Tempos Modernos escrita por scararmst


Capítulo 14
XIV




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Miguel julgava injusta a forma como sua mente operava desde o dia anterior. Ficou o dia inteiro atualizando a página na rede social, quase esperando algo terrível acontecer, uma série de comentários ruins ou qualquer outra coisa, nem sabia muito bem o que. Mas nada aconteceu. Pelo resto do dia, nada apareceu na internet relacionado ao seu nome, e depois da foto ser apagada, realmente pareceu nunca ter existido.

Queria acreditar que esse era o fim de tudo, mas fosse paranoia, precaução ou pessimismo, não conseguia. Depois de passar o resto do dia muito desanimado, chegou na escola bem cabisbaixo no dia seguinte, indo para sua mesa em silêncio sem nem mesmo procurar os amigos na sala, sentando-se lá e deitando a cabeça em cima da mochila.

Foi Lucas quem veio o procurar depois. O garoto se sentou na cadeira de Arthur, à sua frente, e estendeu a mão, procurando os dedos dele com os seus. Miguel deixou o toque acontecer, entrelaçando os dedos, mas sem levantar o rosto. Ainda sentia vergonha.

Nunca tinha gostado de chamar atenção. Era extrovertido, mas as pessoas confundiam isso com necessidade de aparecer, e não era o caso. Gostava de conversar, passar tempo com os amigos e não estar sozinho, mas isso não queria dizer dele gostar de ser o centro das atenções, principalmente por um motivo como esses. É claro que estava com vergonha. Estava com vergonha por saber daquela foto vazada poder ser usada para fazerem chacota de si.

E não era uma questão relacionada aos seus próprios sentimentos. Ainda achava, como tinha concluído no dia anterior, que beijar Lucas tinha sido uma das melhores decisões de sua vida. Não tinha vergonha de seus sentimentos e nem ressentia sua relação, ao menos não até virar motivo de piada. Ou de coisa pior.

— Como está se sentindo hoje? — Lucas perguntou, algum tempo depois, a voz baixa e calma, ainda segurando a mão dele.

Não sabia. Tentou avaliar os próprios sentimentos, e decidiu que não sentia nada. O medo, a ansiedade, tinha tentado afogar isso tudo com tanta força que agora só queria deitar a cabeça ali e ficar quieto até o fim do dia.

— Não sinto — respondeu, apenas, ainda sem levantar o rosto.

— Miguel… Eu sinto muito… — Lucas murmurou, depois de um tempo.

— Não é sua culpa. Literalmente. Quem beijou fui eu.

— Se te serve de consolo… eu gostei.

Miguel abriu um sorriso pequeno. Servia.

Ele levantou o rosto, enfim, apoiando o queixo na mochila e encarando o garoto. Lucas parecia realmente preocupado. Não queria preocupá-lo com seus problemas, mas parte de si tinha uma vontade ainda maior de poder dividir tudo com alguém pra variar. E se pudesse dividir esse tipo de coisa com alguém seria Lucas, não é? Quem mais iria entender?

— É idiota eu ainda ter esse receio todo?

Lucas balançou a cabeça em negativa, e parte de Miguel nem mesmo se surpreendeu com a resposta. Não sabia o motivo de perguntar se nem mesmo esperava outra coisa, mas ainda assim, ouvir saindo da boca de Lucas foi um grande conforto.

— Você passou por algo pesado — ele comentou, bem quando o sinal para a primeira aula estourou. — Vai demorar para superar tudo. É normal. Não se cobre demais, ok?

Bem Miguel queria não se cobrar tanto, mas não sabia como fazer isso. Apenas concordou.

— Olha, eu estava conversando com o pessoal — Lucas continuou, agora olhando para a porta bem rápido para conferir se o professor estava chegando. — Quer ir à lanchonete hoje? A gente tem aula de tarde de qualquer forma, então é uma boa para almoçar fora, não é?

Almoçar fora? Miguel engoliu em seco por um breve instante, os dedos se flexionando em um punho fechado e apertado de receio. Mas não podia viver com medo. E aquele convite, de certa forma, era a forma de Lucas o dizer isso. Sabia que era. A lanchonete seria um lugar seguro, ainda mais com todos seus amigos lá para resguardá-lo se algo acontecesse. Continuava receoso ainda assim, mas decidiu ignorar a vozinha no fundo de sua cabeça o dizendo para repensar. Não ia repensar nada. Ia à lanchonete, e ia comer com seus amigos, e depois ia voltar para a escola. Pronto. Não era nada de mais.

— Sim, é uma ótima ideia. Irei com vocês.

Lucas sorriu, o suficiente para dar o resto de certeza a Miguel de ser realmente uma excelente ideia, e então saiu correndo para sua mesa antes do professor precisar mandá-lo.

Miguel passou o resto do dia pensativo. Ainda se pegava conferindo o celular sempre que possível, nem um pouco perto de se ver livre do nervosismo corroendo sob sua pele, mas sendo muito bem sucedido em afogar tal preocupação ao pensar em um almoço divertido com seus amigos. E Lucas.

Não que Lucas não fosse seu amigo, mas a palavra começava a parecer muito simplista para descrever a relação deles. Ainda assim, namorado era algo muito pesado para o momento, não era? O que deveria dizer? Distraído, fazendo suas anotações e assistindo as aulas se surpreendeu ao se pegar mais interessado nesse pequeno detalhe que em qualquer preocupação. O dia veio e se foi em uma velocidade incrível, e quando a hora do almoço chegou, embora ainda nervoso, Miguel estava mais ansioso para passar um tempo com eles que com medo do que poderia acontecer.

Eles começaram a seguir para a lanchonete, Miguel e Lucas lado a lado no final da pequena fila de dupla deles. Vez ou outra, quando andavam em uma calçada estreita, Miguel sentia seus dedos roçarem nos de Lucas, e em todas as vezes os dedos do garoto se dobraram um pouco, quase como se esperassem ser segurados.

Na terceira vez, Miguel não resistiu e fez exatamente isso, entrelaçando seus dedos nos do garoto com um pouco de cuidado, mas firmeza. A cada pequeno gesto, a cada novo passo de coragem dado, o sorriso nos lábios de Lucas era uma confirmação e um encorajamento. Era isso mesmo o que deveria fazer.

Mesmo assim, soltou a mão do garoto ao chegarem na lanchonete em si. Lucas não reclamou, nem expressou qualquer sinal de se importar com a atitude de qualquer forma. Em vez disso, já levantou o rosto para se distrair com o cardápio nas telas em cima do caixa.

— Quer dividir um combo de duas pessoas? — Lucas perguntou, indicando algumas opções. — Eu não sou de comer muito e sempre divido com a Clara, mas agora o Pedro paga os lanches dela então eu perdi a dupla — completou, rindo baixinho.

Miguel até comia bastante, embora nem de perto o mesmo tanto que Arthur, então poder pegar um lanche maior por dividir o preço com alguém era uma ideia muito boa.

— Quero sim. Eu gosto do que tem pimenta.

— Você gosta de pimenta? — Lucas perguntou, curioso, com um sorriso desafiador no rosto. — Interessante.

— Por quê? Você gosta?

Lucas deu de ombros, colocando-se na fila do caixa com Miguel e decidindo pelo combo número três, de hambúrgueres com pimenta jalapeño.

— Gosto. Clara odeia, nunca dava para pegar o combo de pimenta com ela. Dei sorte.

Miguel abriu um sorriso, sentindo um impulso de passar o braço pelos ombros de Lucas e se contendo no último instante. A lanchonete estava cheia. Mas não pode deixar de sentir o coração se aquecer com aquela pequena revelação. Havia algo de muito mágico em ir descobrindo essas pequenas coisas sobre Lucas, como o interesse por filmes de ficção científica e um gosto por comer pimenta.

Não sabia o motivo desses detalhes o surpreenderem tanto, ou ao menos se recusava a aceitar o motivo como sua própria ignorância. Tinha visto Lucas como um garoto muito gay de maquiagem — hoje o iluminador era um pouco azul — e não tinha parado para pensar que se ele mesmo era um garoto gay com diversos gostos nada relacionados à sua sexualidade, então Lucas também os teria.

Pegaram os lanches, e se sentaram em uma mesa do segundo andar daquela vez. Miguel se sentou de frente para Lucas para dividirem a bandeja, e logo os outros se juntaram a eles. E não demorou nada para começarem a conversar sobre alguma bobagem qualquer.

— Eu não aguento mais as provas do Lorisval — Arthur resmungou, passando as mãos no cabelo, indignado. — Sério gente, tudo bem, o ENEM e o vestibular estão chegando, mas isso não seria um ótimo motivo pra dar um pouco de paz pra nós em vez de tentar comer a nossa alma com angu?

— Ele só está tentando preparar a gente pra pressão — Zé Dois respondeu, pegando uma batata da bandeja. — Acho que é uma forma de lidar com o problema.

— Zé, de que adianta eu passar na universidade se eu ainda estiver preso cursando o terceiro ano?

Miguel riu, involuntário. Ninguém na escola ia segurar alguém com a média de Arthur que tivesse sido aprovado na faculdade.

— Se você não passar de ano, quem sou eu com meu sonho do ITA — Pedro respondeu, dando uma mordida bem grande em seu hambúrguer.

Arthur voltou a resmungar, e logo todos estavam falando uns por cima dos outros de novo. Não era o tipo de ambiente ou energia o qual Miguel acompanhasse, então voltou a se focar em seu lanche, decidindo deixar discussões mais enérgicas com seus amigos. Estava cansado, sequer sabia direito de que, mas duvidava ser algum efeito reflexo de toda a situação com as postagens na internet. Estava ficando um pouco mais tranquilo quanto às repercussões da foto — inexistentes, até então — e vinha tentando convencer seu cérebro a se acalmar em relação a isso tudo.

Não dava para forçar esse sentimento em si mesmo, sabia, mas podia ao menos ir absorvendo a mensagem aos poucos, e era o que vinha fazendo. Ou tentando fazer. E teria sido simples, quase fácil, se o universo não estivesse decidido a estragar seus planos de alcançar paz de espírito.

Já tinha comido metade do sanduíche quando reconheceu o grupo de garotos chegando no segundo andar da lanchonete. Caio era o primeiro da fila, e os outros vinham atrás, rindo muito alto e fazendo algumas piadas as quais Miguel não conseguia identificar. O garoto pensou por um milissegundo em abaixar a cabeça e sumir, mas no exato instante em que o fez, Caio olhou para ele, e então deu um sorrisinho muito cruel em resposta.

— Ora ora — o garoto comentou, em voz muito alta.

Miguel queria sumir. Apertou as mãos em punhos fechados, tentando se impedir de tremer. A cor fugiu de seu rosto e devia ter ficado muito óbvio o que aconteceu, pois seus amigos se viraram para encarar Caio, de onde o som tinha vindo, e pareciam saber muito bem o que estava acontecendo.

— Alguma escola te quis depois do que você aprontou? — Caio perguntou, balançando a cabeça em negação. — Tsc tsc, que escolinha de merda…

O ar estava pesado. Miguel conseguia sentir tensão se acumulando em cima da mesa, e sentiu Lucas esticar a mão. Queria segurar a dele, Miguel percebeu. Oferecer conforto. Deixou, sem pensar muito, apenas pensando na necessidade física de segurar algo e não reparando no significado do gesto naquela situação. Apertou a mão do garoto, focando-se apenas em se acalmar. Logo percebeu como seu reflexo tinha o traído.

— Ih olha lá, ele arrumou uma bichinha pra namorar — Caio riu, cruzando os braços e fazendo algumas poses muito pejorativas.

Miguel sentiu o sangue ferver. Oh, não. Queriam falar dele? Falassem dele. Zoassem, estragassem seu dia. Mas Lucas não merecia isso. Não ele…

Mas mesmo com todo o impulso de defender Lucas se aquecendo em seu sangue, não conseguiu se levantar. Não conseguiu fazer nada. Estava congelado. Soltou a mão de Lucas, enfim percebendo o que tinha feito, e percebeu que se sentia zonzo. Por alguns segundos, ninguém falou nada. Então, algo aconteceu.

Arthur se levantou. Ele cruzou os braços, erguendo o queixo e analisando Caio de cima a baixo. Miguel se sentiu muito ansioso, de repente. Sabia onde isso estava indo e não sabia nem mesmo se queria que acontecesse ou não.

— É esse o cara? — Arthur perguntou, virando para Miguel e apontando para Caio sem nenhuma discrição. Muito devagar, e ainda receoso, Miguel acenou com a cabeça confirmando que sim.

Os instantes seguintes foram muito rápidos. Em um momento Arthur estava de pé ali, e no seguinte seu punho estava enterrado na cara de Caio. Um “creck” se fez ouvir e Caio levou a mão ao nariz, choramingando. Sangue escorria por seu rosto.

Depois disso a coisa saiu de controle de vez. Os amigos de Caio decidiram se amontoar contra Arthur, mas Pedro e Zé Dois já estavam de pé e de repente o segundo andar da lanchonete virou o palco de um battle royale. Mesmo Miguel, sentado e congelado no lugar por um bom tempo, percebeu ali a sua chance de finalmente os fazer pagarem por algo, principalmente por terem ofendido Lucas.

— Miguel, não se atreva… — Lucas comentou, mas Miguel já estava dando a volta na mesa.

Talvez fosse o fato de ter amigos para se defender pela primeira vez. Talvez fosse o óbvio treinamento de Arthur em alguma arte marcial ou o tamanho de Zé Dois que mesmo magro era alto o suficiente para valer por muita força. Ou talvez fosse o sentimento de justiça. Mas, qualquer que fosse o motivo, dessa vez Miguel sentiu uma força que não sabia que tinha. Toda a raiva, todo o medo acumulado, de repente explodiu. Miguel enxergou vermelho por um bom tempo, até finalmente perceber que estava chutando algum deles no chão e as mãos de Lucas começaram a puxá-lo para trás.

— Chega! Tá bem, Miguel, chega!

Miguel piscou os olhos, atordoado, olhando em volta. Zé Dois segurava um copo gelado de refri contra um olho roxo. Pedro estava ajeitando as mangas do casaco com a classe de um lorde, e não de alguém que tinha acabado de entrar em uma briga de rua. Até Clara estava de pé na bagunça, espirrando o spray de pimenta que ela realmente tinha na cara de um dos garotos — aparentemente o que tinha batido em Pedro, a julgar pela proximidade dos três. Arthur ainda segurava Caio pela gola da camisa.

— Chame meus amigos de “bichinha” de novo, e eu quebro teu queixo pra combinar com o nariz — ele exclamou, soltando Caio no chão. — Agora vaza.

Não precisou pedir duas vezes. Caio saiu correndo, com todos os colegas tropeçando atrás de si. Havia um ajuntamento de curiosos nas escadas assistindo a bagunça, e alguns filmando o momento, mas Arthur não pareceu ligar e os outros também não.

Ele se sentou na mesa de novo, e a expressão de raiva em seu rosto derreteu para uma de vergonha e preocupação. Miguel não fazia ideia do motivo. Ele se sentou também, pegando uma batata em silêncio, sem saber como se comportar agora. Seus dedos doíam, mas não conseguia reagir de nenhuma maneira sobre isso. O corpo estava entorpecido de adrenalina demais.

— É assim que eu soava? — Arthur perguntou, encarando seus nuggets com cara de asco.

— Às vezes, sim — Miguel respondeu, sem hesitar.

— Não vai acontecer de novo — Arthur respondeu, apenas, bebendo um gole de seu refrigerante em seguida. — Me desculpe. Deve ter sido péssimo.

— Um pouco.

Arthur não disse mais nada. Ninguém disse. Então Arthur se levantou para lavar as mãos no banheiro, e Miguel foi atrás, em um absoluto silêncio.


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