Legado Demoníaco escrita por carlotakuy


Capítulo 9
[Mundo Humano] - Giselle


Notas iniciais do capítulo

estamos chegando em algum lugar aqui...



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/801488/chapter/9

 

 

Colégio Axel, 2018

Thomas olhou de esgueira para Cali na banca ao lado, que ria com Ryan de alguma coisa que ele não fazia ideia do que era. Lucas estava no assento de frente ao dele, anotando num caderno coisas sobre o festival que estava chegando enquanto a sala, numa algazarra, discutia sobre o que fazer na apresentação da sala.

Todos os anos o colégio promovia um período de festas pós provas para relaxar os alunos, com competições e uma apresentação musical no final. Entretanto, apesar da aura de descanso, eles exigiam de cada sala uma apresentação no dia, valendo pontos positivos que podiam ser usados nas notas.

E como a sala de Thomas não era uma das melhores boa parte estava empolgadíssima com a possibilidade de angariar uma nota máxima usando os pontos do festival. Vez ou outra alguém ia na frente da turma, se utilizando do horário reservado para debate sobre o festival que tinham recebido, e dava alguma sugestão.

Já tinha ido de teatro de fantoches à um se vira nos trinta segundos, mas ninguém tinha aceitado nada muito bem. As ideias não eram boas, nem originais. Com tantas turmas, se eles precisavam de nota, tinham que fazer algo diferente. Decididamente original.

Encarando a lista engraçada no quadro com sugestões Thomas observou Lucas levantar, decidido, e se dirigir para a dupla ao lado. Se sentindo meio excluído ele fez uma careta, se recusando a aproximar, ressentido por Cali só ter o cumprimentado quando chegara, mesmo tendo passado boa parte do final de semana consigo.

Ciúmes?

Lucas riu ao seu lado, mas Thomas não o olhou, concentrado demais em ser birrento para notar que as bochechas de Cali estavam coradas. Ele então se afastou da garota e seguiu para a frente da sala, silenciando aos poucos algumas conversas fervorosas. A maioria dos alunos focou em Lucas.

— Então gente, para esse ano não termos que acabar repetindo o que já usamos em anos anteriores pensei em algo que vai ser bem diferente. O que vocês acham de uma apresentação de balé?

Alguns alunos exclamaram, surpresos, e outros começaram a cochichar entre si. Os olhos de Thomas foram de Lucas para Cali arregalados e só então ele a viu rosada e envergonhada, sendo claramente incentivada por Ryan, que a tocava informalmente no ombro.

— Não temos ninguém que saiba dançar isso aqui, Lucas, sai dessa.

— Na verdade – o moreno abriu um sorriso largo – nós temos sim.

E apontando para a garota no final da sala ele conseguiu, finalmente, a atenção geral. Todos da sala voltaram-se para Cali surpresos, com metade já animada com a perspectiva e outras sorrindo para ela, elogiando a habilidade.

Ainda que corada Cali assentiu para eles, passando confiança. Ficou chocada com a sugestão de Lucas quando ele lhe sussurrou, quase implorando, mas não faria mal algum. Pensara em nunca mais fazer balé depois do que lhe aconteceu. No inferno essa determinação tinha se tornado fácil de cumprir, mas agora não.

Não depois de ter desabafado com Thomas e ter sentido tudo voltar. A sensação de rodopiar, a dor nos pés, os movimentos... Cali queria aquilo de novo, queria se sentir viva, se sentir feliz.

Sorrindo ela fitou o castanho do seu lado, após o anúncio, e o encontrou surpreso. Quis rir, mas palmas eclodiram e só então ela percebeu que Lucas tinha finalizado a apresentação da sua ideia e todos haviam concordado.

Era isso. Ela ia voltar a dançar balé num festival escolar.

A sua vida não podia ser mais aleatória.

•••

— Então você vai ficar bem?

Cali assentiu, se abaixando um pouco mais, com os olhos fixos na bola de basquete, que quicava de um lado para o outro sob o controle de Thomas.

— Vou. Só preciso treinar – ela avançou – dançar é como aprender a andar, depois que você faz – girou, perdendo a bola – nunca mais esquece.

Ela sorriu e Thomas observou atento todas as feições do rosto dela, suado pelo treino de basquete. Estavam apenas os dois na quadra, depois de uma tarde intensa com o treinador furioso e energético tão animado quanto os alunos pela chance da competição. E a morena o incentivou a ficar treinando mais um pouco, dividindo com ele o exercício, tendo se tornado mais difícil de driblar do que antes.

— E você, vai ficar bem no jogo?

O sorrisinho dela era de presunção, sustentando a bola sob sua posse. Rebatendo-o o castanho investiu, sendo enrolado.

— Eu vou ganhar o jogo.

Ele conseguiu pegar a bola e Cali sorriu ofegante.

— Estarei aqui para testemunhar.

Thomas correu com a bola e pulou, fazendo pontos. Voltou-se para ela sorridente, sendo retribuído.

— Então, por favor, venha me ver também.

O castanho quis sorrir ainda mais ao notar o rubor no rosto de Cali com o convite. Passando a mão na testa e nos cabelos ele assentiu.

— É claro que eu vou. Não perderia por nada.

•••

A semana passou se arrastando para Thomas. Depois de ser escalada como bailarina Cali não pôde mais ir junto com ele para os treinos, tendo que ensaiar para sua apresentação com os outros alunos que iriam ser parte do elenco.

O banco vazio dela na arquibancada deixou o garoto triste, pois já tinha se acostumado a vê-la sentada ali, mordendo pedaços de chocolates diversos encarando concentrada o jogo para depois repassar pra ele dicas e passes. E sua solidão se tornou ainda mais gritante quando todos foram embora e ele já não tinha companhia para treinar, tendo que correr sozinho, fingindo que a morena estava atrás dele, ávida pela bola, para consolar o fato dela não estar lá.

Isso que dava se deixar levar pela garota.

Por outro lado, Cali estava no centro de um tornado turbulento. Seus colegas de sala nada sabiam sobre balé e acabavam sempre perguntando a ela sobre como era uma apresentação, figurino, roteiro, personagens.

A semana foi um caos com a morena ensinando alguns passos simples para seus amigos, que seriam os personagens da história que encontraram na internet, que teria simples dois atos. Eles não dançariam, pois não tinham qualquer prática, mas participariam mesmo assim, e como era algo amador Cali tentou adaptar da melhor forma como lhe foi passado, tanto escrito como por vídeo.

O balé romântico de Giselle tinha apenas dois atos e contava a história de uma jovem camponesa que morria de uma decepção amorosa após descobrir que seu amado era na verdade um nobre disfarçado de camponês, já noivo de outra pessoa. Na morte, o amor eterno da camponesa salva o seu amado, que visita seu túmulo, de dançar até a morte pela mão das Willis, noivas espectrais que morreram antes do casamento, tomando seu lugar. No final, ela o perdoa.

Quando a morena ouviu a história, contada com toda pompa por Ryan, os seus ajudantes e companheiros choraram, emocionados, e outros ficaram indignados com o sujeito, Albrecht, por já ter uma noiva e iludir a pobre Giselle. Entretanto, se entregaram a apresentação com ânimo, o que deu a Cali um pouco de conforto ao saber que estava longe dos treinos de Thomas, que tanto gostava de participar, por um motivo maior.

Ainda que pensar isso não excluísse a saudade deles. Ou dele.

Vira o garoto apenas no percurso matutino e na sala durante aqueles dias, empenhada em conseguir recuperar a habilidade que um dia já teve. Mas era fácil sentir tudo de novo. A sensação dos pés na sapatilha, a brisa ao rodopiar, a leveza nos braços. Cali ainda era boa e se dedicou na dança como um dia já fizera, querendo compensar aquele dia na apresentação da escola.

Lavar seus próprios demônios no balé.

•••

Thomas, cansado de treinar sozinho, algo que já havia feito muito no coletivo, saiu mais cedo da quadra. Entrou no prédio principal para ir na sala, na esperança de quem sabe encontrar Cali e companhia, mas não encontrou ninguém.

Decepcionado ele saiu rumo a saída, resmungando consigo que devia ter aproveitado mais quando tinha a companhia dela no basquete. Ou a companhia dela, apenas. Agora que mal a via parecia que tinha algo errado.

Não, não só parecia, era errado.

Um som baixinho despertou Thomas das reclamações e ele trocou o corredor que seguia, acompanhando o som que ficava cada vez mais alto, porém com um toque tão suave que ele adormeceria rapidamente se o ouvisse sentado, de tão cansado que estava.

Mas o cansaço sumiu quando ele viu Cali dançando. Ela ainda usava o uniforme escolar, apesar de trocar o jeans por uma legging tão escura quanto seus cabelos, e tinha sapatilha nos pés. Rodopiava com graça na sala vazia, com o movimento dos braços tão leves que o fez questionar se ela não estaria pesando tal como uma pena.

Cali saltou de um lado a outro na sala e pousou com delicadeza próximo a, o que Thomas percebeu depois de algum tempo, um celular ligado, passando vídeo e tocando a música que ecoava. A morena parou, arfando, e encarando com seriedade o celular, torcendo levemente a boca enquanto fazia repetir diversas vezes o movimento na tela.

Se antes ela não tivera celular sabia muito bem manusear um. Mais um ponto pra o racional de Thomas.

Por falar nisso, era a primeira vez que ele a via dançar e pensou em como parecia muito importante naquele momento para ela. Os cabelos negros estavam presos com força e as mãos ainda faziam movimentos, ensaiando, imitando passos da tela.

Thomas se apoiou na porta, rangendo-a, e Cali olhou assustada para ele, pondo a mão por reflexo na cintura. O castanho achou curioso a pose, mas depois lembrou da espada no quarto dela e tentou afastar a lembrança e a curiosidade.

— Ensaiando muito?

Ela abriu um sorriso lento, pausando o vídeo, e voltando-se para o garoto. Um suor tímido escorria pela lateral da sua cabeça caindo no espaço entre os seios.

— O quanto consigo. Não é fácil aprender passos novos assim tão fácil. E você? Como anda o basquete?

Thomas se escorou na porta.

— Estou incrível, como sempre.

O sorriso dela aumentou.

— Cadê o resto do pessoal? Pensei que o ensaio fosse coletivo.

— E é – ela sentou numa cadeira de apoio, próxima ao celular, desatando a sapatilha – mas resolvi reforçar a minha parte mais um pouco. Vou ser a única a dançar pra valer, então quero estar no mínimo bem.

Cali fitou o garoto e a satisfação no rosto dela era notável.

— Depois de tanto tempo, sinto que estou viva.

Aquela afirmação foi uma surpresa para a morena e uma constatação tão cruel e incrível que ela se permitiu sentir. E foi bom. Contra tudo que havia lhe acontecido viva era um status e tanto.

O garoto ficou calado e o silêncio se prolongou por alguns segundos, até Cali terminar de tirar as sapatilhas, tocando no chão revestido de madeira com os pés descalços.

— Você sabia que na primeira versão dessa história a garota se mata?

Ela olhou para o castanho, mas Thomas a retribuiu confuso.

— Nunca ouviu sobre Giselle? Achei que conhecesse. Pareceu popular.

— Não aqui.

— Pois bem – ela desatou os cabelos que caíram raivosos sob suas costas – após uma desilusão amorosa, ela se mata com uma espada no coração – encenou – não é trágico?

Thomas olhou atentamente para a morena, que não via tão casual há tempos, e tentou decifrar aquela expressão em seu rosto. Parecia impassível e distante. Ele nunca chegou a vê-la dessa forma. O que acontecera naqueles dias?

— Nessa ela tem um ataque do coração – riu – mas no final, o perdoa – sorriu sem vontade – uma idiota.

Lembrou de Dante.

— Uma idiota apaixonada – ele a corrigiu.

Os olhos azulados caíram dentro dos dele. A sala pareceu escurecer nesse momento para Thomas, emoldurando-a sob a luz avermelhada do pôr do sol e a expressão estranha sumiu, suavizando-se.

— Paixão cega as pessoas – rebateu-o.

— Paixão faz as pessoas se sentirem vivas.

Eles se entreolharam intensamente por longos segundos. Cali sentiu alguma coisa ali, naquele momento, algo estático no ar que rondava aquela afirmação. Thomas sorriu e balançou a cabeça, endireitando a postura e se afastando da porta.

— Melhor eu ir, estou atrapalhando seu ensaio.

— Você nunca atrapalha – sorriu de lado – e eu estava me perguntando como você estava. Senti saudades.

Thomas quase caiu para trás ao ouvir aquilo. A facilidade com que Cali dizia aquilo o deixou surpreso, ainda que ao mesmo tempo feliz. Ele também estava com saudades dela, é claro, só não diria isso. Ainda mais de modo tão direto assim.

— Quando acabar tudo isso – indicou a sala, sinalizando o festival – vamos voltar aos treinos. A quadra é vazia sem você.

Acabou dizendo, droga.

Cali sorriu mais abertamente e assentiu com ânimo.

— Em breve estou de volta. Não vai demorar muito.

Thomas retribuiu o sorriso, pensando no quanto o sorriso dela ficava bonito quando ela estava corada. Essa face de Cali, mais íntima, fazia seu coração acelerar muito mais que a anterior.

Ele gostava dela.

Da face nova, claro.

•••

O dia do festival foi um alvoroço e Cali riu sozinha ao passar pelo portão ao lado de Thomas, encantada com a criatividade dos alunos que fizeram um arco florido na entrada, com o cheiro doce preenchendo todo o campo exterior que estava cheio de pequenas e coloridas tendas de lanches.

Thomas a observou satisfeito, guiando-a entre as barracas e apresentando a ela salgados e doces que ainda não tinham provado, comprando com muito gosto para comerem juntos. A morena contou sobre uma cidade infernal que era responsável pelo comércio e que vivia sempre cheia e com tendas.

Mas que não se comparava a vida daquele lugar.

— Por que estamos vivos, é claro.

Cali olhou para ele de lado, com um sorriso fechado.

— Sim, vocês estão.

Depois de comerem e do castanho se perguntar o que ela queria dizer com aquilo, a dupla entrou no prédio. A sala deles era um furacão de pessoas, roupas e pedaços de madeira que seriam colocados como cenário. Lucas foi o primeiro a vir até a dupla, com duas moitas em seus braços, que fariam parte da floresta.

— Ainda bem que vocês chegaram – ele voltou-se à morena – Elisa está louca perguntando por você, disse que precisam repassar o ensaio antes de...

— Pegarmos o auditório – Ryan concluiu o amigo, chegando e se apoiando no ombro dele.

Na mão trazia um maço de papéis e tinha na cabeça uma coroa de flores, que seria usada pelas Willis. Ainda usava a tira colo uma capa que fora improvisada para mostrar, no momento certo, que ele seria um nobre e o homem que contracenava com Giselle.

Tomando fôlego, olhando para Thomas e recebendo um sorriso, Cali seguiu Ryan sala a dentro. Lucas os observou sumirem e seguiu o amigo para fora da sala, juntos na mesma direção. A escola estava um alvoroço nos corredores, ainda que na parte externa as pessoas passassem despreocupadas, a maioria familiares e amigos, ou pessoas da vizinhança.

Thomas pensou se sua mãe e seu pai viriam, mas desistiu de nutrir esperanças, eles eram sempre ocupados demais para esse tipo de coisa. Apesar de ter sido incentivado pelo pai no jogo que teria hoje e paparicado com um café da manhã especial pela mãe.

Lucas o acordou dos pensamentos.

— Vocês combinam.

As palavras do moreno fizeram Thomas o olhar surpreso, quase derrubando a mochila com suas coisas do basquete. Um grupo pequeno do que pareciam personagens de um filme de terror passou ao lado deles.

— O que?

Lucas sorriu travesso, ressaltando uma covinha em seu queixo.

— Você e ela, idiota, combinam. Vai me dizer que não está interessado em Cali? Conta outra, nunca vi você curioso sobre a opinião de outras pessoas, principalmente sobre relacionamentos. E nem deixar que alguém vá com você pro treino – o encarou um pouco sentido – expulsou eu e Ryan quando fomos.

— Mas vocês ficaram gritando meu nome com faixas e uma coreografia horrenda! – argumentou, indignado.

O moreno deu de ombros e acenou para alguns amigos que trabalhavam em um das salas.

— É muita pouca evidência pra você sair deduzindo isso.

Lucas encarou o corredor e os alunos agitados mais a frente, carregando mesas e cadeiras para fora do prédio.

— Não é só isso, você sabe. Aceitou as aulas de reforço por causa dela.

— Para ajudar todos vocês!

Ele ergueu a sobrancelha num questionamento mudo, mas Thomas permaneceu irredutível.

— Tem também a forma como olha pra ela, como fala... ah, Thomas, só um cego não veria.

— Não gosto dessa conversa – resmungou parando na bifurcação do corredor que os separaria – não estou interessado em Cali e ponto final.

— Você é sempre cabeça dura com as coisas – Lucas sorriu inabalado, ajeitando as moitas improvisadas em seus braços – com o tempo, vai perceber. Não estou propondo que vivam uma grande paixão, só que aceite que está interessado sim. É normal, somos jovens! Eu e Ryan também estamos.

Thomas voltou-se para o amigo com os olhos semicerrados, irritado. Sabia que eles estavam desde antes de Cali entrar na escola, mas ouvir isso em voz alta dava a toda aquela história outro patamar. Mais concreto.

— Tá vendo? É esse tipo de coisa que estou falando.

Lucas riu do amigo e adiantou o passo, indo para o auditório leste, deixando Thomas sozinho no corredor com mil coisas em sua cabeça. Voltando a andar, encarando as janelas e as pessoas, ele se questionou se estava sendo cabeça dura mesmo. Não só com isso, de desejo e sentimentos, mas com toda a história da garota.

Ao invés de começar uma reflexão filosófica os pensamentos de Thomas voltaram-se para Cali, seu sorriso, sua risada, seus cabelos enrolando no braço esguio. O calor dela, os olhos... veio como um sopro a percepção do desejo que sentia por Cali. Do quanto queria tocá-la e...

Corando o garoto foi pisando com força na direção da quadra se aquecer para a competição. Não iria admitir nada. Não estava interessado em Cali. Não iria se interessar por alguém que usava fantasia para justificar toda sua vida.

Ele lembrou da pesquisa que havia feito na internet. Rainha dos demônios, teatro Petrovsky..., as lágrimas involuntárias e dos olhos dela, sinceros e avermelhados, olhando-o num mix de sentimentos.

Era tudo fantasia, repetiu para si, ressentido.

E isso lhe doía no peito.

Porque queria que ela fosse verdadeira com ele.

Mas se Cali não conseguia, não seria ele que cederia.

•••

Quando o jogo começou Thomas ainda esperava que Cali aparecesse para vê-lo jogar, mas as arquibancadas cada vez mais lotavam sem nenhum sinal dela. Seus colegas de turma estavam ali, com pompons e bandanas, fazendo-o rir. Os outros alunos dividiam a arquibancada com os da outra escola o mais civilizadamente possível.

Thomas ficou triste, percebeu, e um pouco com raiva pela quebra da palavra de que Cali iria vê-lo, mas não se encontrava em lugar algum.

Ele queria que Cali fosse, percebeu.

O jogo começou e ele correu. Os jogadores do outro time eram mais altos que eles, com um esquema tático bem planejado. Mas eles eram mais rápidos e conheciam melhor o tablado, driblando com habilidade e correndo com maestria.

Entre dribles, quedas e percas de bola o time de Thomas tomou a dianteira, sob o grito da torcida. A escola com que disputavam não era muito boa no esporte também, mas estavam rivalizando bem com eles, apesar da vitória ser quase certa.

Mas o garoto, entretanto, não se sentiu tão motivado. Queria ganhar, claro, como sempre, mas fazê-lo sem poder mostrar a Cali suas habilidades parecia um desperdício. Ele tinha se saído bem nos treinos até ali e agora conseguia identificar quando o adversário iria tentar ir pela direita ou pela esquerda alguns segundos antes dele o fazer.

Graças as dicas dela no início.

Tinha melhorado a sintonia com os companheiros, já sabendo os melhores passes para cada um e a agilidade deles. Jogara basquete por tanto tempo e agora parecia que a vitória o encharcaria de glória. E ele queria que Cali visse e o olhasse com o orgulho do primeiro dia.

Queria a aprovação dela, o sorriso, o toque, a boca.

O pensamento o paralisou brevemente e ele perdeu a bola, incrédulo com o que pensava. Ele não queria, queria?

Correndo para recuperá-la o castanho lembrou do sorriso dela, das disputas na quadra, das palavras. Da sensação elétrica e de êxtase quando a tocava, da textura dos cabelos negros e da maciez da pele alva.

Ele recuperou a bola e correu, pronto para fazer os pontos. Quando voltou ao chão, sendo banhado com o grito da torcida e o som agudo do placar mudando, Thomas a viu e foi como se sua imaginação a tivesse materializado ali, no canto da quadra, parcialmente escondida nas portas da saída de emergência.

Cali estava toda de preto, como sempre, mas a roupa era elástica, para o ensaio final, e tinha consigo os cabelos negros presos num arranjo coroado em sua cabeça. Os olhos azuis estavam destacados com a maquiagem cintilante e seu rosto inteiro parecia iluminado, principalmente a boca, rosa, que sorria para ele.

Com a mesma expressão de orgulho que ele desejou.

Subitamente Thomas desejou poder beijá-la. Queria saber o gosto dela, a garota que esteve com ele todos aqueles dias irredutível e sorrindo tão inocentemente para coisas simples que acabou o fazendo baixar a guarda. Depois de três namoros fracassados não era fácil para o castanho se vincular a alguém, mas tinha acontecido.

Talvez até ali não tivesse começado certo.

Com Cali, tudo parecia certo.

Apesar do início traumático.

Quis rir ao lembrar.

Cali gritou alguma coisa, incentivando-o com um movimento da mão em punho pra cima, e Thomas sorriu, preenchido por um calor inexplicável. Se o time do garoto já estava ganhando sem um real esforço dele o placar começou a mudar drasticamente de modo que os pontos já nem chegavam a ser comemorados, exceto pela morena no canto, pulando toda vez que o garoto fazia cesta.

Suado e cansado Thomas arfou junto ao som do final da partida, com as torcidas vibrando na arquibancada e os jogadores sorridentes, fazendo high-five. Alegre e animado o castanho buscou a morena com os olhos e a encontrou, infelizmente, já indo embora.

Entretanto, ao abrir a porta Cali virou e sorriu para ele, acenando, desejando, sem usar a voz, parabéns pela vitória. Thomas quis correr até ela, mas tão logo falou ela sumiu porta a fora, pronta para voltar ao seu ensaio.

Dando um suspiro de contentamento Thomas sorriu consigo. Agora tinha uma apresentação de balé para assistir em retribuição.

•••

O silêncio no auditório pareceu ecoar nas paredes e suas sombras. A luz lentamente diminuiu, focando no palco, e Thomas engoliu a própria saliva nervoso. Não sabia porque se sentia daquele jeito e podia facilmente arranjar uma explicação, mas não tinha certeza se queria encontrar o motivo.

Talvez porque o motivo estivesse entrando naquele momento, com leveza, para o meio da luz. Cali brilhava com roupas simples e o mesmo arranjo na cabeça. Sorria e dançava suavemente, com uma música e uma narração ao fundo introduzindo sua história e personagem.

Giselle era uma camponesa que vivia com sua mãe e era conhecida por todos em seu vilarejo por ser bondosa, alegre e a vida do lugar.

Cali girou e surgiram outras pessoas no palco, não dançando como a garota, porém tentando seguir o ritmo da música ao se mover. Aparentemente, Thomas notou, eram as pessoas do vilarejo e seus colegas de classe.

Como toda história de amor, Gisele se apaixonou. O nome dele era Albrecht, um homem gentil que conquistou o coração da jovem garota.

Seguindo o toque Ryan entrou, sorridente, e foi até Cali que parecia encantada em vê-lo. Para o incômodo de Thomas, atuação e balé andavam juntos, e o castanho resmungou, não conseguindo tirar os olhos da morena. Nem mesmo quando seu amigo a puxou, numa valsa estranha, e deu um leve beijo em sua boca.

Thomas paralisou.

Lucas, ao lado do garoto, sorriu para si mesmo sem nem precisar olhar para saber a reação do amigo.

Gisele era uma jovem animada, alegre e adorava dançar.

Cali se afastou do garoto, não parecendo nem um pouco abalada pelo toque dos lábios, com um sorriso fechado dançando com leveza e habilidade ao longo do palco pequeno, acompanhada por algumas poucas garotas que a imitavam muito mal, e não tiravam seu brilho.

Entre um passo ou outro a morena segurava a mão de uma das garotas com um sorriso maternal e como que se a ensinasse dançava junto com elas por alguns segundos. Um bom improviso, Thomas pensou, mesmo que ainda incomodado.

Mas Gisele, a pobrezinha, tinha um grave problema no coração.

Cali caiu com tudo no chão de madeira com o barulho estrondando o espaço. O garoto quis levantar para ajudar, mas era parte da cena, se acalmou. Lucas riu baixinho.

E não podia fazer esforço.

Thomas acompanhou a história contar sobre a doença de Gisele, sobre o caçador, Hillarion, apaixonado pela garota e a briga dele com o amado dela. Cali fazia movimentos fluidos e até mesmo para andar ela ia na ponta do pé, com bastante rapidez.

Chegou o momento em que um grupo de nobres passou pelo vilarejo e Cali dançou animada, com os cabelos ameaçando cair do arranjo, para Bathilde, uma nobre que logo se apegou a jovem garota, lhe dando um colar como presente de casamento.

Com a ida dos nobres a luz diminuiu e uma música menos relaxante começou. Os outros camponeses se dispersaram e no meio do palco sobrava apenas Gisele, encarando sonhadora o colar. Dos fundos surgia Albrecht pegando sua mão e a beijando suavemente.

Hillarion surgiu também, com uma espada e algo parecido com uma trombeta, e confrontou Albrecht. Nesse momento, Thomas prendeu a respiração.

“Este homem mente para você, Gisele”, Hillarion mostrou as provas do crime, “Veja, esta espada. Pertence a Albrecht”

A expressão tanto de Gisele quanto de todos os outros camponeses fez Thomas ficar confuso. Tinha algum problema em ele ter uma espada?

“Não hei de ouvi-lo, Hillarion. Você mente para acabar com nosso amor.”

Cali e Ryan se abraçaram. Thomas ergueu a sobrancelha.

“Se assim crês, devo então provar-lhe.”

O som da trombeta soou, alto, e algumas pessoas pularam de suas cadeiras. Pela primeira vez o garoto na plateia prestou atenção nas pessoas que assistiam e sorriu consigo ao vê-los atentos e curiosos olhando para o palco.

“Albrecht, querido, o que estás a fazer aqui? E com essas roupas?”, perguntou Bathilde, confusa.

Thomas piscou, também confuso, e entendeu tudo que se passava pela expressão de espanto e dor no rosto de Cali. Era atuação, repetiu pra si, mas parecia vívido demais.

Albrecht, ou Ryan, fingiu então não conhecer Gisele e aquilo pesou no peito do garoto, que cravou as mãos no assento. Era só mais uma história, mas ver Cali ali, no meio de ambos, tentando provar seu valor era inquietante.

Então, enganada por seu amado e reduzida a nada por ele, Gisele... enlouqueceu.

A música começou com um quê de agonia e o som do violino nela foi aumentando e aumentando e aumentando enquanto cada vez mais Cali, ou Gisele, enlouquecia no palco. Os cabelos caíram da coroa, os olhos ficaram sem expressão e os passos eram caóticos. Ela rodopiou, rodopiou e rodopiou...

E então, Gisele morreu.

...e caiu no chão.

As luzes se apagaram e houve alguma movimentação no palco. Em poucos minutos elas voltaram a se acender, mas o lugar estava vazio. As moitas que Lucas havia levado estavam postas juntas com muitas outras e o que antes havia sido uma casa se reduziu a um solitário túmulo improvisado.

Hillarion entrou e visitou o túmulo, soturno e culpado.

Então ele notou que algo estava errado.

Quando Hugo, seu colega de sala que interpretava o caçador, correu do palco, uma fumaça de hortelã suave preencheu o espaço. A música mudou e várias garotas surgiram, dançando em sintonia ainda que não balé, representando, o narrador explicou, as Willis.

Cali tinha sumido, Thomas notou, e seu corpo relaxou sem ela no palco. Havia acabado sua parte? Que história louca era aquela? E na versão original, ele lembrou, Gisele se matava. Ele balançou a cabeça em negação. Que absurdo.

E naquele momento, as Willis iniciaram Gisele.

Os olhos castanhos foram para o palco e caíram certeiros sob a nova figura ali, vestida de branco e com os cabelos negros parcialmente soltos. Um pano lhe cobria a cabeça e lentamente uma de suas companheiras o tirou.

Thomas sorriu ao vê-la, uma figura quase angelical naquelas roupas brancas e cintilantes e cabelos negros e cheios. Os olhos azuis, celestes. A garota infernal agora era um anjo, na história e no palco.

Quanta ironia.

Com graça a rainha das Willis, que o castanho notou ser Elisa, colocou uma coroa de flores sob a cabeça de Cali. Ela abaixou o olhar e quando olhou para a mulher, havia tristeza neles. Se alguém no palco percebeu, não mudou nada.

Mas então...

As jovens no palco se dispersaram.

...naquela noite, o túmulo de Gisele recebeu uma outra visita.

Ryan entrou, com sua capa de nobre, e um buquê de flores.

Gisele estava entre os arbustos, o observando, e rodopiou ao redor dele, e quando ele a viu, eles dançaram.

Era uma música triste Thomas sentiu. Cali e Ryan não se tocavam, dançando cada um de um lado, como se fossem realmente um humano e um espírito. Tinha dor no rosto da morena e talvez fosse a personagem quem sofria sem poder tocar seu amado.

Ou talvez não. A tristeza dela no quarto, sua história, tudo voltou ao garoto. Thomas ficou triste, também.

A música mudou e as Willis chegaram, prontas para fazerem Albrecht dançar por toda a eternidade. Thomas achou que seria um bom castigo, mas Gisele dançou com ele em meio a performance de sofrimento, pedindo a rainha que o poupasse.

Em meio a tudo isso, sendo bastante esperta, Gisele conseguiu manter um ritmo ameno na dança com o amado, para que ele sobrevivesse até a manhã do dia seguinte.

Quando o sol e a manhã se mostraram, as Willis retornaram aos seus túmulos. Por fim, Albrecht foi salvo e Gisele o perdoou antes de ela mesma retornar ao próprio túmulo.

A cena foi triste, com música e tudo, e Cali sorriu para Ryan, caído no chão, antes de se afastar, intocada por ele. As luzes novamente diminuíram e ela dançou, solitária, até o túmulo, até o palco apagar.

Fim.

Aplausos eclodiram no espaço acústico e as luzes novamente se acenderam. Todos se reuniram no tablado, sorrindo uns para os outros, e agradeceram a plateia animados. Cali procurou por Thomas em meio a todos e o viu quase de imediato, de pé, batendo palmas e com um sorriso enorme.

Sentindo o coração acelerar e aquecer a morena sorriu consigo e fez uma grande reverência, voltando a posição original e piscando para ele, que riu.

Ele tinha ido, afinal.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

♥️



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Legado Demoníaco" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.