Tempos Modernos escrita por scararmst


Capítulo 15
XV




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— Mas, tipo… e a Elizabeth Olsen?

Miguel suspirou, um pouco cansado, mas abrindo um sorriso um tanto convencido em seguida. Era manhã, antes da primeira aula, e já faziam alguns dias que Arthur chegava bem cedo, sentava-se em sua cadeira à frente de Miguel e o entupia de perguntas. O garoto tinha prometido na lanchonete que não aconteceria de novo, e de fato, não só não tinha acontecido, como ele estava curioso sobre tudo. Intrigado. Pesquisando e perguntando.

— Ela é bonita, sim. Mas não, nenhum interesse.

Arthur franziu a testa. Miguel tinha conseguido explicar para ele os detalhes mais nefastos e inapropriados de seus relacionamentos anteriores. Arthur queria aprender, e Miguel tinha decidido responder tudo, por mais absurda que a pergunta fosse, pois sabia como esse processo era importante para ter Arthur como um aliado. E para sua enorme surpresa, ele tinha entendido e aceitado toda a parte carnal da coisa, mas era com o mais básico, atração e sentimentos, que não conseguia lidar.

— Não consigo entender — ele respondeu, coçando a cabeça, e passando páginas no celular.

É claro, esse progresso desequilibrado era resultado da natureza curiosa e inteligente de Arthur. Ele tinha conseguido sentar com seu celular e fazer toda a sorte de pesquisa sobre atração sexual em gays, sobre sexo em si, sobre gírias, sobre porque não podia falar “viado” e qualquer outra coisa relacionada, mas não dava para encontrar uma página no google dando uma definição científica de amor.

— Pense assim — Miguel começou, decidindo tentar uma nova abordagem. — Qual sua comida preferida?

— Pizza.

— Ok. E uma que você não gosta de jeito nenhum?

— Hm… Azeitonas.

— Certo. Eu não gosto de pizza e gosto de azeitonas. Entendeu?

Arthur franziu a testa, parecendo igualmente confuso e agora talvez até um pouco ofendido.

— Quem é que não gosta de pizza? Isso é possível?

— Ah… sim, é. Eu gosto de pizza, inclusive, só estava te apresentando uma analogia.

— Hm…

Arthur deu a resposta mais simples, e voltou a batucar os dedos na mesa. Miguel conferiu o relógio em cima do quadro da sala, marcando um minuto para o início da aula. Zé Dois estava em sua cadeira no meio da sala, lendo um livro, e só naquele momento Clara e Pedro entraram, conversando em voz baixa e acenando para Miguel e Arthur antes de irem para suas mesas. Nem sinal de Lucas. Devia ter dormido mais que a cama naquele dia.

— Mas e se a pizza tiver azeitonas? — Arthur perguntou, levantando a sobrancelha, desafiador. Parecia muito orgulhoso de seu raciocínio.

— O que você faz? — Miguel respondeu, já tendo certeza de qual seria a resposta, mas querendo ver Arthur dizê-la assim mesmo.

— Tiro as azeitonas né.

— Aí você pode ficar com a pizza e me dar as azeitonas que tirou, eu como. E tem quem goste de pizza e de azeitona, e acaba comendo os dois.

— Botar azeitona na pizza estraga — Arthur comentou, dando de ombros. — Mas entendi o ponto de vista. É só… diferente.

— Não é mais interessante assim? — Miguel perguntou, agora com um sorriso leve no rosto. — O mundo ia ficar meio sem graça se fosse todo mundo igual, eu acho.

Vinha tentando abordar o assunto com um ponto de vista otimista e pacífico do assunto, na esperança da energia positiva transferir para Arthur de alguma forma. Zé Dois era, no fim das contas, o único que conseguia conversar com ele a ponto de fazê-lo mudar de ideia sobre alguma coisa. O jeito dele de ser tinha de ter algo a ver com isso, e de fato, parecia.

— Hm. Talvez. Acho que sim — Arthur respondeu, e o sino da primeira aula tocou. — Seu namorado tá atrasado.

Talvez o maior avanço fosse Arthur estar se referindo aos dois como namorados, mesmo antes deles mesmos fazerem isso. Na primeira vez em que aconteceu, nem Miguel nem Lucas tiveram coragem de corrigir, de tão surpreendente a atitude tinha sido. Nunca tinha imaginado conseguir assim seu primeiro namoro, mas bem, o mundo dava voltas estranhas às vezes.

— Deve ter escapado do despertador — Miguel respondeu, embora um arrepio estranho tivesse lhe percorrido a coluna. — No segundo horário vai estar aí.

— Provável. Ah, a professora vai começar. Depois a gente conversa mais.

E Arthur se virou para a frente de uma vez.

Miguel tentou muito firmemente prestar atenção na aula depois disso. Os vestibulares se aproximavam cada vez mais, e qualquer aulinha de revisão já era de extrema importância, mas não conseguiu se concentrar. Lucas não tinha lhe mandado mensagem para falar que estava atrasado do lado de fora, e nunca tinha se atrasado desde quando Miguel tinha chegado na escola.

Não ajudava que estivesse se sentindo tão inquieto. Podia ser só um atraso, é claro, mas não era isso que sua intuição o dizia. Nunca tinha sido o tipo intuitivo, o tipo de sentir as coisas antes de acontecerem, mas aquela inquietude em seu corpo não parecia querer passar.

Ele passou o primeiro horário batucando o lápis no caderno e conferindo o celular, esperando um bom dia ou qualquer coisa indicando um atraso simples, mas não recebeu nada. Quando enfim o horário acabou, estava quase saltando da cadeira para conseguir ver a porta da sala, na espera de uma boa notícia, enquanto tentava se acalmar. Pessoas faltavam às vezes. Um mal-estar, uma emergência, várias coisas poderiam ter acontecido. Não precisava ser um problema sério e ruim.

Mas ainda assim, sentia como se algo estivesse corroendo seu subconsciente. Nunca tinha sido de acreditar em pressentimentos ou qualquer coisa do gênero, mas daquela vez teve de admitir, não tinha outra explicação para seus sentimentos que não fosse um pressentimento ruim. E, de fato, seus temores se confirmaram ao ver Lucas entrar na sala.

Sem maquiagem, com o cabelo penteadinho para trás e bastante cabisbaixo. Ele olhou para Miguel uma vez ao entrar na sala. Não disse nada, nem mesmo o cumprimentou, deu as costas e seguiu em direção à sua carteira.

Miguel primeiro deixou o queixo cair, devagar, sentindo uma mistura violenta de mágoa e ressentimento por ter sido ignorado daquela forma. Pensar em Lucas e passar tempo com ele tinha se tornado uma parte corriqueira e muito adorada de seu dia, e vê-lo o ignorar daquela forma ao chegar na sala e olhar para ele como se mal se conhecessem, foi como levar uma facada no peito.

Mas não houve muito tempo para mágoa. Miguel percebeu muito rápido o quão correto seus mau-pressentimentos tinham sido. Alguma coisa tinha acontecido, e não tinha sido pouca coisa a julgar pelo comportamento de Lucas ao entrar na sala. A facada no peito de Miguel logo se transformou em um aperto, e ele quis se levantar para ir até ele perguntar se estava tudo bem, mas a professora do horário seguinte entrou em sala rápido demais para isso.

Miguel pegou o telefone, escondendo-o embaixo da mesa e começando a digitar uma mensagem qualquer para perguntar como Lucas estava, mas nunca conseguia terminar a frase. Não precisava ser um gênio para perceber que algo sério tinha acontecido, e Miguel não conseguia tirar de sua cabeça a forma como Lucas tinha olhado para ele. Sério, quase frio. Quase como se não o conhecesse.

Desistiu, pousando o celular na mesa, pegando sua caneta e tentando voltar a prestar atenção na aula. Teria sua chance de conversar com Lucas, nem que fosse apenas no intervalo, e dependendo do ocorrido seria mesmo melhor se falarem em pessoa. Ou ao menos dizia isso a si mesmo, tentando colocar os pensamentos em ordem e não se preocupar demais com algo que sequer tinha acontecido.

Nem mesmo sabia o que estava lhe preocupando tanto, e por volta da metade do terceiro horário percebeu uma similaridade assustadora com o mesmo tipo de preocupação a qual sentira ao ter a foto vazada na internet, ou antes disso a cada momento no qual tinha achado que algo de ruim iria lhe acontecer em virtude de seus amigos descobrirem seu segredinho.

Tinha esperado que depois de ter acertado tudo com eles, da foto ser apagada, depois dos problemas acabarem, a ansiedade sumiria junto, mas isso não estava acontecendo, e não sabia dizer o motivo. Não gostava dessa sensação, e não sabia como proceder para se ajudar. E nem para ajudar Lucas.

Pois tinha certeza, algo tinha acontecido e ele precisava de ajuda. Podia entender Lucas estar sem maquiagem ao chegar atrasado na escola, se era Clara quem emprestava tudo para ele antes do primeiro horário, mas por mais triste e vazio que o garoto se sentisse sem as pinturas, não era para chegar naquele ponto. E não justificava o cabelo penteadinho daquele jeito.

Entre o segundo e o terceiro horário, Miguel viu Clara se levantar correndo para falar com Lucas antes do outro professor chegar, e quis fazer o mesmo, mas algo na postura tensa dos dois enquanto se falavam o fez se deter. Preferiu deixar essa primeira conversa acontecer apenas entre os dois, mesmo ansioso e preocupado com o garoto. Mais uma vez não houve muito tempo disponível antes do professor do terceiro horário aparecer, e como Miguel tinha imaginado, foi apenas no intervalo que se viu com tempo para conversar com seu namorado.

Quando ele se levantou para isso também, foi impedido na metade do caminho por Clara. A garota se levantou de sua mesa às pressas, bloqueando o caminho entre os dois e fechando a mão no braço de Miguel.

— Precisamos conversar lá fora. Todos nós — ela completou, fazendo um gesto com a mão para Pedro.

Talvez Pedro já estivesse sabendo de alguma coisa, pois ele levou Zé Dois e Arthur para fora da sala consigo, e logo os cinco estavam reunidos ao lado da porta, em um pequeno círculo. Clara parecia muito preocupada, e isso piorou em Miguel a impressão que ele tinha tido mais cedo: algo estava errado. Não tinha sido apenas paranoia ou algum medo cego. Era real.

— Eu vou ser bem direta — ela comentou, com a voz baixa, ao perceber que tinha a atenção dos quatro sobre si. — Se lembram da foto da festa? Aquela com o você e o Lucas?

Como poderia esquecer? Tinha ficado em pânico por dias, esperando que o dia seguinte seria aquele no qual a foto chegaria em quem não deveria chegar, algum colega da escola antiga ou qualquer outra pessoa com poder para transformar sua vida em um inferno. Em retrospecto, lembrando-se agora do evento na lanchonete no qual seus amigos tinham o ajudado a colocar os antigos colegas em seu devido lugar — ainda parecia um sonho psicodélico, tudo tinha acontecido muito de repente — seu medo parecia muito medíocre. Agora, depois de tudo aquilo, Miguel sabia exatamente o quanto seus amigos estavam comprometidos com mantê-lo seguro e feliz, e se sentia muito grato por isso.

Mas se Clara estava perguntando isso agora, com algo sobre Lucas pairando no ar, era porque algo tinha acontecido, e não tinha nada a ver com ele. Tinha a ver com Lucas.

— É claro — Pedro respondeu. — Tive de pedir pra mamãe para apagar. O que tem a foto?

— Antes dela apagar, ao que parece, a foto circulou um pouco em algum grupo de pais de alunos aqui da escola… Os pais do Lucas acabaram vendo.

A sensação que Miguel experimentou naquele momento foi de uma freada brusca a cem quilômetros por hora. Sua mente parou. Seu corpo congelou no lugar, e seus olhos perderam o fogo por um instante. Uma batalha aconteceu na mente de Miguel, uma briga de lados de seu subconsciente tentando interpretar aquela informação de diferentes formas. Mas não havia briga capaz de mudar o único resultado possível daquilo. Miguel tinha conhecido o pai de Lucas. Tinha visto o garoto chegar em sua casa completamente fora de seu próprio elemento para manter uma fachada para o homem. Não havia cenário no qual o pai dele descobrindo sobre o namoro dos dois não terminasse mal. Era impossível.

Os olhos de Miguel se encheram de lágrimas, e ele piscou os olhos de repente, passando as mãos no rosto, tentando os secar antes de escorrer alguma coisa. Algum impulso masculino não querendo permití-lo chorar? Ou algum desejo racional de se manter focado? Não sabia dizer. Engoliu em seco, respirando fundo e lutando contra seus impulsos mais primitivos para manter a cabeça fria. Não adiantava sentir raiva agora, e nem correr para dentro da sala sem saber o que o pai de Lucas tinha feito. Poderia piorar tudo. Precisava ter calma, como seu pai vivia lhe dizendo para ter. Se houvesse algum momento em sua vida no qual esse ensinamento era mais importante que nunca, era agora.

— O que aconteceu? — Zé Dois perguntou, e Miguel agradeceu que ele tivesse a paciência mental para analisar a situação aos poucos antes de tentar fazer alguma coisa.

Clara suspirou, abaixando o rosto. Parecia um pouco envergonhada, mas mesmo de cabeça baixa e voz contida, ela não se impediu de falar, para alívio de Miguel, quem queria muito receber respostas.

— Lucas não quis me dar muitos detalhes, mas não deve ter sido legal… Ele sempre me ligava ou mandava mensagem para contar quando acontecia algo ruim em casa, mas não fez isso dessa vez. O pai brigou muito, Lucas não me disse exatamente como ou que tanto, mas muito, isso é certo. Disse que não quer mais ele andando comigo porque ficar de amizade com menina que deixou ele “boiolinha” assim. E proibiu ele de falar com você, Miguel. Não deu mais nenhum detalhe, mas não acho que Lucas veio penteadinho assim pra escola à toa.

Clara parou de falar. Pedro atravessou a roda para dar um abraço na namorada, e Miguel trocou um olhar com Zé Dois, quase implorando com os olhos por algum conselho dele, como ter paciência agora, o que devia fazer… Pois não sabia. Sentia-se sufocado e estava lutando com toda sua força contra a vontade de correr para dentro da sala e abraçar Lucas e dizer a ele que ficaria tudo bem, pois não sabia se isso poderia piorar a situação dele agora.

— O que mais? — Arthur perguntou, de repente. — O que aconteceu em casa? Ele tá de castigo? Ainda pode sair com a gente? Ele…

— Eu não sei, Arthur! — Clara exclamou, agora levantando a cabeça do ombro de Pedro e enxugando lágrimas no rosto. — Eu não sei, tá legal? Ele não quer conversar comigo! Por que você não vai lá e conversa com ele? Certeza que você é o tipo de amigo que o pai dele ia aprovar!

A roda caiu em silêncio por mais um instante. Miguel receou que Arthur xingasse, ou falasse algo insensível, e de fato o garoto chegou a abrir a boca, mas quaisquer que fossem as palavras dele morreram na garganta e Arthur fechou a boca, dando as costas e voltando para dentro da sala, deixando os quatro ali, Pedro e Clara abraçados; Zé Dois e Miguel encarando eles e a porta da sala.

Depois de alguns instantes, Zé Dois foi espiar na sala, e voltou dizendo que Arthur estava fazendo exatamente o sugerido e conversando com Lucas. Deviam esperar, aparentemente.

Esperar era tudo o qual Miguel poderia fazer, impedido de sequer mandar uma mensagem para Lucas com medo do pai dele inspecionar o telefone do garoto depois, e sabendo como Lucas não iria querer falar com ele agora, estando muito assustado para isso. Era exatamente a situação na qual Miguel tinha estado até poucos meses atrás, não era? Com medo das conversas mais básicas e de consequências às vezes até irracionais para elas?

Ele abaixou a cabeça, abraçando os próprios braços e sentindo um calafrio assustador. Desejou receber um abraço. Felizmente, Zé Dois estava ali, e sabia ler as reações do corpo de alguém melhor que qualquer outro. O garoto o puxou para perto, e Miguel o apertou, tão forte quanto sentia seu coração se esmagar agora, afinal, era tudo sua culpa. A foto só existia porque tinha agarrado Lucas naquela maldita pista de dança. Tinha causado isso sozinho.

— Por que eu quebro tudo em que eu coloco a mão? — Miguel perguntou, agora sentindo as lágrimas subirem aos olhos e a garganta se apertar.


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