Legado Demoníaco escrita por carlotakuy


Capítulo 8
[Mundo Humano] - Rainha dos demônios




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Fundos do Madame Boulevard, 2018

Sentado na beirada da cama baixa enquanto ouvia Cali remexer em alguma coisa no banheiro pequeno e apertado da suíte do quarto dela, Thomas observou reflexivo o espaço minúsculo que a garota morava.

As paredes descascavam indo de um branco manchado para o cinza do concreto logo atrás. De móveis só havia a cama e uma escrivaninha, ou seria uma mesa?, que apoiava uma longa espada embainhada, assim como um perfume pequeno e uma escova de cabelo. Fora isso nada mais.

— Desculpa, o vestido de Mariane foi mais difícil de tirar do que eu imaginei – ela sorriu constrangida saindo do banheiro com o vestido florido em mãos, usando seu conjunto de couro tão conhecido.

Thomas quis suspirar ao vê-la de volta aquela fantasia sinistra, mas não conseguiu. A roupa não parecia mais uma fantasia, era Cali em sua essência, ele percebeu. Uma guerreira.

— Onde aprendeu a lutar daquele jeito?

Fitando-o confusa com a pergunta, depois de tanto ter sido rebatida, Cali começou a dobrar a roupa, de pé em frente ao garoto.

— Treinei com os guardas do rei. Primeiro para conseguir me defender, depois para entrar na guarda. Não sei se viram potencial em mim. De início, eu só queria não ser um fardo.

— Você não é um fardo – ele murmurou observando-a colocar a roupa sobre a superfície com uma parte em cima da espada – e essa...

Indicou a espada e Cali sorriu afetuosamente, tirando-a debaixo do tecido. Agora mais visível o castanho notou desenhos intrincados na bainha de metal, redemoinhos e símbolos arredondados, e uma representação de fogo ao redor de todo comprimento dela.

— Essa é a minha espada. Matadora de Bestas.

Lentamente a garota puxou o cabo mostrando a lâmina negra e reluzente. Ela pareceu orgulhosa para Thomas, que sorriu com a percepção.

— Ela pertenceu a diversos guerreiros ao longo do tempo no submundo e seu nome foi dado pelo ferreiro que a construiu para conseguir atravessar as piores bestas infernais.

Cali deu um passo e estendeu a espada.

— Pegue.

Thomas olhou de uma para a outra, meio nervoso. Não sabia se queria pegar numa espada e nem saber o que Cali fazia com ela. Apesar da história inferno fazer sempre muito sentido com todos os apetrechos que ela lhe mostrara, desde o colar ao punhal, e agora a espada, ele ainda buscava explicações mundanas para tudo.

Mas uma espada já era demais.

Com cautela o garoto pegou a lâmina da mão dela, pelo cabo, e admirou os adornos dele, assim como finos desenhos que se desenrolavam pela lâmina negra, escondidos pela cor dela. Observando-o Cali sorriu.

— Meu pai quem deu?

Ela virou a cabeça um pouco para o lado, avaliando se diria ou não, mas sentou ao lado do garoto tocando delicadamente na lâmina que tanto a salvou.

— Na verdade não. Foi ela quem me escolheu. Ninguém conseguia usá-la, mas quando a peguei, foi como uma luva e nós nos encaixamos. Se uma espada tivesse alma, eu diria que ela é a minha gêmea.

O sorriso de satisfação no rosto da morena ao seu lado fez Thomas se lembrar da conversa na mesa. Sobre o passado de Cali, sobre o ex dela, sobre balé. Vagarosamente apoiando a espada em suas coxas ele voltou seus olhos para a garota.

— O que aconteceu antes de você ir para o inferno? Como você acabou lá?

Assim que Thomas disse essas palavras, sentiu que podia se arrepender. O momento o lembrou do que havia acontecido no beco, quando ela lhe contou mais uma fração da história que tanto repetia e ele não acreditou e se chateou. Tocando num ponto que era tão delicado, seria capaz de entendê-la? De não se zangar com a resposta fantasiosa que Cali provavelmente lhe daria para não magoá-la?

Em que momento ele deixou de ser insensível o suficiente para se importar tanto?

Cali olhou dentro dos olhos do garoto quando ele lhe fez essa pergunta e foi como se visse um furacão, mesclado em castanho e dourado, que poderia facilmente derrubá-la. Entretanto, ele a aqueceu, e contra todos avisos que ela mesma fizera para si de que devia deixar o passado onde estava, ela lembrou.

E foi uma maré de lembranças que varreu seus sentimentos, embolando uns sobre os outros, em apenas um segundo antes dela começar a falar.

— Eu nasci na Rússia, em São Petersburgo. Órfã de pai e mãe cresci num orfanato, que não era ruim, mas também não era muito bom. Sai de lá o mais rápido que pude e fui em busca do meu sonho.

Os olhos azulados saíram de Thomas para a lâmina e ela se inclinou, deslizando os dedos sobre os relevos dela e deixando algumas mechas negras de seu cabelo tocarem o garoto. Uma sensação de conforto a preencheu.

— Eu queria ser bailarina, mas não só isso. Queria dançar profissionalmente no maior teatro da cidade, o Bolshoi Petrovsky. E pra isso eu entrei numa turma de balé, trabalhando durante a tarde para pagar as aulas. Fiquei uns três anos nisso, mas nada mudou. Eu continuava como novata, as aulas só ficavam mais caras e meu trabalho já não podia pagar nada direito.

Ela suspirou pesarosamente, a lembrança ardendo seus olhos, com a dor daqueles dias voltando com tudo.

— Eu estava no meio de uma crise quando aconteceu. Ch... – Cali se calou, lembrando de não usar o nome original de Dante – um demônio chegou pra mim. Ele disse que me ajudaria, que tinha sido enviado pra me ajudar.

Desta vez Cali olhou diretamente para Thomas, que estava calado e atento.

— Eu pensei que Deus tivesse enviado ele – riu sem vontade – como fui boba. Mas ele me ajudou, mesmo. Eu melhorei nas aulas e comecei a trabalhar com balé. Fiz várias apresentações na cidade e vivi um sonho durante aquele ano. Até que consegui me apresentar no teatro e...

Ela suspirou e desviou o olhar, sem saber se poderia aguentar o julgamento de Thomas quando estava tão exposta. A lembrança do rosto de Dante voltou, claro, sorridente e lindo como ele sempre fora. Os cachos loiros e os olhos azuis gentis. Dor afundou o peito de Cali.

— Depois de conseguir eu... eu...

Cali sentiu a eletricidade do toque de Thomas antes dele tocar sua pele e foi envolvida por ele sem resistência alguma. Assim que seu rosto afundou no peito quente do garoto a morena notou que chorava, molhando a camisa dele e seus próprios cabelos no abraço súbito. Carinhosamente o castanho a apertou contra si, afagando as mechas negras vagarosamente.

— Não precisa contar mais nada.

A voz dele abafada contra seu cabelo fez Cali soluçar. Ela foi humana uma vez, frágil, boba e inocente. Foi manipulada por Dante durante um ano inteiro amando seu próprio carrasco. Depois de chegar ao inferno, tudo mudou. Ela treinou, aprendeu e lutou o suficiente para que não pudesse mais ser enganada. Odiou o loiro com todas as suas forças.

Mas os sentimentos reprimidos ainda doíam. Eram tristeza e raiva misturadas, tão intimamente cravadas no seu coração tolo e humano que ela não conseguia se livrar. Por isso as lágrimas, por isso a dor, por isso aquela reação.

Thomas a apertou mais forte, tentando passar inconscientemente a dor dela para si. Ele se sentia fraco e tolo, impotente frente as lágrimas daquela garota que era tão forte. Saber que algo como aquilo tinha acontecido...

Não, não podia ter acontecido. Era fantasia.

Agora não consciência.

Cali se remexeu nos braços dele, fazendo-o afrouxar o aperto, buscando desesperado o rosto dela. Ainda tinham lágrimas nele, mas ela sorria, um sorriso pequeno, que preencheu seu próprio peito.

— Obrigada Thomas, eu...

— Está tudo bem – ele enxugou com os dedos as lágrimas restantes – já passou. Agora você é uma guerreira infernal que consegue me matar em três segundos, ou menos, sim? Você é inteligente, engraçada e se preocupa com os outros. Você é incrível, Cali, não fique...

A voz de Thomas sumiu e ele percebeu que talvez estivesse falando besteira ao ver a garota a sua frente, que ainda estava apoiada em seus braços, corar violentamente. Ele parou e riu constrangido.

— Digo, foque em quem você é agora e onde você está, e...

Novamente ele se calou, embolado com as palavras. O que queria dizer afinal?

Cali olhou para o rosto do castanho, corando, e riu baixinho. Sabia que ele estava tentando lhe confortar, de um jeito bastante irreverente, e era grata. Acima de tudo, era grata por poder falar sobre isso com alguém, alguém que podia entendê-la.

Nos primeiros dias que ficou no inferno Cali não teve ninguém. O Rei se ocupava com as coisas dele e todos tinham funções específicas na Corte. Ela vagou como uma alma penada pelos espaços comuns, sendo ignorada pelos demônios. Tentou falar com outros como ela, mas... não funcionava.

Então simplesmente falar sobre isso já tinha sido importante e ela se sentia mais leve. E agradecida por ser Thomas a sua frente, o mesmo Thomas que mesmo a rebatendo e não acreditando a acolhida, que lhe dava um pedaço a mais do chocolate nos treinos, que a parabenizava quando mantinha a bola de basquete na mão por mais que três minutos e o mesmo Thomas que lhe garantiu, sorrindo, que ela passaria na prova, ainda que internamente ela soubesse que não.

— Obrigada – delicadamente ela tocou na bochecha dele, apertando-a levemente – eu entendi. Obrigada.

Thomas se calou e engoliu a própria saliva, percebendo, depois de sua breve confusão mental, o quão próximos estavam. O cheiro de Cali chegava até ele mais forte do que nunca e os olhos dela, ainda molhados, lhe pareciam hipnotizantes.

Assim como a boca entreaberta com um sorriso pequeno.

Só mais alguns centímetros...

Batidas na porta fizeram eles se entreolharem assustados e Thomas praticamente pulou da cama, ficando em pé, com a espada em uma das mãos. Cali riu e o seguiu levantando, entregando a bainha para o garoto antes de seguir até a porta.

Com os batimentos do coração acelerados o castanho respirou fundo enquanto encaixava a lâmina na bainha, a colocando com cuidado em cima do vestido recém trocado. Na porta, Mariane apareceu com um sorriso enorme – ação que Cali achou bastante estranha, devido a sua comum expressão de neutralidade.

— Vim avisar que vou precisar sair – ela remexeu no bolso – quando você for, tranque a casa – entregou a jovem um molho de chave – essas são as chaves novas que fiz para você.

Cali olhou da mulher para as chaves e sorriu, querendo chorar, ainda fragilizada pelos minutos anteriores. Mas assentiu como um soldado, faltando apenas bater continência. Lançando um olhar rápido para dentro do quarto a mulher deu meia volta e saiu, com a morena fechando a porta atrás de si.

— Por falar nisso, já estou pronta, vamos?

— Claro! Eu também estou – Thomas trotou até a garota, que riu da sua falta de jeito.

— Treinar basquete no final de semana foi uma novidade pra mim.

O castanho passou pela porta, parando logo depois e virando para ela, que a fechava, parados no corredor largo e mal iluminado.

— Quero ganhar a competição, não quero?

Cali sorriu para ele.

— E derrotar demônios, não se esqueça.

Ele riu.

— Não fique tão convencida só porque aceitei que me treinasse nas suas artes de luta depois do basquete.

Péssimo perdedor— ela sussurrou passando pelo garoto, seguindo o corredor.

— Eu ainda vou pegar você – rebateu, em igual tom, ficando ao lado dela.

Com essa afirmativa Cali encarou as portas duplas no final do corredor com um sorriso ainda maior. Thomas querendo aprender a lutar? Mesmo que por uma motivação própria isso a deixava animada.

— Pode ter certeza de que não vou facilitar.

•••

Thomas parou de mexer no seu personagem, dentro do jogo, e se recostou à cadeira acolchoada, alongando os braços e o pescoço. Seu corpo estava quebrado depois de passar o sábado inteiro na loucura de treino duplo e mesmo agora, em pleno domingo, ele ainda sentia as dores de ter que correr com uma bola tentando se esquivar de supostos ataques mortais.

Sorrindo consigo o castanho lembrou da tarde do dia anterior junto à Cali. A imagem dela voltou, a roupa de couro preta, os cabelos presos, os olhos astutos. O sorriso lateral o desafiando a dar mais um passo e acertá-la. Thomas suspirou, afastando os pensamentos, e voltou a encarar a tela do computador.

Seu quarto estava mal iluminado, pela chegada da noite, e a janela deixava uma brisa fria entrar, sendo alimentada pelo ventilador, preenchendo todo o cômodo. Na tela um rpg rodava, com outros jogadores correndo através do paladino do garoto, que mesmo olhando para a tela, acabava voltando a pensar na morena.

Não que conseguisse fugir disso, se martirizou. Pensar em Cali era algo praticamente automático e voltava constantemente nos mais diversos momentos, como ali, no meio de uma missão para entregar frascos de mana para um mago fragilizado na floresta. Respirando fundo o castanho voltou a caminhar no jogo.

Depois de passar por uma cabana e encontrar um mercenário que estava elogiando uma das dançarinas da taberna da cidade, o garoto teve um flash da morena sentada à cama contando sobre seu sonho de dançar balé.

E por mais que a lembrança fosse triste, algo o intrigou. Fechando a janela do jogo e imediatamente abrindo uma guia de pesquisa Thomas buscou pelo maior teatro da Rússia.

O Bolshoi apareceu resplandecente na tela e todas as notícias comentavam sobre a remodelação dele, sobre o quanto havia ficado fechado, de 2005 à 2012, porque estava danificado. Confusão já se formava na cabeça de Thomas, como ela podia ter conseguido dançar nele se estava em obras? Ela tinha sua idade, não tinha?

Rolando a tela, vendo mais do mesmo, o garoto começou a se sentir inquieto. Não tinha como Cali ter dançado balé no Bolshoi e ainda tinha...

Data de inauguração do Bolshoi.

Enquanto a página carregava as palavras de Cali voltavam, junto com a imagem dela na mesa da lanchonete dizendo: fiz uma apresentação incrível no maior teatro da minha cidade, que tinha sido inaugurado a pouco tempo.

Inaugurado a pouco tempo?

Quando o garoto encontrou o que procurava ficou estático por alguns segundos com toda a história de Cali se derramando dentro dele. Já tinha sido humana, foi levada ao inferno e agora estava de volta. Ela já tinha sido humana. Humana no século 18.

No computador a página de pesquisa mostrava que o teatro Petrovsky havia sido adquirido pelo príncipe em 1780. Teatro Petrovsky, ele lembrou como a morena chamara o teatro ao invés do nome comum. Se afastando da tela Thomas começou a balançar negativamente a cabeça.

Não tinha como ser possível. Mas Cali mentiria sobre isso porquê? Por que inventava todas aquelas histórias? Por que chorou e sofreu naquele quarto ao lembrar disso?

— Demônios não podem existir – sussurrou para si, como um mantra.

Era impossível. Mentira. Ela tinha pesquisado aquilo, era óbvio, não havia como ser real.

Mas Cali não tinha telefone.

Agora.

Ela podia ter se desfeito dele antes?

Mil questões de formulavam, se chocando, ceticismo e crença. Acreditar em Cali? Procurar razões lógicas? Quanto mais ele desconfia sobre ela, mais ficava em ponto de ter uma crise. A espada, o colar...

Thomas olhou para o punhal, intocado, na sua mesa de cabeceira.

Ele estava começando a ficar louco.

Inspirando com força o garoto fechou a pesquisa, mas antes de voltar ao jogo, digitou, mais receoso do que gostaria, o nome dela. Já tive um nome e um sobrenome, mas não mais. Meu nome agora é Cali. Tchort quem me deu e o uso com orgulho.

Em segundos a resposta para a palavra apareceu na tela e Thomas riu, meio insano, ao ver o significado.

Rainha dos demônios.

— Não é possível – repetiu de novo, fechando a guia e abrindo o jogo antes de se arrepender.

Mas ver elfos e demônios na tela o deixou ainda mais angustiado. A história de Cali tinha que ser uma brincadeira que ela sustentava, ou algo que criou para o incomodar.

Entretanto, ele nunca tinha visto Cali antes e não só isso. Cada pequeno detalhe que ela soltava durante os dias, as informações, as referências, tudo se encontrando. Thomas poderia muito bem imaginar um inferno existindo sob seus pés, vivo, pulsante, e atualmente em guerra. Conseguia ver Cali lutando em confrontos com uma espada.

Impossível.

Repetindo isso mais uma vez Thomas largou o jogo, fechou e desligou tudo, caindo com tudo na cama macia. O conforto afagou todo seu corpo dolorido e ele fechou os olhos, com força, tentando tirar a imagem que fizera de uma Cali poderosa andando no inferno, rodeada de demônios que queriam acabar com ela.

Thomas não queria acreditar. E não iria.

 


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Notas finais do capítulo

nos vemos em breve ~



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