

— E por que não veio conosco?

Ravena arqueou uma sobrancelha.

— Robin não disse?

— Não. Ele não sai da cola da Kori desde que chegamos. Perguntei por que você desapareceu do nada, mas acho que nem me ouviu.  

Argh. Tão típico. Robin e Estelar só não se agarravam no meio de todos porque tinham bom senso. De qualquer forma, não precisava ser inteligente para saber o que os dois faziam as escondidas.

Sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos, repreendendo-se, afinal, ela não era exemplo para ninguém se tratando disso.  

— Estou com dor por causa do idiota do Mamute, por isso voltei.— rolou os olhos. — Ele jogou uma lata de lixo em mim quando eu não estava vendo.

A risada ecoou do outro lado da linha.

— Aquilo foi engraçado. Só não foi mais engraçado que a surra federal que demos nele.  

— Ele mereceu.

— Vou ter que concordar. — Houve um silêncio curto. Ela quase conseguia vê-lo sorrir. — Você precisa vir, Rae. É sábado e aqui está legal. Posso te buscar, se quiser. 

— Não, obrigada. Prefiro a minha cama.

— Qual é... Até a Abelha veio. 

— A Abelha? — piscou uma, duas, três vezes, finalmente entendendo por que ele queria tanto que ela fosse. — Você está de vela, não é?

— Não.

— Gar, — apertou os lábios, segurando uma risada. — não tem a mínima possibilidade de Abelha e Ciborgue dividirem o mesmo ar sem acabarem se pegando. Considerando que Robin não desgruda da Estelar, então, sim, você está de vela.

— Ok, admito. Mas não é só isso.

— E o que é?

— É vergonhoso ver o Cib dar em cima de alguém. Sério. Eu preciso de você.  

— Não conte comigo para nada hoje.

— Espera! — exclamou antes que ela pudesse desligar. — Podemos fazer algo juntos. Ninguém vai reparar que sai daqui.

— Olha, eu acho que não é uma...

Alguém bateu à porta. Ravena pausou a série e empurrou o notebook para o lado, desconfiada. Franziu as sobrancelhas ao escutar outra batida, dessa vez sonora e mais forte.

Não é possível.

Encarou a parede, entendendo a situação.

— É você, não é?

— Ainda não me respondeu. — ele riu do outro lado da linha. Bufando, a empada levantou-se da cama para girar a maçaneta.

No corredor, Garfield sorria abertamente mostrando os dentes brancos, perfeitamente alinhados. Pelo visto, tinha saído da pizzaria há muito tempo, porque vestia pijamas de bolinha e o cabelo estava úmido, denunciando que acabara de sair do banho. A pele verde e luminosa cheirava a sabonete. Uma das mãos desligava o celular, a outra equilibrava duas caixas de pizza e no ombro estava uma mochila surrada.

— Surpresa. — cantarolou.

— O que faz aqui? — piscou sequencialmente, guardando o próprio aparelho no bolso, sem acreditar que toda aquela conversa ao telefone não passou de encenação.

— Credo, é assim que me recebe depois de todo o tempo que passamos longe um do outro?

A moça conferiu as horas no relógio de pulso. Sete da noite.

— Faz só uma hora desde a última vez que nos vimos. — rolou as ametistas. — E você ficou rindo da minha cara depois do acontecimento com o lixo.

— Você tem que admitir que foi engraçado.

— Não, não foi.

— Foi sim.

— Há quanto tempo chegou? — deu passagem para que ele entrasse. Assim que fechou a porta atrás de si, cruzou os braços. — Eu nem te ouvi.  

— Faz só meia hora. Tomei um banho assim que cheguei, depois fui fazer uma coisinha de nada. — Ela não retorquiu; limitou-se a mirá-lo. — Não vai perguntar o que fui fazer? 

— Não.

As sobrancelhas verdes juntaram em evidente incredulidade.

— Sério que não está minimamente curiosa?

— Gar, — meneou a cabeça. — se teve algo que aprendi nesses anos que convivemos juntos, é que a ignorância pode ser uma dádiva.

Ele pareceu ligeiramente decepcionado.

— Trouxe pizza para você. — colocou as caixas em cima da mesinha de centro, depois aproximou dela só para envolver o rosto delicado com os dedos, tentando avaliar melhor o curativo na bochecha direita. Ravena quase suspirou de forma ridícula e apaixonada diante daquele olhar preocupado. — Como estão os ferimentos?

— Não está tão ruim. — Não era mentira. Além do corte na bochecha, haviam alguns hematomas nas pernas, nada excepcional ou preocupante. Garfield, porém, ao contrário dela, exibia uma pele lustrosa, sem um mísero arranhão, mesmo que tenha recebido uns belos socos em combate. Uma pessoa normal estaria com a cara inchada, mas os poderes provenientes da sakutia ajudaram no processo de cura. — Esse corte na minha cara doeu menos que levar uma lata de lixo nas costas, para falar a verdade. — sorriram para o outro. Ela, delicadamente, afastou as mãos dele. — O que faz aqui? Não devia estar com os outros, na pizzaria?

— A parte que falei sobre os quatro estarem de casalzinho não é mentira. Eu que não ia ficar sozinho no meio deles, sem ninguém para conversar. Então lembrei que você não tinha jantado e pensei “porque não?” — olhou por cima da cabeça dela, para a cama, onde o notebook ainda repousava. — Podemos fazer algo juntos, aqui.

O tom avermelhado começou nas orelhas, depois espalhou por todo o rosto da garota. Ela arregalou os olhos, parecendo chocada com a proposta. 

— Não é querendo ser mal-educada, — e, olhando para o chão, crispou os lábios, muitíssimo envergonhada. — mas não estou pronta para algo assim

Mutano demorou para entender. Quando a compreensão o atingiu, sua reação foi gargalhar escandalosamente. 

— Não, você entendeu errado! — falou, ainda rindo, sendo fitado por aquelas ametistas grandes, brilhantes e perdidas. — Eu me referi a passarmos o tempo juntos aqui para assistir filme e comer pizza, não fazer sexo. Céus, Rae, que mente poluída você tem.

Só percebeu que não devia ter dito isso porque, enquanto gargalhava, Ravena lhe deu um belo de um sanfonão.

— Ei!

— Ninguém mandou rir da minha cara.

— Ah, não pode me culpar. — inclinou, cheio de segundas intensões. Ela, porém, virou o rosto, com os braços cruzados, muitíssimo aborrecida. — Você fica uma gracinha quando está com vergonha. — o som que ecoou foi semelhante a um bufar; Garfield sentiu o sorriso alargar. — Então, o que acha da minha proposta?

A resposta veio dolorosamente ácida, na forma de um olhar indignado.

— Definitivamente, não. Imagine só o que os outros vão pensar se te virem aqui, no meu quarto. 

— Relaxa, docinho. Ninguém vai nos encontrar. É bem provável que cheguem tarde.

Roth não pareceu tão convicta disso, no entanto, resolveu ceder. Já estavam ali, de qualquer forma.

— Certo, tudo bem.

Enquanto ela ia até o armário para pegar mais travesseiros, Mutano permitiu-se observar o quarto. Já estivera ali antes, mas, sendo bem sincero, nunca tinha parado para analisar o cômodo melhor. Era grande, espaçoso, com janelas que iam do chão ao teto. As paredes escuras davam uma impressão meio sombria, contrastada com as luzes vindas do lado de fora. Prateleiras cobriam uma das paredes, guardando itens inusitados. Frascos, cristais, centenas de livros grossos. Uma porta levava ao closet e a cama, ao centro, era espaçosa, de aparência confortável.

Piscou sequencialmente, meio boquiaberto e indignado.

— Por que seu quarto é tão melhor que o meu? — murmurou. — Isso é injusto.

Rachel jogou um amontoado de travesseiros nos braços dele.

— Devo ser melhor que você em combate, por isso recebi um quarto tão bom.

Ele mostrou a língua.

— Até parece.

Acompanhando-o com o olhar, observou o rapaz se atirar na cama, entre os lençóis, como se fizesse isso todo dia. A situação a fez se sentir estranha porque, hm, era a primeira vez que ficava sozinha em um quarto com um homem. Um homem muito bonito, por sinal.

Mesmo antes de se envolverem, havia reparado nisso. Na beleza dele. Mesmo que fosse discreta, Ravena não estava cega. Via como o rosto de Garfield chamava atenção, cheio de ângulos lindos e proporcionais, sem mencionar os ombros largos, músculos definidos, o cabelo caindo na testa, o olhar galã. Onde quer que estivesse, as mulheres se pegavam admirando-o.

Agora, ela não era uma exceção. Não soube quanto tempo permaneceu da mesma forma, fitando-o. Ele casualmente afastou uma mecha de cabelo, puxando o notebook para perto. Por fim, levantou os olhos em sua direção todo sorridente, aquele ar debochado cercando-o.

Que filho da puta. Como conseguia ser tão charmoso?

— Estou surpreso. Uma série sobre noivas?

Ravena tentou disfarçar o rubor dando de ombros.

— É o que temos para hoje, docinho.

— Sarcástica? Gostei. — sorriu. — A propósito, por mais que pense que a ignorância possa ser uma dádiva, vou contar o que fiz quando cheguei na Torre mesmo assim. 

— Sabia que não ia aguentar ficar quieto quanto a isso. 

— Eu trouxe algo. — ignorou o comentário abrindo o zíper da mochila, agora jogada sobre o colchão. Retirou de lá uma garrafa grande, escura, que ela rapidamente reconheceu. Uma garrafa de vinho. Mas não era uma garrafa de vinho qualquer.

Piscou sequencialmente, chocada.

Acima de tudo, indignada. 

— Você roubou isso do armário do Richard? —  Há muito tempo Robin vinha guardando alguns vinhos caros no armário do quarto; só os abria em momentos especiais – o que nunca aconteceu – e estavam lá desde que se entendiam por gente, trancados a sete chaves, como se fossem uma espécie de tesouro precioso. — Por acaso ficou maluco?  

— Eu não roubei. — defendeu-se, muito ofendido com a acusação. — Só peguei emprestado.

— E ele sabe disso?

— É lógico — fitou a garrafa que segurava por alguns segundos, contemplativo. — que não.

— Então dá na mesma. — Aquilo só podia ser brincadeira, ou uma tentativa de acabar com o resto de sua paciência. — Ele vai te matar se descobrir. E depois me matar.  

— Ele nem vai notar, Rae. Tem umas quinze dessa naquele armário. — Ravena meneou a cabeça. — Qual é... Você vai mesmo perder a oportunidade de experimentar o vinho do Richard? Essa safra é super antiga.  

— Você sabe que eu não bebo.

— Te digo com convicção que vinho é muito melhor que cerveja.

Fitaram-se em silencio, Mutano tentando soar convincente e Ravena analisando os detalhes do rosto, reconhecendo aquele brilho nos olhos verdes.

Um brilho determinado.  

Suspirou pesadamente, sabendo que nada, absolutamente nada, do que dissesse ou fizesse o faria mudar de ideia.

— É bom que essa presepada valha a pena. — murmurou, atirando-se na cama. Garfield entregou a garrafa a ela, o sorriso emoldurando os lábios.

— Vai valer. O pior que pode acontecer é recebermos um sermão.

— Ou sermos mortos.

— É. Ou sermos mortos. — virou o rosto para o notebook, onde a série ainda rodava. — Sério, por que você estava assistindo um programa de noivas?

— Sem perguntas difíceis, por favor.

+

— Ok, admito, você estava certo. Vinho é mil vezes melhor que cerveja. — Ravena riu escandalosamente com Garfield, empurrando a garrafa para ele. — Não que eu esteja gostando. Ainda odeio beber. É estúpido.

Deveria ser nove ou dez da noite. As cortinas fechadas, porém, não permitiam que tivessem certeza. De qualquer maneira, o horário não tinha importância – Ravena não estava suficientemente sóbria para se importar e o rapaz, mesmo que não conseguisse ficar bêbado graças aos poderes, estava se divertindo demais para se preocupar com algo tão irrelevante.

Naquele instante, estavam aconchegados embaixo de uma coberta, tentando não pegar friagem. O tempo esfriou nas últimas horas e os dois começavam a se arrepender por não terem colocado roupas mais quentes para passarem a noite. Deitado entre as pernas de Ravena, Garfield estava muitíssimo confortável, com a cabeça descansado no ombro dela. Os dedos finos acariciavam seu cabelo e ele inclinou a cabeça para trás, para poder ver-lhe o rosto. Mesmo que estivessem mergulhados na escuridão, a visão noturna permitiu com que visse claramente o rosto dela, todo risonho e avermelhado pelo álcool.

— É. — ele respondeu entre uma risada, apanhando a garrafa, achando engraçado aquela nova faceta. Não que ela estivesse, de fato, bêbada. Só parecia mais solta, relaxada. — Diz isso, mas bebeu metade da garrafa. Até que você está indo bem para quem nunca encheu a cara.

Ravena rolou os olhos, exibindo um meio sorriso.

— É claro que estou. Só não entendo por que você bebe, sendo que não pode ficar bêbado. — desceu os dedos para as bochechas do rapaz, sentindo o calor emanar dele. O contato de suas peles, de alguma forma, foi eletrizante. —  Por que se dá o trabalho?

— Não sei. — falou, simploriamente. — Para ser sincero, é a primeira vez que penso a respeito. Acho que é só para me enturmar melhor com as pessoas ou me sentir parte de um grupo.

— Entendi.

Ravena ficou em silencio, movendo os dedos pelo rosto cheio de ângulos, notando como a pele dele era quente, muito mais que a de qualquer pessoa normal. Sabia que a sakutia era a responsável, mas não pôde evitar pensar em como gostava disso. Desse calor, dessa maciez atípica, tão gostosa ao toque. Dele ali, acomodado em seus braços. Mesmo que estivessem há horas na mesma posição, queria continuar sentindo aquele calor, aquela sensação boa da cumplicidade, do laço que os unia estreitando e firmando, cada vez mais forte.

Era estranho. Estranho que estivesse assim, agora, com um garoto em seu quarto. Estranho que não se incomodasse.

Estranho que desejasse ficar assim para sempre.

— Em que momento aconteceu? — a pergunta escapou sem que percebesse. Ela costumava pensar nisso, apesar de nunca ter, de fato, perguntado. Havia um quê de constrangimento, ao mesmo tempo que a curiosidade a corroía.

— O que? — ele arqueou as sobrancelhas e apertou os lábios, mesmo que ela não fosse enxergar.

— Sabe, — o som que ecoou foi o de um suspiro. — quando começou a gostar de mim? Foi só depois que nos beijamos? Ou foi quando começamos a passar o tempo juntos, no terraço?

Ele não respondeu imediatamente. Pareceu pensar.

— É difícil saber. — disse, por fim, sentindo-se repentinamente envergonhado pelo que estava prestes a revelar. — Mas não foi em nenhum desses momentos. Foi antes. Bem antes.

Ela ficou quieta. Antes. Tentou se lembrar de alguma vez que ele demonstrou qualquer sentimento por ela, antes do terraço e do beijo; nada, porém, lhe veio à mente. Antes disso, eles só brigavam o tempo todo.  

— Como pode ter sido antes? — sorriu, um sorriso sem dentes, subindo os dedos para os fios sedosos e esverdeados. — Você me odiava.

Ele viu a expressão no rosto dela. Aquela expressão pensativa, confusa, completamente perdida.

— Não sei como explicar. — falou. — Você sempre foi muito diferente de mim. Sempre muito séria, quieta. Eu odiava o fato de você não rir das minhas piadas, que não conversasse comigo e passasse o tempo todo trancada no quarto. Mas te odiar? Jamais. Como você não me dava bola, a única forma que encontrei de chamar sua atenção foi te importunando. Encher seu saco era meu propósito de vida. — ela riu alto. Garfield a acompanhou, achando graça das lembranças. Passaram por tantas coisas e ainda estavam ali, juntos. Pensar nisso fez com que um calor gostoso tomasse conta de seu coração.   

— É. Veja pelo lado bom, Gar — riu novamente. — Você foi o único até hoje que conseguiu me tirar do sério.

— Eu era mesmo insuportável.

— Com toda certeza. — ela suspirou, recostando melhor a coluna na cabeceira, encarando um ponto à frente na escuridão. — Mas você parou, depois de um tempo.

— É que... com o tempo percebi como você sempre foi muito madura, mesmo sendo tão nova. Carregava um fardo grande nas costas já naquela época, lidava com tantas coisas... Não era justo que te importunasse tanto. E, bom, — silenciou por um instante. — eu meio que já gostava desse seu jeito gótico.

Ela jogou a cabeça para trás, gargalhando de um jeito escandaloso. Garfield riu junto, afastando-se para sentar-se de frente a ela. Ravena encolheu as pernas, apoiando um dos braços no joelho.

— Eu não sou gótica.

— Pode apostar que é. — sorriu de canto, levando o gargalo da garrafa até a boca para tomar mais um gole do vinho. O álcool desceu queimando pela garganta. — Eu sei que eu vivia falando que você era só uma sem graça sem coração, mas acredite: sempre te achei a maior gata. — ela quase se engasgou, incrédula. — Sério. Eu achava o máximo esse seu estilo emo revoltada.  

— Não sei se fico ofendida ou lisonjeada.

— Foi um elogio.  

— Obrigada. Agora, me dê isso. — inclinou na direção dele, tentando pegar a garrafa de volta. Ele foi mais rápido, conseguiu desviar.

— Chega por hoje. Se continuar, vai acabar ficando bêbada de verdade.

Mesmo que a contragosto, Ravena concordou, pensando que ele estava certo. E mais sóbrio. Garfield tateou o colchão em busca da rosca. Ao encontra-la, tapou o a garrafa e se esticou para coloca-la na mesa de canto. Ravena observou-o silenciosamente por um segundo, sem conseguir, de fato, ver nada além da silhueta na escuridão. Ele se levantou em um pulo, quase tropeçando em uma caixa de pizza vazia.

— Acho melhor preparar algo para você, ou vai acabar com ressaca amanhã cedo. Pode me esperar um pouco ou vai morrer de saudades?

Como resposta, ela atirou um travesseiro na cara dele. Garfield gargalhou.

— Que mal humor. Se queria tanto ir comigo era só falar.

— Eu não disse que quero ir com você.

Ela falou isso, mas quando ele estendeu o braço para ajuda-la a levantar, não fez objeções. Conseguiu, com muito custo. Mutano colocou o braço dela ao redor dos ombros, apoiando-a pela cintura, enquanto caminhavam para fora. Ravena estava com dificuldade em equilibrar os passos, no entanto, até que se saiu bem.

— É por isso que beber é estúpido. — resmungou, infeliz, sentindo o álcool correndo por cada veia do corpo. Desviou o olhar rapidamente para o relógio de pulso, que marcava onze da noite. Ainda estava cedo – o que era bom. Ninguém voltaria para casa agora, o que evitaria muitos questionamentos. — Olhe só para mim, estou parecendo uma idiota.

— Pare de ser dramática e confesse que foi uma experiencia divertida. Nada pode ser mais divertido que beber e comer pizza.  

— Ok, tudo bem, foi uma experiencia divertida, — rolou os olhos. — mas a parte de ficar zonza não é divertido. A propósito, isso é normal?

— Sim.

— E o que vai preparar para mim na cozinha?

— Certamente, algo melhor que aqueles seus chás horríveis. — riu da careta emburrada que ela fez. — Chocolate.

— Odeio chocolate.

Ele a fitou como se estivesse diante de um extraterrestre cabeçudo, verde e de olhos esbugalhados.  

— Só uma pessoa problemática odeia chocolate.

— Eu sou muito problemática, então não deveria estar tão surpreso. 

Ele a deixou na sala, acomodada no sofá confortável, e só voltou meia hora depois, trazendo duas xícaras fumegantes, uma verde, outra roxa. Estendeu a roxa em sua direção, sorrindo abertamente.

— Para combinar conosco. — brincou, lançando uma piscadela para ela. Raven meneou a cabeça. — Como um casal.

— Não somos um casal.

— Nunca disse que somos. — sentiu uma imensa satisfação ao vê-la torcer o nariz. Não havia ninguém no universo melhor que ele na arte de tirá-la do sério, isso nem a própria Ravena negava. — Mas poderíamos ser. 

— Mas não somos.

— Eu sei. Mas poderíamos.  

Ela escorou em meio as almofadas, com os olhos brilhando perigosamente. Havia uma tensão quase palpável no ar.

— Isso é uma proposta? — questionou, quebrando o silêncio, ainda semicerrando as ametistas.

— Eu não diria proposta. Está mais para uma insinuação. — sorriu de um jeito maroto, contemplando-a bebericar o chocolate. — Só quero ver sua reação, embora ainda não esteja clara para mim.

— Por que nunca me pergunta as coisas diretamente? Aquele dia no acampamento foi a mesma coisa.  

— E arriscar levar um fora? — riu. — Jamais.

O metamorfo levou a borda da xícara até a boca sem quebrar o contato visual, notando que ela não parecia inclinada a deixar o assunto de lado. Percebeu isso pela forma com que desviou os olhos para os próprios pés, e levou uma mexa do cabelo para trás da orelha.

Sempre fazia isso quando pensava demais. Toda maldita vez.

— Eu devia ter ficado quieto, não é? — quebrou o silêncio. Ravena, resmungando, cruzou uma das pernas, muitíssimo aborrecida.

— Devia. Agora não consigo parar de pensar nisso.

— Prefiro falar sobre isso em uma situação mais apropriada. Não agora, tomando chocolate e usando esse pijama velho.

— Estamos em uma situação apropriada. — sorriu de canto. — Olhe só para nós dois, nessa sala escura, fedendo à álcool. Não tem como ser mais romântico que isso.

— Quer tanto assim que eu faça um pedido de namoro? — devolveu o sorriso, meio incrédulo. — Tem certeza de que não é o álcool falando mais alto?

— Só para constar, eu não estou bêbada, só levemente alterada. — defendeu-se. — E, francamente, Garfield, se você me pedisse em namoro, bêbada ou não, eu aceitaria. — desviou o olhar para o colo, sem acreditar no que acabara de falar. Céus, só podia estar maluca para dizer algo assim, tão diretamente. 

Quando o mirou novamente, percebeu que havia feito merda.

Mutano estava com cara de quem ia desmaiar.

— Certo, talvez o álcool tenha falado mais alto agora, — engoliu o seco, sentindo-se estúpida, pensando que nunca mais chegaria perto de uma garrafa de vinho. Que desastre! — eu jamais diria isso em voz alta estando cem por cento sóbria, mas não deixa de ser verdade.

Encararam-se por um minuto, Ravena com a expectativa queimando e o rapaz embasbacado, percebendo que ela estava mesmo falando sério. 

Sem pensar muito, afundou no sofá ao lado da moça, quase derramando o chocolate quente no processo, ainda sem acreditar que estavam mesmo tendo essa conversa. 

— Pela Mãe Natureza, — murmurou. — o que isso significa? Nós estamos namorando? 

Ela ficou vermelha de vergonha. Levou a xícara até a boca para não ter que olhar na cara dele.

— Só se você quiser. — e deu de ombros, tentando fingir que não era nada demais, mesmo que o coração batesse loucamente.

— E você acha que eu não quero?

— Vai saber.

— Eu não sou louco para recusar algo assim, minha querida.

Encararam-se outra vez, rindo, nenhum dos dois sabendo dizer se por nervosismo ou felicidade. Talvez as duas coisas. Ravena apertou a xícara com mais força, sem ter a mínima ideia do que fazer; Garfield, porém, agiu. No momento em que as risadas cessaram, ele inclinou para selar seus lábios, sem conseguir evitar sorrir entre o beijo. As línguas chocaram em um encontro brusco e, se não fosse pela maldita xícara em sua mão, a teria puxado para mais perto.

Ainda assim, foi intenso. Diferente. Afastaram só quando o ar faltou nos pulmões, as respirações ofegantes, os lábios inchados.

Delicadamente, retirou uma mecha do rosto dela e esticou o mindinho. Embora fosse infantil, ela não conseguiu abafar a risada, achando o jeito dele fofo.  

— Namorados?

Ela entrelaçou o próprio mindinho ao dele. 

— Namorados.

Era tão idiota. Tão estupidamente clichê. Contudo, Rachel nunca sentiu tanto na vida.  Ela realmente sentia. Aquele ardor no peito, a sensação que sobe quente, embrulha o estômago e acelera o coração. Que te faz perder o rumo ou qualquer pensamento lógico.

Só que algo a trouxe de volta a realidade. Algo que a atingiu como um balde de água fria. 

O sorriso em seu rosto morreu. O rapaz percebendo isso, inclinou, preocupado, e tocou-lhe o rosto. 

— O que foi?

— Há um pequeno problema nisso tudo. 

Ele franziu as sobrancelhas, sem entender. 

— O que, exatamente? 

Houve uma pausa. Ravena suspirou pesadamente. 

— Como vamos contar isso para todo mundo?

Ele engoliu o seco pensando que, de fato, isso era um problema. 

E um problema dos grandes. 


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Notas finais do capítulo

Esse capítulo quase não saiu gente, dias trabalhando nele. O que acharam?



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